Entrevista/ “Liderança não tem a ver com estilo ou tipo de personalidade, mas sim com caráter”

“Liderança não tem tanto a ver com poder, mas sim com autoridade. Pode ter-se poder, mas não ter autoridade”, diz Cátia Sá Guerreiro, diretora do programa One Step Ahead, da AESE, defendendo ainda que “ninguém nasce líder! Muito menos alguém nascerá líder bem-sucedido”. Daí a importância da formação, diz.
Com o programa de liderança no feminino OSA – One Step Ahead, da AESE – Business School, prestes a iniciar uma nova edição, Cátia Sá Guerreiro, professora e diretora do programa, fala da formação como uma ferramenta fundamental para potenciar competências e desenvolver talento, e considera que “uma liderança bem-sucedida tem de ter por base o caráter e a autoridade”.
Com um percurso profissional multifacetado – é licenciada em enfermagem, doutorada em saúde internacional, passou por missões de voluntariado, esteve ligada ao Alto Comissariado da Saúde e integra o grupo Global Health and Tropical Medicine, entre outras experiências profissionais – desde 2014 que coloca a sua expertise no trabalho que desenvolve na AESE, onde dirige o OSA.
Agora, coordena um programa desenhado para mulheres executivas que pretendam explorar e alavancar o seu potencial de liderança, porque entende que “refletir, estudar, debater a liderança feminina contribui para fortalecer as mulheres para os seus exercícios de liderança e também para a tomada de consciência de que todos temos a ganhar com a equidade de acesso ao exercício de funções de liderança”.
Liderança feminina versus liderança masculina. O que as une e o que as afasta?
Une-as o conceito. Afasta-as o modo de operação de cada um dos géneros. Liderança é liderança, é um conceito assexuado – é o que é. E o conceito não é diferente para mulheres ou homens. O que difere poderá ser a operacionalização do conceito. O modo masculino e o modo feminino, próprios e específicos de cada um – o que nos torna diferentes, mas complementares – manifesta-se, naturalmente, no exercício da liderança. Mas isto não é um exclusivo da liderança, é exatamente o que sucede com outros conceitos que operacionalizamos no nosso quotidiano.
“(…) a liderança não tem a ver com o que se faz, mas com o que se é. Ou seja, a liderança é um exercício do caráter.
E quais as regras base para uma liderança bem-sucedida?
Em primeira instância, parece-me fundamental distinguir liderança de poder. Liderança não tem tanto a ver com poder, mas sim com autoridade. Pode ter-se poder (que é conferido, por exemplo, pelo conteúdo funcional do cargo que se ocupa), mas não ter autoridade. Esta refere-se a uma capacidade apreendida ou adquirida, não inata, e que determina a mestria, a qual leva a que outros sigam aquele a quem a reconhecem.
Porém, a regra que me parece mais importante é assumir que a liderança não tem a ver com o que se faz, mas com o que se é. Ou seja, a liderança é um exercício do caráter. Quer isto dizer que liderança não tem a ver com estilo ou tipo de personalidade, mas sim com caráter. James C. Hunter refere, e eu não poderia estar mais de acordo, que 99% das falhas de liderança são falhas de caráter. Assim, na minha ótica, uma liderança bem-sucedida tem de ter por base o caráter e a autoridade – ambos aspetos da nossa humanidade que não nos são inatos, mas que se constroem ao longo da vida.
Quais os pontos fortes de uma liderança feminina?
Em linguagem simples, diria que as qualidades de um bom líder são o respeito, a honestidade, o compromisso, a determinação, o autocontrolo, a humildade, a gratidão e a capacidade de comunicação – com tudo o que cada um deles encerra.
Mulheres e homens somos diferentes em muitos aspetos, desde o sistema endócrino ao neurológico, por exemplo. Isto faz com que algumas características sejam mais evidentes nas mulheres, mas não ausentes nos homens, e vice-versa. Características como orientação à pessoa, tendência à cooperação, liderança horizontal, empatia, capacidade de desenvolver tarefas em multitasking e flexibilização estão descritas na literatura como mais prevalentes nas mulheres, podendo ser enumeradas como potenciadoras das qualidades de uma boa liderança e, portanto, constituindo pontos fortes de uma liderança feminina.
