Entrevista/ “Ligar ciência e gestão é uma forma eficaz de aumentar a capacidade adaptativa das organizações”
 
                                                “Proponho olhar para as empresas como “sistemas vivos”. Afinal, tal como a economia, as sociedades e até as civilizações, são “sistemas complexos adaptativos”, afirma Márcia Esteves Agostinho. Em entrevista ao Link to Leaders explica como a ciência pode contribuir para melhorar a gestão das empresas e organizações. E fazer melhores líderes.
Autora do livro “Gerir como um Cientista”, a brasileira Márcia Esteves Agostinho, professora e investigadora interdisciplinar, e doutoranda em História pela Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, mostra como aplicar os conceitos das ciências da complexidade no contexto organizacional.
Na sua visão, a ciência pode e deve ser uma aliada na condução de negócios. E tal como a ciência, a gestão deve evoluir constantemente, procurando soluções inovadoras e adaptativas. Mostra como os princípios científicos podem ser aplicados à gestão, e acredita que as competências-chave para que um líder seja capaz de criar um ambiente adaptativo são curiosidade, pensamento crítico e visão sistémica. Sem esquecer competências emocionais, como empatia e capacidade de agregação. Leia a entrevista.
O que a motivou a escrever “Gerir como um Cientista” e a propor a ciência como estratégia de gestão?
Acredito que um dos maiores desafios da gestão em tempos de incerteza (como o que vivemos) é garantir que as organizações sejam capazes de se adaptar rapidamente. E adaptar- se significa aprender e aplicar o que se aprendeu de forma consistente. A gestão não é fruto de instinto, mas de conhecimento coletivo. E a ciência oferece precisamente isso: conhecimento acumulado ao longo de gerações, testado e validado pela experiência. O seu método, baseado na experimentação, é particularmente útil em ambientes incertos, onde testar, errar, corrigir e refinar é essencial. Ligar ciência e gestão é, portanto, uma forma eficaz de aumentar a capacidade adaptativa das organizações.
Como surgiu o interesse por esse campo e de que forma ele pode ser um guia prático para líderes?
Desde a adolescência que tenho muita curiosidade pelos fenómenos emergentes. Ou seja, aquelas coisas que surgem espontaneamente, sem intenção ou plano prévio. Lembro-me de, aos 12 anos, ter ficado maravilhada ao perceber que o ferro presente no nosso sangue é o mesmo elemento que compõe um simples parafuso. Nesse momento decidi estudar Química (de facto, licenciei-me em Engenharia Química).
Mas pode perguntar-se: “O que é que isso tem a ver com complexidade?” As coisas mais interessantes da vida resultam da recombinação de alguns poucos blocos fundamentais: pouco mais de uma centena de elementos químicos forma toda a matéria do universo; 26 letras permitem-nos transmitir qualquer ideia em língua portuguesa; alguns indivíduos a trabalhar em conjunto dão origem a uma organização. As ciências da complexidade ajudam-nos a compreender fenómenos coletivos emergentes como estes e muitos outros.
Um “guia prático”? O que proponho é uma forma alternativa de compreender as organizações e os seus problemas, distinguindo o que é simples do que é complexo. Julgo que a minha contribuição está mais no plano estratégico, onde ocorrem as transformações culturais. É como consequência dessa mudança de visão que conseguimos transformar as práticas dentro da empresa.
“Gerir uma organização como um “sistema vivo” é muito diferente de geri-la como uma “máquina”, como se faz na administração clássica”.
No livro, apresenta as empresas como “sistemas vivos”. O que significa, na prática, gerir uma organização com essa visão?
Sim, proponho olhar para as empresas como “sistemas vivos”. Afinal, tal como a economia, as sociedades e até as civilizações, são “sistemas complexos adaptativos”. Esta expressão refere-se a uma categoria de sistemas que são capazes de transformar sua estrutura e comportamento para se ajustarem às mudanças do ambiente. Mais do que isso: estes sistemas podem até influenciar o próprio ambiente a seu favor. É precisamente isso que procuro mostrar aos gestores.
Gerir uma organização como um “sistema vivo” é muito diferente de geri-la como uma “máquina”, como se faz na administração clássica. As máquinas são projetadas para funcionar de uma determinada forma e assim o farão até que novas instruções sejam definidas. Já os sistemas vivos organizam-se internamente sem a intervenção de agentes externos. São capazes de aprender, regenerar-se e adaptar-se para enfrentar as pressões do ambiente.
