Entrevista/ “No futuro próximo vamos assistir a uma maior integração entre empresas criativas e tecnológicas”

Tony Gonçalves, fundador de The Evrose Group e produtor executivo do Festival Tribeca em Lisboa

Tony Gonçalves construiu uma carreira entre os Estados Unidos e Portugal. Foi executivo da WarnerMedia, onde liderou o lançamento da HBO Max, e transformou a Otter Media num player global de destaque. Hoje, através da The Evrose Group e da produção do Tribeca Festival em Lisboa, quer provar que Portugal tem talento para competir nos maiores palcos internacionais.

Tony Gonçalves nasceu em Portugal, mas aos quatro anos mudou-se com os pais para os Estados Unidos, onde construiu um percurso ligado à consultoria, aos media e ao streaming. Assumiu funções de liderança em gigantes como a AT&T e a WarnerMedia, esteve à frente da Otter Media – onde liderou operações estratégicas de grande escala, incluindo a venda da Crunchyroll por 1,175 mil milhões de dólares e a aquisição da Hello Sunshine por mais de 900 milhões – e fundou a The Evrose Group, uma consultora que liga marcas emergentes portuguesas ao mercado norte-americano. Mais recentemente, regressou a Portugal como produtor executivo do Tribeca Festival em Lisboa, cuja estreia em 2024 marcou apenas o início de uma aposta com ambição de escala.

Em entrevista ao Link to Leaders, fala sobre a transformação dos media, os desafios do streaming e a sua ambição de construir pontes entre Portugal e os Estados Unidos.

Nasceu em Portugal, mas emigrou para os EUA ainda em criança. Que importância tem Portugal para si hoje – pessoal e profissionalmente?
Apesar de ter emigrado ainda em criança, Portugal continua a ser uma parte essencial da minha identidade. É onde estão as minhas raízes, alguma família e amigos e a origem de muitos dos valores que me moldaram, nomeadamente, o sentido de resiliência e comunidade. No plano profissional, Portugal representa uma oportunidade ímpar. Vejo um país com talento criativo, capacidade técnica e uma crescente ambição de se posicionar no cenário global. Reinvestir em Portugal é, para mim, tanto um gesto de retribuição como uma aposta estratégica num ecossistema com enorme margem de crescimento.

“O setor dos media está a sofrer uma revolução estrutural, desde os modelos de negócio à forma como o conteúdo é consumido”.

Foi Chief Revenue Officer da WarnerMedia e liderou o lançamento da HBO Max. Que aprendizagens retira destas experiências, num momento tão crítico de transformação no setor dos media?
Uma das maiores aprendizagens é que a transformação genuína exige coragem, visão estratégica e uma execução disciplinada. O setor dos media está a sofrer uma revolução estrutural, desde os modelos de negócio à forma como o conteúdo é consumido. Na WarnerMedia, percebemos que o futuro passava por integrar conteúdo premium, tecnologia acessível e uma experiência personalizada. A HBO Max materializou essa visão. Outra grande lição foi a importância de cultivar agilidade organizacional e uma cultura direcionada para a inovação, sem as quais é impossível responder às exigências de um consumidor em constante evolução.

Conseguiu transformar a Otter Media numa empresa rentável, ajudando a criar dois unicórnios. O que esteve na base desse sucesso? Estratégia, timing, cultura…?

O sucesso da Otter Media apoiou-se em três pilares: estratégia adaptativa, uma equipa motivada com uma cultura pronta para a execução e apostas bem definidas. Compreendemos que a estratégia deve evoluir com o mercado e que a cultura é o que torna qualquer plano exequível. À medida que a indústria mudou, a nossa equipa assumiu riscos calculados, ao investir em ideias nativas digitais e apostar, tanto nas pessoas, como nos projetos. Na fase um, demos prioridade a um rápido crescimento; na fase dois, ultrapassámos o “crescimento a todo o custo” para uma expansão mais inteligente e focada.

Eu não criei a visão, essa veio dos nossos fundadores, e foi a convicção da equipa que orientou cada ação. O meu papel foi navegar pelas decisões difíceis e guiar a empresa rumo a duas missões significativas: a venda da Crunchyroll por 1,175 mil milhões de dólares e a aquisição da Hello Sunshine por mais de 900 milhões de dólares. Estes resultados refletem a nossa estratégia adaptável, cultura empoderada e tomada de decisões ajustadas ao momento.

“E o negócio nasce exatamente dessa confluência, da capacidade de transformar criatividade e dados em valor real”.