(…) a discriminação existe, tantas vezes mascarada de respeito e simpatia”.
De que forma o programa One Step Ahead pode mudar o atual estado de coisas?
Pelo simples facto de reunir mulheres em torno de temas comuns, numa perspetiva académica e de reflexão conjunta, já existe um contributo para uma mudança, a qual começa pela luta contra o preconceito. E este ainda existe! Embora se verifique uma tendência para a sua redução, o certo é que a discriminação existe, tantas vezes mascarada de respeito e simpatia. Refletir, estudar, debater a liderança feminina contribui para fortalecer as mulheres para os seus exercícios de liderança e também para a tomada de consciência de que todos temos a ganhar com a equidade de acesso ao exercício de funções de liderança.
“Ora ninguém nasce líder! Muito menos alguém nascerá líder bem-sucedido. Nem elas nem eles! Como em tudo na vida, precisamos de aprender(…)”.
Enquanto diretora do programa, como vê o papel da formação executiva no empoderamento das mulheres enquanto líderes bem-sucedidas?
A formação é uma ferramenta fundamental se pretendemos potenciar competências e desenvolver talento. A procura de formação surge da tomada de consciência de que é preciso um improvement ao nível do conhecimento para depois o converter em prática, resultando na desejada competência para. Ora ninguém nasce líder! Muito menos alguém nascerá líder bem-sucedido. Nem elas nem eles! Como em tudo na vida, precisamos de aprender, de repetir atos, de exercitar, de refletir, de cair e recomeçar, para adquirir competência e desenvolver talento. Sendo assim para tudo, é assim também para a liderança feminina. Nesta linha de pensamento, a formação executiva potenciará o talento de mulheres, no sentido da liderança bem-sucedida.
Em traços genéricos, qual a estrutura e quais as metas a que se propõe o One Step Ahead?
O One Step Ahead foi desenhado para mulheres executivas que pretendam explorar e alavancar o seu potencial de liderança. Com recurso a módulos académicos desenhados para o efeito, potenciamos uma liderança diversificada e uma visão de futuro ampla, com os olhos postos em empresas e instituições que quotidianamente procuram responder aos desafios do tempo presente.
Pretende-se que cada participante se descubra enquanto líder, identificando fortalezas, barreiras e aceleradores que promovam a melhoria pessoal e o desenvolvimento de competências de liderança. Com o foco no grande tema da liderança, promove-se o desenvolvimento de um business mindset e confere-se particular destaque à partilha de experiências e ao networking. Finalmente, e sendo um aspeto fundamental, cada participante beneficiará ainda de um programa de mentoring, sendo desafiada a apostar no seu desenvolvimento pessoal, perspetivando trajetórias de vida.
A aprendizagem na AESE é inspirada no modelo da Harvard Business School, em que o Método do Caso constitui a estratégia pedagógica por excelência. Assim, as participantes do programa One Step Ahead serão confrontadas com um ambiente dinâmico, exigente e consistente, que resulta num processo de aprendizagem de qualidade, com o foco na discussão. O programa decorrerá e ao longo de seis semanas, em formato híbrido, quatro dias presenciais, na AESE, e dois em que as sessões decorrerão online. Sublinho a excelência das participantes das edições anteriores, que avaliam esta oferta formativa como diferenciadora. Começaremos a 5.ª edição já no dia 7 de maio.
“É inadmissível a discriminação salarial. Igualmente inadmissível é a desconfiança em relação à competência (…). Seria excelente podermos viver sem quotas”.
O que é que ainda urge fazer em termos institucionais (política e economicamente) para que as mulheres consigam usufruir das mesmas oportunidades que os homens?
Penso que se tem dado passos interessantes para a igualdade de oportunidades. De acordo com o estudo da FFMS, Portugal encontra-se “no grupo de países europeus em que profissões de elevada visibilidade e prestígio social se encontram mais feminizadas, apresentando até taxas de feminização superiores às dos países nórdicos. No nosso país, por exemplo, 58% dos juízes e 54% dos médicos são mulheres”.
