Entrevista/ “Não podemos permitir que a tecnologia apague o lado humano da medicina”

Margarida Lobo Antunes, diretora clínica do Hospital Lusíadas Lisboa

“O Hospital do Futuro irá depender cada vez mais da inteligência artificial e das tecnologias digitais”. Esta é a visão de Margarida Lobo Antunes, que assumiu recentemente o cargo de diretora clínica do Hospital Lusíadas Lisboa. Em entrevista ao Link To Leaders, a pediatra fala dos desafios da sua nova função e do impacto das tecnologias no setor da saúde.

Desde julho deste ano, a direção clínica do Hospital Lusíadas Lisboa passou a estar a cargo de Margarida Lobo Antunes, uma profissional que conta já com mais de uma década de prática clínica na mesma unidade.

A poucos dias de marcar presença na 4.ª edição do C-Health Congress, que terá lugar no Centro Cultural de Belém, a pediatra falou ao Link To Leaders da importância da relação médico-doente, das novas tendências e do impacto dos avanços tecnológicos, e do papel que as start-ups têm assumido no setor da saúde.

Qual o papel do doente como parceiro no processo de avaliação e tratamento da doença?
Nesta nova era, cada vez mais tecnológica, promover uma medicina centrada no doente com um maior envolvimento da sua família no que toca às questões de saúde é um importante desafio. Trata-se de um regressar às origens, ao recordar as palavras do Sir William Osler, pai da Medicina Moderna: “ouve o doente, ele dir-te-á o diagnóstico”. O doente como parceiro na saúde traz inúmeros benefícios para todos. Esta parceria visa garantir que o doente é tratado com dignidade e respeito, o que levará a uma maior satisfação por parte do mesmo e a uma melhor adesão ao tratamento proposto.

Os doentes devem ter um papel ativo nas diversas vertentes dos seus cuidados de saúde. Mudamos o paradigma do “para o doente” ou “ao doente” para “com o doente”. Está demonstrado que os doentes que estão mais envolvidos nos seus cuidados de saúde sentem-se mais realizados, utilizam de melhor forma os serviços de saúde, aderem mais facilmente aos tratamentos e apresentam uma melhor saúde emocional. Nesta parceira, os doentes também têm deveres, como, por exemplo, contribuir para o desenvolvimento e melhoria dos sistemas de saúde, bem como para a formação de futuros profissionais de saúde.

“No futuro a IA poderá ser um auxílio na interpretação de exames de imagem e facilitar o diagnóstico, como, por exemplo, na análise de lesões cutâneas para despiste de cancro de pele”.

Qual o impacto das tecnologias no tratamento das doenças?
O impacto das tecnologias no tratamento das doenças é extraordinário e ainda temos muitas surpresas pela frente. O avanço da tecnologia na Medicina irá contribuir para ações de prevenção mais eficazes, diagnósticos mais rápidos e precisos, e finalmente tratamentos mais seguros, reduzindo riscos e custos. São vários os exemplos da tecnologia na Medicina. A inteligência artificial (IA) já faz parte do quotidiano da medicina nas áreas da segurança e qualidade, nos algoritmos de diagnóstico e no tratamento de doenças. No futuro a IA poderá ser um auxílio na interpretação de exames de imagem e facilitar o diagnóstico, como, por exemplo, na análise de lesões cutâneas para despiste de cancro de pele.

Por seu turno, a telemedicina já muito desenvolvida pelo mundo fora permite o contacto entre o médico e doente através de video-conferências ou apps. Uma maior comodidade, facilidade de utilização e a capacidade de encurtar distâncias são algumas das vantagens, mas isso terá implicações na relação de proximidade médico-doente. Também a realidade virtual, utilizada massivamente em jogos, poderá ser utlizada na formação de profissionais de saúde, como, por exemplo, cirurgiões num cenário virtual e ausente de riscos ou ainda na abordagem da dor aguda/crónica ou perturbações de ansiedade. Muitos hospitais já recorrem às impressosas 3D para a criação de próteses, transplantes de órgãos e reparação de tecidos. Por fim, a cirurgia robótica que permite intervenções minimamente invasivas, de maior precisão com menos complicações e infeções. Já para não falar do Dr. Google, esse colega que nunca trabalhou num hospital, não é responsável pelo que diz, não se cansa ou zanga, tem uma paciência sem limites e está disponível 24 horas.