Embora a gestão mecanicista tenha sido extremamente útil para o crescimento económico nos últimos cem anos, as suas limitações tornam-se evidentes em contextos de grande imprevisibilidade. Mas, quando a centralização das decisões se mostra ineficaz, ainda é possível recorrer à inteligência coletiva da organização. É aí que entra em cena a “gestão adaptativa”, como eu gosto de chamar a nossa abordagem gerencial.
Um dos pilares que destaca é porque é que este conceito é tão essencial para criar organizações adaptativas e resilientes?
Correto. A “autonomia” está na base da “gestão adaptativa”. O princípio é simples. Em condições propícias, indivíduos autónomos tendem a contribuir com a sua capacidade de julgamento para a solução de problemas. Dado que os indivíduos são diversos, com experiências, personalidades e conhecimentos distintos, a inteligência coletiva que emerge das interações entre eles tende a gerar soluções mais eficazes e inovadoras. Mas, repito, sob condições propícias. A importância dos estudos da complexidade está em ajudar-nos a identificar quais são essas condições.
“O maior desafio para os líderes é criar um ambiente propício para que indivíduos e equipas cooperem espontaneamente (….)”
Fala também em auto-organização e cooperação. Quais são os maiores desafios que os líderes enfrentam ao tentar implementar estes princípios no dia a dia?
Não basta que as pessoas tenham autonomia. É necessário que estejam também dispostas a cooperar para que surjam vantagens adaptativas. Quando o resultado das suas ações se revela benéfico para os próprios indivíduos, o comportamento cooperativo tende a manter-se e até a ser imitado. Nesse ponto, juntam-se formando um “agregado”. Isto é, um coletivo que passa a comportar-se como um indivíduo num nível de organização superior. Um exemplo é um departamento constituído por equipas coesas e interdependentes.
O maior desafio para os líderes é criar um ambiente propício para que indivíduos e equipas cooperem espontaneamente, assumindo responsabilidade pelas suas ações. Só assim a empresa será capaz de se auto-organizar. E é precisamente na “auto-organização” que reside o segredo dos sistemas complexos adaptativos. É dessa forma que eles se adaptam e sobrevivem, sem necessidade de intervenção superior.
No seu livro apresenta um estudo de caso sobre empresas de biotecnologia. Que lições retirou dessa experiência que possam ser aplicadas por líderes de outros setores?
Líderes e empreendedores de todos os setores têm o papel de gerir empresas que são, na realidade, sistemas complexos “semiartificiais”. São, ao mesmo tempo, artefactos que projetamos e organismos que ganham vida própria. Daí o desafio, sobretudo para os empreendedores, de equilibrar intervenção com auto-organização.
A biotecnologia é um caso de sucesso nesse sentido, pois utiliza o potencial auto-organizador dos sistemas naturais para a produção de valor económico. A fabricação de vacinas, antibióticos e cerveja ilustra bem este equilíbrio no processo produtivo. Para além disso, os empreendimentos biotecnológicos oferecem também exemplos de como equilibrar intervenção e auto-organização nos processos de gestão. Uma das principais lições é fomentar uma “cultura científica” dentro da empresa, estimulando a curiosidade e a experimentação.
Que competências considera fundamentais para os líderes de hoje?
Do ponto de vista intelectual, acredito que as competências-chave para que um líder seja capaz de criar um ambiente adaptativo são: curiosidade, pensamento crítico e visão sistémica. Porém, isso não é suficiente. É necessário dispor também de certas competências emocionais, como empatia e capacidade de agregação.
“(…) os conhecimentos das ciências da complexidade ajudam-nos a compreender a dinâmica das mudanças e a melhorar a nossa tomada de decisão”.
Num mundo marcado por crises globais, disrupção tecnológica e transformações sociais, como pode a Teoria da Complexidade ajudar as organizações a navegar nestas mudanças?
Estas mudanças decorrem do próprio processo de modernização, o qual emerge como um típico fenómeno complexo, isto é, a partir de múltiplas interações em retroalimentação. Portanto, os conhecimentos das ciências da complexidade ajudam-nos a compreender a dinâmica das mudanças e a melhorar a nossa tomada de decisão. Mais ainda, esses conhecimentos permitem-nos emular sistemas que são naturalmente mais robustos e flexíveis: os chamados “sistemas complexos adaptativos”. Tomando um organismo vivo como modelo, podemos “copiar” os seus princípios de funcionamento para reestruturar as nossas empresas e promover comportamentos mais eficazes e adaptativos.
