Entrevista/ “O mercado não é um jardim cheio de lindas flores: é duro, competitivo, injusto e não perdoa ingenuidades”

Rita Maria Nunes, especialista em gestão estratégica de PME

“Empresas modernas já perceberam que freelancers não são fornecedores de segunda, são parceiros estratégicos. São eles que trazem inovação, flexibilidade e velocidade de resposta a um mercado cada vez mais volátil”, afirma Rita Maria Nunes, especialista em gestão estratégica de PME.

No Dia Internacional do Trabalhador, que se assinala hoje, Rita Maria Nunes, especialista em gestão estratégica de pequenas e médias empresas, lembra que “precisamos urgentemente de parar de vender a imagem de que ser patrão de si próprio é sinónimo de liberdade instantânea, computadores em praias paradisíacas e horários à medida”.

Salienta que “é preciso ensinar, desde cedo, que construir um negócio é construir uma estrutura sólida: gerir dinheiro, entender marketing, liderar equipas e, talvez o mais difícil, aprender a gerir as próprias emoções”. Reconhece que a relação entre empregadores e empregados mudou e que hoje é o talento que escolhe onde, como e com quem quer trabalhar. As empresas que continuarem presas a modelos hierárquicos, rígidos e desfasados da realidade atual estão a perder terreno, afirma.

Olhando para o comportamento do mercado empresarial dos últimos anos, como avalia a relação que se tem desenvolvido entre empregadores e empregados, considerando que quer uns quer outros têm agora um perfil completamente diferente?

A relação entre empregadores e empregados mudou — e mudou porque teve que mudar. Quem ainda não entendeu isso já está a sentir o preço da resistência: perda de talento, desmotivação interna e perda de competitividade. Durante décadas, o mercado era unidirecional: o empregador ditava as regras, o trabalhador aceitava porque tinha poucas alternativas. Esse tempo acabou. Hoje, o talento escolhe. Escolhe onde, como e com quem quer trabalhar. E não é só sobre salário — é sobre propósito, respeito e qualidade de vida.

Empregadores e empregados deixaram de ser lados opostos de uma mesa. São parceiros na construção de valor. Os dois procuram hoje exatamente o mesmo: ambientes de trabalho flexíveis, projetos que tenham significado e a possibilidade de crescer — como profissionais e como pessoas. As empresas que entenderam isso estão a construir equipas mais comprometidas, produtivas e leais. As que continuam presas a modelos hierárquicos, rígidos e desfasados da realidade atual estão a perder terreno a olhos vistos.

Hoje, ninguém quer apenas um emprego. Quer-se uma experiência profissional que faça sentido com os próprios valores, com a própria vida. Quem oferece condições antiquadas perde os melhores, e o mercado não perdoa quem fica para trás.

É preciso perceber de uma vez por todas: não se gere pessoas como se gere máquinas. Não se lidera pela imposição, lidera-se pela influência, pela visão, pelo respeito mútuo. O ativo mais valioso de uma empresa não é a sua tecnologia, nem o seu produto — são as pessoas que a constroem todos os dias. Mas atenção: elas só ficam se quiserem. E a decisão de ficar ou partir já não depende só do que se oferece no contrato — depende do que se vive no dia a dia.

“Proteger quem trabalha de forma independente é, na prática, proteger o futuro dos próprios negócios”.

Com cada vez mais talentos a optarem por ser nómadas digitais ou tralharem como freelancers, por exemplo, quer protege os direitos destes trabalhadores?

Ainda estamos longe de onde devíamos estar. Apesar de haver hoje mais consciência sobre a importância dos freelancers e dos nómadas digitais, a verdade é que a legislação continua, em muitos casos, parada no século passado. Mas não podemos pôr tudo às costas do Estado: isto é também uma questão cultural.

Durante demasiado tempo, tratámos freelancers como mão de obra descartável: úteis enquanto convém, ignorados quando deixam de ser necessários. Esquecemo-nos que, atrás de cada prestação de serviço, existe talento, compromisso e necessidades tão reais quanto as de qualquer trabalhador tradicional.