Sempre operou na confluência de setores criativos e tecnológicos. Como vê essa ligação entre conteúdo, tecnologia e negócio nos próximos anos?
Estas três dimensões estão cada vez mais interdependentes. O conteúdo precisa da tecnologia para alcançar escala e relevância. A tecnologia necessita de narrativas e experiências humanas para gerar impacto. E o negócio nasce exatamente dessa confluência, da capacidade de transformar criatividade e dados em valor real. No futuro próximo vamos assistir a uma maior integração entre empresas criativas e tecnológicas, em setores tão diversos como o entretenimento, a educação ou a saúde. A disrução virá daqueles que conseguirem articular estes elementos de forma autêntica e estratégica.

O Grupo Evrose pretende ligar Portugal e os EUA através da criatividade, tecnologia e estratégia. Porquê agora? E porquê Portugal?
Porque agora, mais do que nunca, o mundo está interligado, e o talento pode surgir em qualquer lugar. Portugal tem vindo a afirmar-se como um hub criativo e tecnológico com enorme qualidade e atratividade. Existe uma geração preparada para trabalhar com o mundo, a partir de Portugal. A Evrose surge para capitalizar esse momento, criando uma ponte real entre dois mercados que se complementam: o talento e a visão estratégica europeia, com o acesso e escala do mercado norte-americano. Portugal é o ponto de partida ideal para essa ambição global.

Acredita que Portugal tem o talento e as condições certas para gerar empresas com impacto global nestes setores? O que falta?
Sim, o talento existe e já deu provas disso. O que ainda falta é escala, capital e uma cultura mais orientada para o risco e para a internacionalização. Portugal precisa de reforçar os mecanismos de investimento early-stage, atrair mais capital estratégico e criar pontes diretas com os principais mercados. Também é essencial apostar na retenção e atração de talento global. Se alinharmos esses fatores com uma visão de longo prazo, Portugal pode deixar de ser apenas um “hub de serviços” e afirmar-se como criador de empresas com verdadeira projeção internacional.

“Vejo um enorme potencial em áreas como media digital, gaming, inteligência artificial aplicada a conteúdos, edtech e healthtech”. 

Que tipo de projetos ou setores, em Portugal, considera mais promissores para uma ligação direta com o mercado norte-americano?
Vejo um enorme potencial em áreas como media digital, gaming, inteligência artificial aplicada a conteúdos, edtech e healthtech. O setor da sustentabilidade, com soluções tecnológicas e criativas, também tem uma oportunidade clara. Mas o mais importante é a ambição global desde o primeiro dia: pensar em soluções escaláveis, alinhadas com as necessidades e dinâmicas do mercado americano. A ligação já existe; agora é preciso atravessá-la com visão estratégica e capacidade de execução.

É mentor em várias iniciativas através da The Unicorn Factory Lisboa, Instituto Hynes da Universidade de Iona. O que o motiva a apoiar as novas gerações de empreendedores e líderes? E o que procura transmitir?

Entusiasma-me acompanhar a evolução e o crescimento de jovens empreendedores e de organizações, ter a oportunidade de transmitir um pouco do meu conhecimento e experiência de décadas em conglomerados gigantescos, como a AT&T ou a WarnerMedia. Com isso, procuro passar a minha visão para a forma como uma organização deve ser percecionada e gerida.

Gosto sempre de lembrar que as pessoas estão no centro de todo o processo, pelo que é fundamental que estejam sempre a par das decisões que são tomadas ao mais alto nível. Infantilizar as equipas, achar que não estão ou não vão perceber as transformações por que passa uma empresa, é meio caminho andado para perdê-las, com o impacto negativo inerente. É esta a grande mensagem que passo quando faço mentoria. E é fundamental que quem tem a seu cargo funções executivas esteja ciente que este é um aspeto decisivo que separa as água entre o sucesso e o insucesso de uma estrutura.

“O Tribeca não serve para ensinar ou diminuir a qualidade daquilo que se faz em Portugal”.

Como surgiu a ideia de trazer o Tribeca Festival para Lisboa? O que representa esta iniciativa para a cidade e para o país?

Portugal tem tudo para receber um evento como o Tribeca. E tem tudo para retirar dividendos desta troca de experiências. Por um lado, não falta no país talento e criatividade, boas ideias e vontade de as implementar. Por outro lado, a presença de grandes figuras globais do entretenimento, das artes e dos media, ajuda a criar redes de networking, que trarão resultados ao país. A possibilidade de juntar a Whoopi Goldberg ao Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, não serviu apenas para falar sobre o humor, promoveu sinergias.

Mas também importa salientar que os profissionais portugueses não devem nada aos profissionais de outras latitudes. O Tribeca não serve para ensinar ou diminuir a qualidade daquilo que se faz em Portugal. Mas, também pela dimensão do mercado, é fundamental que se criem condições para aumentar a massa crítica nacional, chegar a outros países, dar a conhecer o que de melhor se faz. E, com isso, ganhar escala e capacidade de continuar a desenvolver projetos que, de outra forma, poderão não ganhar vida.