Muitas vezes, as empresas ainda operam com modelos tradicionais de gestão. Como convencer os líderes mais resistentes a adotar uma abordagem científica e inovadora?
Esta abordagem é uma oportunidade. É um caminho alternativo para aqueles que estão insatisfeitos com os resultados que os modelos tradicionais de gestão proporcionam. É importante reconhecer que todos nós temos uma certa inércia. Para nos convencermos a mudar é necessário que o benefício esperado do novo modelo compense tanto os custos da ineficácia do modelo antigo como os investimentos necessários para efetuar a mudança.
A transição de uma gestão mecanicista para uma gestão adaptativa exige um esforço que nem todos os líderes estão dispostos a fazer. Ela requer quatro tipos de aprendizagem, cada uma ligada a um aspeto das transformações ocorridas nas últimas décadas.
São elas: “aprendizagem estratégica”, para aproveitar os avanços das novas tecnologias digitais; “aprendizagem tecnológica”, para agregar valor com a aproximação entre ciência e tecnologia; “aprendizagem cultural”, para viabilizar o diálogo multicultural num mundo de crescente mobilidade de capitais para investimento; e “aprendizagem social”, para lidar com clientes e colaboradores oriundos de uma nova classe média mais educada e informada.
No capítulo final, lança uma provocação: “A quem as organizações servem?”. Na sua visão, qual deve ser a resposta?
Nas reuniões de planeamento estratégico costuma surgir uma pergunta semelhante: “Para que serve a empresa?” Embora as respostas frequentemente passem por “gerar lucro” ou “remunerar o capital”, mais cedo ou mais tarde surge a discussão sobre a sua missão e visão. Isto porque o lucro é apenas um meio para que um negócio sobreviva e cumpra a sua finalidade primordial, que, na minha opinião, é atender às necessidades das pessoas.
Ao alterar a formulação da pergunta, convido os gestores a refletir sobre quem são essas “pessoas” a quem as empresas devem servir. Serão apenas os clientes e consumidores? Ou os colaboradores também são beneficiados pela existência da empresa? E as pessoas que fornecem serviços ou produtos à empresa? E aquelas que simplesmente vivem, trabalham ou investem na região onde a empresa se insere? Quem são, afinal, as pessoas que afetam e são afetadas pelas empresas? É importante refletir sobre isso quando olhamos a empresa como um sistema complexo adaptativo.
Que impacto espera que esta reflexão tenha nos gestores que leem o livro?
Os gestores são cobrados por desempenho e é natural que se concentrem nos aspetos mais diretamente relacionados com as suas responsabilidades. Contudo, para que consigam entregar desempenhos satisfatórios em cenários mais complexos, é necessário ter um olhar sistémico. É preciso, como se costuma dizer, ver tanto as árvores como a floresta.
Espero que esta reflexão leve o leitor a reconhecer as relações entre os diversos atores e a interdependência existente em todas as escalas. O desempenho do seu trabalho e a capacidade da sua empresa se adaptar às novas condições dependem dessas pessoas. Todas elas, de uma forma ou de outra, são influenciadas por mudanças na sociedade, como o aumento do fluxo de informação e do nível de escolaridade.
Em setembro, estará em Lisboa no evento Beyond the Lab. O que os participantes podem esperar da sua participação?
A ideia é partilhar um pouco do que tenho estudado nas últimas três décadas sobre organizações e sistemas complexos. Vou apresentar princípios básicos do funcionamento desses sistemas que ajudam a repensar a gestão. Aqueles que estiverem presentes no evento terão a oportunidade de conhecer em primeira mão o modelo dos “5 R’s da Gestão para Tempos Incertos”.
Que mensagem gostaria de deixar aos jovens líderes que iniciam agora o seu percurso e procuram gerir de forma mais adaptativa e orientada pela ciência?
Procurem controlar menos e influenciar mais!
Respostas rápidas:
Maior risco: Casar-me (risco do qual não me arrependo).
Maior lição: É possível recomeçar.
Maior erro: Ter medo de errar.
Maior lição: É possível recomeçar.
Maior conquista: Minha família.