Empresas modernas já perceberam que freelancers não são fornecedores de segunda, são parceiros estratégicos. São eles que trazem inovação, flexibilidade e velocidade de resposta a um mercado cada vez mais volátil. Quem constrói relações de confiança com estes profissionais vai ter vantagens competitivas claras. Quem continua a vê-los apenas como “soluções temporárias” vai viver em constante instabilidade — e, mais cedo ou mais tarde, vai pagar o preço.

Proteger quem trabalha de forma independente é, na prática, proteger o futuro dos próprios negócios. O mercado de trabalho é, cada vez mais, um ecossistema flexível. Ignorar isso é escolher ficar para trás. E para os próprios profissionais? O alerta é claro: esperem menos dos outros e assumam a responsabilidade de se protegerem. Conheçam os vossos direitos, exijam contratos claros, invistam em formação e construam a vossa própria estrutura de segurança. Ninguém vai cuidar melhor da vossa carreira do que vocês mesmos.

E quando se trata de trabalhadores por conta própria, muitas vezes sem assessoria correta, para implementarem os seus projetos? O que ainda falta fazer nesta matéria?

Falta muito apoio de base e, sobretudo, falta pragmatismo. Ainda se fala demasiado sobre empreendedorismo com uma dose perigosa de romantismo e pouca noção prática da realidade. Muitas iniciativas continuam focadas em teorias genéricas e fórmulas de livro, que não servem para quem está, de facto, no terreno a tentar pôr um negócio de pé. Falta formação aplicada ao dia a dia real, falta acompanhamento sério ajustado à fase de crescimento de cada projeto e falta acesso facilitado a consultoria prática — em gestão, finanças, vendas, operações.

E falta dizer isto sem rodeios: ter uma boa ideia não basta para ter um bom negócio. O que falta, muitas vezes, é planeamento sério, preparação financeira e coragem para enfrentar o lado duro de empreender. Precisamos urgentemente de parar de vender a imagem de que ser patrão de si próprio é sinónimo de liberdade instantânea, computadores em praias paradisíacas e horários à medida. Empreender é, acima de tudo, enfrentar decisões difíceis, gerir riscos constantemente, lidar com incertezas diárias e aceitar que a responsabilidade é toda nossa. Não há rede de segurança.

É preciso ensinar, desde cedo, que construir um negócio é construir uma estrutura sólida: gerir dinheiro, entender marketing, liderar equipas e, talvez o mais difícil, aprender a gerir as próprias emoções. Empreendedores precisam de muito mais do que palmadinhas nas costas e discursos motivacionais: precisam de formação brutalmente prática, bons mentores, acesso a ferramentas que realmente funcionem e alguém que lhes diga as verdades que eles precisam de ouvir — e não só o que gostariam de ouvir.

Enquanto não mudarmos esta abordagem, vamos continuar a assistir ao mesmo padrão: sonhos que nascem cheios de esperança e morrem silenciosamente nas folhas de Excel.

“(…) não dá para ser empreendedor a meio-gás. Ou mergulham de cabeça — com tudo o que têm e o que são — ou nem saiam de barco”. 

Que desafios e oportunidades enfrentam quem decide aventurar-se pelo mundo do empreendedorismo?

Primeira regra: esqueçam a ideia de que têm de fazer tudo sozinhos. Rodeiem-se de quem já trilhou o caminho, mesmo que seja apenas para uma conversa de 10 minutos. Uma boa orientação pode poupar anos de erro e frustração.
Segunda regra: controlem os números desde o primeiro dia. Não é glamouroso, mas é o que mantém um negócio vivo quando a emoção falha. Quem não domina os seus custos, margens e fluxos de caixa está a brincar às empresas — e o mercado não brinca.
Terceira regra: aprendam a vender. Ideias, produtos, serviços e, principalmente, a vocês mesmos. Não importa quão bom é o que fazem se ninguém souber, se ninguém quiser comprar. Vendas são a linha da vida de qualquer negócio.
E, acima de tudo: protejam a vossa saúde mental. Empreender é uma maratona, não um sprint. É lidar todos os dias com medo, solidão, comparação e cansaço — às vezes tudo junto.

