Entrevista/ “Há estruturas na sociedade que não querem as mulheres a ocupar lugares de destaque”

Daniela Arrais, fundadora do projeto Contente
Crédito: Lucas Viggiani_10

No seu mais recente livro “Para todas as mulheres que não têm coragem”, a jornalista brasileira e uma das cofundadoras da Contente fala sobre o fenómeno da impostora e desafia todas as mulheres a serem as protagonistas da sua própria história através da coragem.

O que faria se tivesse coragem? É a esta questão que Daniela Arrais, jornalista brasileira e uma das cofundadoras da Contente, projeto que promove discussões sobre o impacto do digital nas nossas vidas, procura responder.

Conhecida pelas suas reflexões nas redes sociais, a autora aborda no livro o fenómeno da impostora e apela à coragem das mulheres para que para que “cada mulher possa ser do tamanho que deseja, para que possa ir atrás dos seus sonhos, para que use a escrita como bússola para entender tudo o que se passa dentro da si, para que exercite a coragem como um músculo”.

Em entrevista ao Link to Leaders, a autora fala ainda sobre o que significa ser mulher na sociedade contemporânea e faz uma reflexão sobre os papéis tradicionais que podem restringir a autenticidade feminina.

O que a levou a lançar o livro “Para todas as mulheres que não têm coragem?”

Sempre tive o sonho de ser escritora. Fiz da palavra o meu trabalho e sou muito feliz com tudo o que conquistei. Mas uma voz interna sussurrava sobre o próximo passo. Eu queria escrever um livro, eu queria ter um registo meu no mundo. Eu queria despertar em alguém o que tantos livros ao longo da vida despertaram em mim.

“A partir do fenómeno da impostora, vou discorrendo sobre como depositamos enormes expectativas sobre nós mesmas, ao mesmo tempo que duvidamos de cada pensamento que surge (…)”.

Quais são as principais mensagens que quer partilhar?

O livro é um convite para que cada mulher possa ser do tamanho que deseja, para que possa ir atrás dos seus sonhos, para que use a escrita como bússola para entender tudo o que se passa dentro da si, para que exercite a coragem como um músculo A partir do fenómeno da impostora, vou discorrendo sobre como criamos enormes expectativas sobre nós mesmas, ao mesmo tempo que duvidamos de cada pensamento que surge, limitamos o nosso autoconhecimento, comprometemos qualquer crescimento e, ainda, paralisamos nossos sonhos.

Esta obra é também uma conversa, então convido os leitores a fazer exercícios. Por que se olha de forma tão cruel? Por que não segue, mesmo sabendo que é o que precisa fazer? Que dores tem? O que falta para entender que é capaz de fazer o que quiser? E como fazê-lo?

O que é preciso fazer para se ter coragem?

Exercitar a coragem como exercitamos uma competência diariamente. Honrar aquela voz interna que nos aponta caminhos. Prestar atenção ao gut feeling que diz para onde devemos ir. Perceber como vibra quando faz aquilo que veio ao mundo para fazer. Entender, também, que a estrutura do mundo em que vivemos muitas vezes não nos quer corajosas. Perceber isso e ganhar coragem também. Somos gigantes, somos corajosas e ninguém nos pode tentar diminuir.

“Como podemos dizer sim, mesmo com medo? Como podemos lidar com os desafios, entendendo que fazem parte da vida? Dizer sim, mesmo que seja difícil. Para que possamos ser do tamanho que se quer ser”.

Como combater a “síndrome de impostora”?

O primeiro passo é entender o que é o fenómeno da impostora. Tudo começa com conhecimento. Precisamos de entender que não duvidamos de nós mesmas por uma questão de baixa autoestima. Há estruturas na sociedade que não querem as mulheres a ocupar lugares de destaque. Então, precisamos de conhecer as armadilhas que nos fazem sentir assim.

Outro passo muito importante é conversar sobre o tema com outras mulheres. Dividir dúvidas e angústias, entender que o que passamos não é problema exclusivo nosso. Tecer uma rede de apoio e de afeto que nos ajude a ultrapassar tudo isso, é importante.

Um terceiro passo é entender que, talvez, a impostora continue conosco por muito tempo, então como podemos seguir em frente? Como podemos dizer sim, mesmo com medo? Como podemos lidar com os desafios, entendendo que fazem parte da vida? Dizer sim, mesmo que seja difícil. Para que possamos ser do tamanho que queremos ser.

Como define o papel da mulher atualmente?

Fundamental para que o mundo funcione. O que aconteceria sem o trabalho do cuidado das mulheres? Por que esse trabalho é invisibilizado e não reconhecido, tampouco remunerado? Movimentamos o mundo, mas ainda carecemos de reconhecimento em diversas esferas.

” A mulher “dá conta de tudo”, cuida de todos, mas esse trabalho é invisibilizado e não reconhecido”.

Considera que a sociedade continua a ser muito mais exigente com a mulher? Porquê?