Quais os desafios que enfrenta o sistema de saúde português nos dias de hoje?
O sistema de saúde português enfrenta inúmeros desafios, começando pela dicotomia saúde pública versus privada. A saúde sendo um bem essencial para qualquer cidadão é sempre um problema complexo para qualquer Governo. O sistema nacional de saúde confronta-se com tempos de espera exagerados para consultas e cirurgias, falta de orçamento para investimentos em infraestruturas e uma desmotivação por parte dos seus profissionais.

Existem cinco desafios para o sistema de saúde português, nomeadamente: garantir a eficiência e disponibilidade dos recursos por forma a assegurar um acesso universal e atempado aos cuidados de saúde; apostar em tecnologias de informação para garantir uma sustentabilidade tecnológica; mais investimento na promoção de saúde; aumentar a literacia em saúde, o que irá permitir um aumento do acesso aos serviços de saúde estimulando por outro lado   uma eficiente utilização de recursos e responder ao envelhecimento da população com uma percentagem de sujeitos ativos cada vez menor.

“A tecnologia poderá ser uma importante mais-valia, mas voltando ao Sir William Osler, muitas vezes é «mais importante conhecer o doente que tem a doença do que conhecer a doença que o doente tem»”.

Como estamos a incorporar a tecnologia na relação médico-doente? Qual tem sido o papel do Hospital dos Lusíadas Lisboa neste sentido?
A tecnologia deve ser apenas uma ferramenta na abordagem do doente e não pode substituir a importância da relação médico-doente. Cada doente tem a sua história, o seu passado, os seus medos e ansiedades. Na prática clínica, o diagnóstico da doença deve começar pela colheita da história clínica e o exame físico do doente, mas estes estão cada vez mais menosprezados pela abundância e facilidade dos exames auxiliares de diagnóstico. Muitas vezes o médico tem pouco tempo para ouvir, o doente não sabe explicar as suas queixas e é através de uma imagem que se faz o diagnóstico. A tecnologia poderá ser uma importante mais-valia, mas voltando ao Sir William Osler, muitas vezes é “mais importante conhecer o doente que tem a doença do que conhecer a doença que o doente tem.”

O Hospital dos Lusíadas tem uma missão que é de ajudar as pessoas a terem vidas mais saudáveis e contribuir para que o sistema de saúde funcione melhor para todos. É através de valores bem definidos, integridade, compaixão, relacionamento, inovação e desempenho, que procuramos desenvolver toda a nossa atividade. O lema “Sabemos Cuidar” faz-me recordar uma citação de um professor de medicina de Harvard, Dr. Francis Weld Peabody (1925): “The secret of the care of the patient is in caring for the patient”.

As novas tendências estão a contribuir para uma maior proximidade médico-doente? Não há o risco de caminharmos para uma relação pouco humana?
As novas tendências e os avanços tecnológicos obrigam a que todos os profissionais de saúde, bem como os doentes e as suas famílias estejam permanentemente vigilantes para garantir que se preserve a relação única e privilegiada entre o médico-doente. Não podemos permitir que a tecnologia apague o lado humano da medicina.

Recordando o meu pai, João Lobo Antunes, “não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão”.

Considera que as start-ups têm dado um contributo vital á área da saúde? Quer falar de algum exemplo? No Digital Health Forum 2019 três start-ups portuguesas estavam na lista das empresas vencedoras: Nutrium, Tonic App e ShopAI. Por exemplo, a Nutrium é um software para nutricionistas e os seus pacientes, que permite um acompanhamento mais próximo e personalizado. Já a Tonic App fornece uma ferramenta digital de saúde com a finalidade de ajudar a comunidade médica a diagnosticar e tratar os seus doentes.

“Os centros hospitalares assumem-se como aceleradores de start-ups porque necessitam de ser mais eficientes, mais seguros e mais económicos”.