O mercado não é um jardim cheio de lindas flores: é duro, competitivo, injusto e não perdoa ingenuidades. Mas para quem encara a realidade sem ilusões, existem hoje oportunidades como nunca antes: criar modelos de negócio próprios, impactar comunidades, construir património, conquistar autonomia verdadeira. No mundo de hoje, quem tem coragem de assumir responsabilidade total pela sua vida tem uma vantagem brutal. Só há uma regra de ouro: não dá para ser empreendedor a meio-gás. Ou mergulham de cabeça — com tudo o que têm e o que são — ou nem saiam de barco. Porque o mar é implacável com quem navega sem convicção.

Que cuidados recomenda estes profissionais para que as eventuais fragilidades de quem está a começar uma atividade possam ser ultrapassadas?

O maior cuidado para quem está a começar uma atividade é perceber que um negócio não cresce com entusiasmo: cresce com estrutura. Quem quer ultrapassar as fragilidades típicas do início tem de se concentrar em três pilares essenciais.
Primeiro, preparar antes de agir. O erro clássico de muitos empreendedores é entrar no mercado sem um mínimo de planeamento: sem mapa de custos, sem plano de vendas, sem clareza de mercado. Quem prepara melhor, executa com menos desperdício e mais eficácia. Não é perder tempo é ganhar futuro.
Segundo, criar rotinas e processos desde o primeiro cliente. Há quem ache que processos só fazem sentido “quando a empresa crescer”. É o contrário: a empresa só vai crescer se houver processos. Mesmo em microescala, ter controlo sobre como se atende, como se entrega e como se mede o trabalho faz toda a diferença.
Terceiro, separar o negócio da vida pessoal logo de início. Misturar dinheiro, emoções e decisões entre empresa e vida pessoal é receita para problemas sérios. Desde o primeiro euro faturado, é preciso criar contas separadas, definir salários realistas e colocar limites saudáveis.

Empreender é construir um ativo, não é “arranjar trabalho para si próprio”. Se desde o princípio pensarem como donos de um negócio e não apenas como operadores da própria atividade, estarão muito melhor preparados para aguentar os altos e baixos inevitáveis. No fundo, o que mais fragiliza um projeto novo não são os obstáculos externos, são as fundações frágeis. E essas constroem-se, ou corrigem-se, com método, consciência e visão estratégica desde o primeiro dia.

“Trabalhar menos e ganhar mais não é uma questão de sorte. É uma questão de estrutura, processos e visão estratégica”.

Enquanto especialista em gestão estratégica para PMEs como tem sido passar-lhes a uma visão mais estratégica e holística do que deve ser um negócio?

É desafiante e profundamente gratificante. A maioria dos empresários de PMEs começa o seu negócio movido pela necessidade ou pela paixão, mas raramente com uma visão estratégica de longo prazo. O grande ponto de viragem acontece quando percebem que um negócio sustentável não é aquele que depende 100% deles. É aquele que funciona, cresce e gera lucro mesmo quando eles não estão.

Trabalhar menos e ganhar mais não é uma questão de sorte. É uma questão de estrutura, processos e visão estratégica. Quando um empresário percebe isso, a transformação é enorme — e não só no negócio. Muda a sua qualidade de vida, muda a relação com o tempo, muda a forma como olha para o futuro.

O que eu faço é desafiar essa mudança. É como ensinar alguém a trocar o motor de um carro… enquanto o carro ainda está em andamento. E não é fácil. Empresários de PMEs são dos profissionais mais resilientes que conheço, mas também dos mais sacrificados. Trabalham até à exaustão, carregam tudo às costas e vivem focados na próxima fatura, no próximo mês, no próximo problema.

Mostrar-lhes que o negócio é uma máquina que deve funcionar sem eles no centro de tudo é quase uma mudança existencial. E, no início, gera resistência: parece estranho, até ameaça o instinto de sobrevivência que os trouxe até aqui. Mas é exatamente aí que acontece a verdadeira evolução.

Estratégia não é perder tempo. Estratégia é ganhar liberdade. O meu papel não é ser mais uma consultora a apontar o que está errado. É ser parceira de construção: mostrar, na prática, que é possível criar negócios que funcionam para eles — e não apenas por causa deles. É nesse momento que acontece a verdadeira magia: quando deixam de ser apenas os trabalhadores mais dedicados da própria empresa e passam a ser verdadeiros donos do seu futuro.

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