Ainda temos, infelizmente, um longo caminho a percorrer no combate à discriminação e ao preconceito. Trata-se de uma mudança de paradigma, de mindset. Trata-se de reconhecer a diferença como oportunidade, de assumir a complementaridade como um ponto de encontro e um potenciador de sucesso. É inadmissível a discriminação salarial. Igualmente inadmissível é a desconfiança em relação à competência. E elas existem de forma clara. Seria excelente podermos viver sem quotas. Custa-me tanto ouvir comentários como “ocupa o cargo X porque tinha de ser atribuído a uma mulher.”
Discordo do princípio das quotas, mas reconheço a necessidade da sua utilização. Sonho com a extinção dessa necessidade e com a equidade de acesso a oportunidades para elas e para eles. Penso que urge clareza, frontalidade, verdade na abordagem deste tema. Urge, em caso de necessidade, denunciar a injusta não oportunidade. Urge querer, de facto e não em aparência, assumir a liderança feminina como uma realidade natural, num mundo competitivo que desejamos inclusivo e de oportunidade para todos.
Na sua opinião, o que é que as empresas têm a ganhar com uma direção executiva feminina?
Brincando um pouco, diria que se a direção executiva for feminina, a empresa ganhará a certeza de que as equipas de liderança não serão compostas apenas por mulheres! Vários estudos indicam a maior versatilidade feminina em formar equipas marcadas pela diversidade de género, comparativamente aos homens, conferindo às instituições a dinâmica de diversidade que as enriquece. Porém, penso que o mais importante é combater esta ideia de que se ganha ou se perde por optar por este ou aquele género enquanto líder. Importa que quem lidera o faça por vocação, com sentido de verdadeiro serviço, como um exercício do seu caráter. E para isto não importa se é mulher ou se é homem, importa ser pessoa. Ganhamos com a adequação do líder à missão da organização, com o alinhamento com os valores, com o respeito pela entidade e seus colaboradores.
De que forma o seu percurso profissional, tão rico e diversificado, fez de si uma melhor líder?
Como disse, vejo a liderança como um exercício do caráter e este vai-se edificando ao longo da vida. A mulher que sou hoje resulta desse percurso que refere como rico e diversificado. Se sou o que sou devo-o em muito à riqueza e diversidade de pessoas, de locais de trabalho, de experiências e projetos, de oportunidades e dificuldades com que contracenei até ao momento. Sou muito grata pelo tanto que a Vida, e o seu Autor, pois sou uma mulher de fé, me têm proporcionado viver. Os contrastes, a diversidade nem sempre fácil de gerir e lidar, a exigência das responsabilidades, os compromissos foram-me levando a viver esta realidade do ser para além do fazer. E penso ser este ponto que faz de mim melhor, não porque seja melhor que os outros, mas porque me torna muito consciente de onde estou, de quais são as minhas limitações e pontos fortes, de onde não quero estar e para onde quero caminhar.
“Ter mestres, gente que nos inspira, é fundamental. Porém, que não caiam no erro de se anular para ser como outros a quem admirem e reconheçam mestria”.
Que sugestões pode partilhar com as jovens executivas que estão a começar uma carreira profissional, para que consigam fazer valer as suas competências e capacidades num mundo empresarial que ainda é dominado por homens?
Em primeiro lugar, sugiro que se conheçam a si mesmas e que queiram ser elas próprias. Ter mestres, gente que nos inspira, é fundamental. Porém, que não caiam no erro de se anular para ser como outros a quem admirem e reconheçam mestria. A autenticidade, a verdade deverão ser marcas pessoais de mulheres capazes de se inspirar noutros e de agir de forma única, porque são únicas! Que nunca duvidem das suas capacidades e não desistam de potenciar competências e talentos em si mesmas. Que estudem, invistam, sejam intelectualmente ativas, criativas e vivam apaixonadas e não instaladas.
Por outro lado, que acreditem que é possível fazer uma carreira de sucesso e ser uma mulher feliz na sociedade, na família, nos outros lugares da vida para além do trabalho. E feliz também no trabalho. A integração de diversos papéis é um enorme desafio. Ouso dizer que é dos desafios mais complexos, mas também mais bonitos que podemos abraçar. E falando na primeira pessoa, digo-lhes: vale a pena! Conscientes das competências e capacidades que as assistam, mais que procurar ter sucesso, que invistam em ser mulheres de sucesso!