Opinião

Marte é um lugar na Terra

André Marquet, cofundador da Productized

No artigo de hoje analiso como o longoprazismo, uma postura ética que dá prioridade à melhoria do futuro a longo prazo, muito em voga nos circuitos da intelligentsia de Silicon Valley, e inspirado em filósofos utilitaristas, pode ser contraproducente face aos desafios que existem em determinadas regiões do globo – em particular em África – e como movimentos alternativos, como o investimento e a aposta em empreendedores locais, nestas regiões, pode ser uma forma mais eficaz de criação de riqueza.

Não sei se há vida em Marte, mas sei que há muita vida em África! O continente berço da humanidade, aquele que tem uma população mais jovem, e também com maior crescimento populacional. Espera-se que países como a Nigéria venham a ultrapassar a população dos EUA, ainda antes de 2050 e cidades como Nairobi e o Cairo sejam as mais populosas do mundo. Até ao final do século, o continente terá ultrapassado a população da Ásia.

Cena típica de mercado no Sul de Luanda. Crédito: Rafael Daron, 2023

Para um aficionado confesso do espaço como eu, segui com atenção os acontecimentos das últimas semanas de 2022, a fazer lembrar os melhores dias da Apollo, o lançamento do programa Artemis, com uma órbita lunar da cápsula Oríon, que irá permitir o regresso das expedições tripuladas à Lua até meados desta década.

Como o investigador Hans Rosling tão bem explica no seu livro publicado postumamente “Factfulness – Dez razões pelas quais estamos errados acerca do mundo”, as coisas também estão melhor do que pensamos em África. Apesar de tudo um caso de sucesso de desenvolvimento, dado que muitos países do continente têm vindo a registar melhorias significativas em muitos indicadores de desenvolvimento – e isto deve ser um fator de esperança. África já não é o “continente perdido”, expressão tão popular que cresci a ouvir nos media!

Obviamente que apesar dos enormes progressos das últimas décadas, ainda é enorme o desafio de trazer uma larga base da pirâmide da população de baixos rendimentos para níveis aceitáveis em termos de nutrição, saneamento, acesso a água potável, educação, mobilidade, saúde… tal como expressos pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estabelecidos pelas Nações Unidas para a Agenda 2030.

Nunca a humanidade esteve tão bem preparada para responder tecnologicamente a este desafio. Por exemplo, as novas redes de telecomunicações, como sejam as celulares ou a internet via satélite, permitiram trazer o acesso a comunicações muito mais rapidamente do que as mais otimistas das projeções. Atualmente, a maioria da população subsaariana africana tem telemóvel – e muitos são smartphones – podendo, por isso, aceder a serviços que até há apenas alguns anos seriam impensáveis. Tecnologias como as carteiras eletrónicas estão a permitir o facilitar de transações económicas de populações inteiras que nunca foram bancarizadas.

O acesso a ferramentas como o Zoom, o Youtube, chats e e-books permitem que qualquer jovem que cresça no continente africano, tendo o contexto socioeconómico certo e com vontade, possa hoje aceder às formações mais avançadas, em muitos casos, iguais à dos seus congéneres dos países mais desenvolvidos, e, em muitos casos, de forma completamente gratuita e, muitas vezes, começar a trabalhar remotamente para economias mais desenvolvidas que podem pagar melhores salários e condições de trabalho – isto não é apenas uma proposta teórica, mas sim a realidade do terreno como tive a oportunidade de testemunhar.

Países como a Nigéria já são os principais fornecedores de talentos em algumas plataformas de contratação online em língua inglesa. Num continente onde a maioria da população tem menos de 18 anos, reside na educação um dos maiores desafios, mas também uma das maiores oportunidades, para aplicação de tecnologia por parte de empreendedores e de instituições públicas e privadas.

Não obstante os desafios dos movimentos de terrorismo, agora que findaram muitos dos conflitos que minaram o continente na sequência dos processos independentistas, parecem estar finalmente a pacificar-se alguns grupos influentes, dos quais, por exemplo, o famigerado fundador da cripto-corretora FTX, Sam Bankman-Fried fazia parte. Influenciados pelo longoprazismo têm defendido, entre outras coisas, que devem ser alocados os nossos melhores recursos a tornar a espécie humana interplanetária, criando colónias em Marte, mesmo que tal seja feito à custa do investimento no bem-estar das gerações contemporâneas, porque defendem que, numa perspetiva de longo prazo, estaremos a agir no melhor interesse das gerações vindouras e dos milhares de milhões de humanos que ainda estão por nascer.

Ora, às perspetivas de colonização marciana do longoprazismo devemos responder com uma visão de tecno-pragmatismo, a nossa responsabilidade deve ser em primeira instância para com nós próprios, para com os nossos “filhos” e com os nossos netos. Garantir que usamos a melhor tecnologia disponível para lhes deixarmos as condições para um mundo melhor, mais rico, com menos pobreza e misérias ambientais e humanas.

Por isso, trabalhar com urgência desnecessária no desenvolvimento de colónias em Marte, e o esforço multigeracional que tal implica, dizendo que podemos simplesmente ignorar as necessidades prementes atuais não faz para mim sentido. O que também não deve ser entendido como defender que devemos parar o esforço dos programas espaciais tripulados. Antes pelo contrário, devemos evitar cair no “dilema de Apollo”, os 50 anos que intermediaram entre a última ida do Homem à Lua, em 1973, e o regresso da SLS à órbita lunar em 2022 – ter visão não é sinónimo de ter urgência, mas sim de ter a perseverança para se ir progredindo gradualmente – o esforço de navegação oceânica foi realizado durante quatro gerações até à descoberta do caminho marítimo para a Índia, e o estabelecimento da presença portuguesa no Índico.

Desenvolver, progressivamente, as condições para regressar à Lua, e depois a Marte, poderá permitir inventar muita tecnologia de duplo-uso espacial e civil que possa ir extravasando para as necessidades destas populações. Da mesma forma como os programas espaciais das décadas de 60 e 70 do século passado permitiram o desenvolvimento de tecnologias de telecomunicações e energia que permitem assegurar os atuais sistemas de comunicação por satélite, os painéis solares ou as células de combustível, é essencial assegurar que os nossos empreendedores as possam explorar para trazer serviços e produtos inovadores que irão melhorar substancialmente as condições de vida, e, em particular, no continente africano – por isso digo, que Marte ainda é um lugar na Terra.

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André Marquet

André Marquet

André Marquet é formado em Engenharia de Telecomunicações e mestre em informática, pelo ISCTE-Universidade de Lisboa. Iniciou a sua carreira como investigador de redes informáticas no INESC Lisboa. Trabalhou na Tunísia para a EFACEC. Ocupou cargos de consultor na AICEP, e na Nokia. Abraçou a Gestão de Produto na Wit Software e Huawei. Em 2009 trouxe as conferências TEDx para Portugal e cofundou e teve uma função executiva na Beta-i, um hub de start-ups de inovação. Atualmente, atua como líder... Ler Mais..

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