Não só exigente, mas também pouco generosa. A mulher “dá conta de tudo”, cuida de todos, mas esse trabalho é invisibilizado e não reconhecido. E ainda nos exigem excelência em tudo, “perfeição”. Em que momento é que seremos reconhecidas? E enaltecidas? E celebradas? Quando ocuparemos os cargos que quisermos? Quando ganharemos de acordo com a nossa competência? Quando deixaremos de ser cobradas em absolutamente todos os aspectos da vida?

Na sua perspetiva como tem sido o caminho para a equidade de género?

Estamos num momento muito difícil no mundo inteiro. Se no começo dos anos 2010 vimos muitos avanços, agora estamos vendo retrocessos. Recentemente vi uma notícia de que uma grande empresa de atuação global que estava a encerrar as suas políticas em relação a equidade, inclusão e diversidade. Parece que demos um passo para frente, mas agora estamos dando vários pra trás. No meio de tantas crises, as mulheres são um dos primeiros grupos a perder espaço e direitos. Precisamos de estar atentas o tempo todo, lembrando o quanto a nossa existência no mundo é política.

Acha que há muitas diferenças entre o mercado brasileiro e o português?

Infelizmente não tenho conhecimento suficiente sobre o mercado português para opinar. O que percebo é que em países do norte global há uma política de bem-estar social mais bem estabelecida.

O que poderia ser feito mais, a nível legislativo, para se combaterem as desigualdades salariais e de remuneração ainda existentes entre homem e mulher?

São tantas as possibilidades. Uma das que acho mais importante é estabelecer políticas de licença parental igualitária para homens e mulheres, reduzindo o impacto da licença maternidade na carreira das mulheres, que ainda é enorme. Penso também que seria ótimo aprovar leis que estabeleçam penalidades para a discriminação salarial de género. Assim como revisar leis trabalhistas para eliminar lacunas legais que permitam a discriminação indireta.

A igualdade salarial deveria ser uma prioridade nos planos de desenvolvimento económico e nas políticas públicas. E é fundamental também falar sobre isso, lançando campanhas nacionais para destacar a importância da igualdade salarial e os impactos negativos da discriminação.

“Acreditamos que está na altura de usarmos a criação para imaginar mundos melhores, com base na ciência sempre, mas, com um peso igual, com base na sensibilidade”.

A Daniela também fundou a plataforma Contente.vc? Pode falar-me mais deste projeto?

A Contente surgiu em 2010, a partir do meu encontro com a Luiza Voll. Já em 2011, começámos a fazer um projeto chamado @instamission, que mudou os nossos caminhos profissionais. Criámos uma forma das marcas anunciarem no Instagram muito antes de existir publicidade e anúncio. Com esse projeto, trabalhámos com mais de 300 marcas no Brasil e no mundo.

Em 2015, começámos a sentir os efeitos colaterais do digital. Ansiedade, comparação, sensação de insuficiência. Foi ali que começámos a pensar na Internet que queremos, que é uma missão e um norte, um convite e uma utopia. Ali já consolidávamos a Contente com o propósito de fomentar discussões sobre o impacto do ambiente digital na vida quotidiana, incentivando a criação de conteúdos com propósito, intenção, responsabilidade, que respeitam o tempo e o bem-estar tanto dos criadores quanto do público.

O perfil @contente.vc surgiu no Instagram depois em 2019, a partir de um desejo de conseguir fazer com que cada vez mais pessoas se envolvessem em discussões sobre o impacto do digital nas nossas vidas. Somos o primeiro movimento e o primeiro veículo a comunicar de forma mais abrangente e popular os impactos individuais e coletivos da nossa relação com os ecrãs e com a tecnologia. Hoje esta conversa parece óbvia, mas na altura não era.

Somos criadoras de novos mundos. É importante sonhar a internet, o trabalho e as relações que queremos criar, também, o mundo que queremos. Criamos projetos para pessoas, equipas e marcas sempre apoiados na força de comunidades. Sensibilizamos a sociedade através de uma comunicação, sempre apoiada na força de comunidades. Acreditamos que está na altura de usarmos a criação para imaginar mundos melhores, com base na ciência sempre, mas, com um peso igual, com base na sensibilidade. É necessário resgatar a sensibilidade.

Que outros projetos podemos esperar do Contente.vc?

Uma das novidades que já posso adiantar é que a Contente terá um podcast em 2025. Estamos muito animadas! E também com vários projetos de comunicação e sensibilização da sociedade.

O que ainda lhe falta fazer? Quais são os seus planos para o futuro?

Que pergunta boa! Quero escrever um segundo livro. E mais um. E mais outro. Quero fazer as minhas palavras circularem bastante. Quero, principalmente, trocar com os leitores. Propor exercícios de escrita. Emocionar-me com o que leio. Sentir que, por um pequeno espaço de tempo, nos contetamos a partir da nossa humanidade.

 

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