O Tribeca é mais do que cinema: é também inovação e negócio. Que impacto espera gerar ao criar este tipo de plataforma em Portugal?

Espero que, depois de acompanharem muitos dos encontros, workshops e debates que o Tribeca fomenta, os decisores empresariais, os empreendedores, os profissionais do setor das artes, e também da comunicação, percebam a importância de ir a jogo unidos. Que as sinergias permitem chegar a mais públicos. Que a concorrência é importante, mas que as parcerias dão uma dimensão que, de outra forma, nunca conseguirão alcançar.

Se juntarmos a qualidade da oferta que se verifica em Portugal a uma estratégia adequada quanto à forma de promover e exportar para outros mercados, então estaremos prontos para alcançar um ainda maior sucesso do que aquele que se tem verificado nos últimos anos, com tantos e tão bons artistas portugueses a alcançarem notoriedade fora de portas. Era esse o grande objetivo com o anúncio do Tribeca em Portugal, bem como com a decisão de regressar este ano, depois do desafio que foi avançar com o festival em 2024; e continuará a ser esse o impacto que espero alcançar no futuro.

Como vê o futuro das plataformas de streaming, da propriedade intelectual e dos novos modelos de negócio criativo? Há espaço para mais inovação?

Há sempre espaço para a inovação, para desenvolver novas ideias, para ir mais além. Quando as plataformas de streaming surgiram, há cerca de 20 anos, não sonharíamos com o seu real impacto, nem na forma como evoluiriam ao longo deste período. Por isso, sei que continuarão a apresentar novas soluções e a responder a desafios extraordinários.

Mas tudo isto apenas fará sentido se o modelo de negócios também evoluir. O que se fez nos EUA, com a criação da plataforma Hulu, que resultou de uma joint-venture entre a News Corporation (liderada por Rupert Murdoch), a NBC Universal e a Walt Disney Company, é um paradigma daquilo que tem de ser o setor. Mas que, muitas vezes, ainda não se faz ou não se compreende. A concorrência é salutar? Claro, apenas assim se evolui e cresce. Mas, em certas circunstâncias, a união de esforços visa alcançar outros objetivos. E, assim sendo, há que o fazer sem ter quaisquer dúvidas ou receios.

Perante isto, o futuro passa cada vez mais pelo streaming. O desporto já o percebeu e cresce o número de jogos das mais variadas modalidades, combates ou corridas automóveis que recorrem a estas plataformas para disseminar o seu produto por públicos mais vastos. A música não fugirá à tendência. A televisão tradicional perde cada vez mais audiência, atraída, inclusivamente, pelas plataformas de streaming que esses mesmos canais oferecem. Ver determinada série, jogo ou concerto, a qualquer hora, local, com definição do formato e tecnologia de visualização, bem como câmara ou câmaras escolhidas para o efeito, mais do que o futuro, é já o presente.

“O intercâmbio de ideias e experiências com pessoas de outras culturas empresariais é um know how fantástico para quem quer melhorar o seu produto”.

Que mensagem deixaria aos portugueses que acreditam que é possível ter impacto global, a partir de Portugal?

Não desistam, acreditem sempre nas suas qualidades, no seu projeto. Tenham uma visão a larga escala, não se cinjam às fronteiras de Portugal. O intercâmbio de ideias e experiências com pessoas de outras culturas empresariais é um know how fantástico para quem quer melhorar o seu produto. E, depois, a possibilidade de desenvolver um negócio que possa resultar globalmente traz um entusiasmo e uma margem de evolução que merecem ser aproveitados.

Este é um país com uma história de descoberta, de partida em busca de novos mundos, de melhor vida, de outras condições. É um legado que se encontra no nosso ADN, desfrutemo-lo, aproveitemo-lo. Sem temor, mas com respeito por quem nos recebe e pode ajudar a chegar mais além, poderemos conseguir aquilo a que nos propomos.

Respostas rápidas: 
Maior risco: Decidir, há três anos, abandonar a vida corporativa sem um plano, assim como os meus pais fizeram, ao deixar o país que conheciam e amavam à procura do desconhecido.
Maior erro: Não ter dado saltos maiores logo no início como fundar uma empresa mais cedo, investir a longo prazo e pensar de forma mais ambiciosa.
Maior lição: O tempo não está a nosso favor; achamos que temos mais, mas mal damos conta, já passou um ano, os nossos filhos cresceram e aquela oportunidade de há cinco anos ficou para trás.
Maior realização: Ser pai e educar os meus filhos com valores sólidos, aspirações ambiciosas e plena consciência das suas raízes.

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