Considera que os centros hospitalares podem assumir-se como aceleradores de start-ups?
Os centros hospitalares assumem-se como aceleradores de start-ups porque necessitam de ser mais eficientes, mais seguros e mais económicos. Já sabemos que a necessidade é a mãe das invenções.

O Lusíadas Saúde já participou no WebSummit, dando a conhecer s suas diferentes áreas de atuação e partilhando vários exemplos de inovação tecnológica. Além disso, alguns projetos de start-ups têm sido testados nos Lusíadas, como o Nutricritical. De que forma tem o Hospital dos Lusíadas Lisboa tem trabalhado com start-ups?
A Nutricritical apresentou-nos um projeto inovador na área da Nutrição, que se baseava numa ferramenta mobile de avaliação do risco e estado nutricional, assim como o planeamento de todo o suporte nutricional à cabeceira do doente. De facto, apoiamos projetos inovadores e parcerias, profícuas para todos. A área da Nutrição do Hospital Lusíadas Lisboa tem seguido esse exemplo.

Que projetos já implementou e outros que espera vir a implementar no Hospital dos Lusíadas?
Iniciei as minhas funções como diretora clínica no dia 1 de julho, portanto assumi este cargo há relativamente pouco tempo. Desde então tem sido um tempo de avaliação e de concretização de projetos que já estavam em andamento. Desde já posso identificar o objetivo de juntar o Hospital Lusíadas Lisboa à elite de Unidades Hospitalares Europeias que alcançaram o nível máximo de maturidade tecnológica da escala EMRAM da HIMSS Analytics. O nível 7 desta escala, desenvolvida por uma das principais auditoras internacionais de introdução de tecnologia em saúde, só foi alcançado por três hospitais europeus, incluindo o Hospital de Cascais, que é gerido pela Lusíadas Saúde em regime de parceria público-privada. Já fomos certificados com o nível 6 e assumo o objetivo de ver o Hospital Lusíadas Lisboa juntar-se à elite do nível 7 sob a minha liderança clínica.

O que mais tem evoluído no Hospital Lusíadas de Lisboa?
Penso que não poderemos identificar apenas uma área, pois muito do nosso trabalho passa por uma atualização constante dos cuidados que prestamos, seja ao nível de infraestruturas, seja ao nível da atualização dos próprios profissionais, estamos sempre atentos à evolução da medicina e às formas que nos permitem prestar melhores cuidados, mais seguros e capazes de proporcionar uma experiência cada vez melhor a quem nos procura. E penso que a história do hospital mostra isso mesmo, desde a expansão, com um Edifício II dedicada ao Ambulatório, passando pela renovação da Unidade de Atendimento Urgente, em 2017, até às novidades das últimas semanas, como a expansão do Bloco de Partos ou o tratamento inovador que permite proteger os doentes cardíacos que sofrem de fibrilhação auricular e não podem recorrer a medicamentos anticoagulantes.

“Mas, se tiver de ser realista, não tenho dúvida que o Hospital do Futuro irá depender cada vez mais na inteligência artificial e tecnologias digitais”.

Como é para si o Hospital do Futuro?
Gostaria de pensar que o Hospital do Futuro não fosse um espaço deixado ao abandono pelos profissionais de saúde e os doentes. Gostaria de pensar que o Hospital do Futuro fosse um projeto resultante da parceira entre os profissionais de saúde, os doentes e as respetivas famílias. Mas, se tiver de ser realista, não tenho dúvida que o Hospital do Futuro irá depender cada vez mais da inteligência artificial e das tecnologias digitais. Mas será que assim poderemos ter serviços de saúde de elevada qualidade, mais acessíveis e com menores custos? As novas tecnologias irão permitir um acompanhamento à distância e uma monitorização contínua sem a necessidade de sair de casa. Será que o Hospital do Futuro ficará nas nossas casas?

Respostas rápidas:
O maior risco:
  Perder o verdadeiro foco que é simplesmente, ouvir e tratar o doente.
O maior erro:
  A incapacidade de reconhecer e aceitar as nossas limitações.
A maior lição:
  Ter a coragem e humildade de reconhecer os nossos erros.
A maior conquista:
 Aprender a ser flexível e a trabalhar em equipa.

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