Entrevista/ “A internet começa a necessitar de um framework legal”

Celso Martinho, CEO e cofundador da Bright Pixel

O National Geographic iniciou ontem uma mini série sobre o desenvolvimento da internet nos anos 90, a explosão das “dot.com” e a história de Silicon Valley. Aproveitámos a ocasião para falar com Celso Martinho, profissional que esteve ligado ao início da internet no nosso país e que agora analisa a evolução do mercado nacional neste domínio.

Celso Martinho, atualmente CEO da Bright Pixel (uma company builder studio criada em 2016), foi um dos fundadores do mais antigo portal de internet português, Sapo. A propósito do lançamento da série “Valley Of The Boom: A História de Silicon Valley”, a Bright Pixel associou-se à National Geographic para promover, na semana passada, a ante-estreia da série que analisa a evolução da internet o presente e futuro de Silicon Valley.

Entrevistámos Celso Martinho que analisou a evolução da internet no mercado nacional, os desafios da atualidade e a forma como Portugal se posiciona no campo da inovação.

Quais as etapas mais decisivas da implementação e crescimento da internet em Portugal?
A internet teve uma fase embrionária em que ninguém sabia exatamente o que estava a fazer. Era uma tecnologia nova, uma plataforma nova, desconhecida e acessível apenas a alguns jovens que, por estarem numa universidade ou numa empresa ligada à internet, conseguiam ter acesso aos recursos para trabalhar nas suas ideias. Essa foi a fase mais divertida do processo todo, porque era uma espécie de quadro em branco.
As pessoas que percebiam a internet sentiam-se fascinadas e atraídas pelo mundo de possibilidades que conseguiam visualizar. Estas pessoas eram uma espécie de visionários, por um lado, e loucos, por outro, porque, tal como a série “Valley of the Boom” tentou explicar, ninguém os percebia, ninguém percebia a sua linguagem, ninguém percebia o que era a internet. Portanto, por um lado havia uma comunidade, por outro estávamos um bocado sozinhos porque o mundo não nos percebia.

Outra virtude dessa época é que, de repente, viu-se uma plataforma em que as barreiras à entrada eram muito pequenas. Qualquer pessoa com poucos recursos, apenas com uma ideia, conseguia montar um projeto ou uma empresa à escala global, o que nunca tinha sido possível até então. Antes da internet, para chegar a utilizadores, clientes ou um público noutros países, eram necessários investimentos avultados. E a internet era mágica porque, nessa altura e durante muito tempo, permitiu que as chamadas “start-ups de garagem”, que depois se tornaram grandes negócios, pudessem acontecer, pelas caraterísticas muito abertas, muito inclusivas e pelas barreiras muito baixas à entrada de qualquer pessoa com capacidade de executar uma boa ideia.

Por isso, quando olhamos hoje para a Google ou para o Facebook e para os seus fundadores, todos eles eram estudantes em universidades, todos eram engenheiros com a energia e com a paixão por fazer coisas e conseguiram alavancar esses projetos com relativa facilidade. Esta primeira fase da internet diria que foi entre 1995 e 2000.

E depois disso?
Depois tivemos a fase da massificação, em que, de repente, a internet passou a estar presente na casa das pessoas e que teve duas sub-fases. A primeira muito lenta, literalmente, em que as coisas demoravam a carregar e ainda era para um público mais sofisticado nessa altura. Aqui a internet começou a aparecer nos lares em todo o mundo e a ganhar dimensão. Depois, seguiu-se uma sub-fase exponencial com o aparecimento da banda larga, que foi quando a internet rápida se tornou possível e aí as empresas que vendiam internet, e o mundo em geral, começaram a fazer campanhas de marketing e investimentos muito grandes para aumentar a cooperação.

Este foi também o momento em que os nossos pais começaram a utilizar a internet. Quando esse momento aconteceu, muitos dos negócios que ainda não eram sustentáveis começaram também a tornar-se gigantes e hoje são os colossos tecnológicos que conhecemos. Esse fenómeno da banda larga também permitiu que a internet fosse cada vez mais capaz: começou a aparecer o vídeo, uma muito maior interatividade, os conceitos das redes sociais e, inclusive, a internet começou a roubar espaço aos media em geral. Este período foi um período de sofisticação tecnológica, tanto a nível de hardware, como de software. Hoje os computadores são muito diferentes e os browsers são ferramentas muito sofisticadas em que se consegue fazer tudo o que seja digital. Há 20 anos, a internet era texto e algumas imagens.

(…) à medida que a internet ganha dimensão (…) é necessário criar instrumentos que protejam quer os cidadãos, quer as empresas..

Como estamos hoje em dia com a Internet está a ganhar cada vez mais dimensão?
Atualmente, estamos numa fase em que há outros desafios que estão mais relacionados com a regulação. Por um lado, considero que era inevitável, porque à medida que a internet ganha dimensão e começa a tocar em tantas partes das nossas vidas, é necessário criar instrumentos que protejam quer os cidadãos, quer as empresas. Estamos numa fase em que a internet começa a necessitar de um framework legal, jurídico, regulatório sobre o qual as empresas, os negócios e as pessoas possam funcionar.

Se por um lado, esta regulação é positiva pela proteção que tem que existir, por outro lado, a internet está a deixar de ser aquela plataforma muito aberta e muito inclusiva, em que qualquer empreendedor pode chegar e revolucionar o que quiser. Agora é muito mais difícil fazer isto, pois se alguém pretender criar uma empresa com uma ideia para a internet já tem que estar preocupado com os aspetos legais, que muitas vezes variam de região para região, e com o facto de se tornar um potencial alvo a partir do momento em que tenha algum sucesso, e isto funciona como uma barreira que, na minha opinião, não deveria existir.

Agora, o grande desafio é este: como é que nos protegemos de invasões de privacidade, de abusos de domínio e de outros perigos naturais de uma plataforma que é gigante e que toca nas nossas vidas e ao mesmo tempo continuamos a privilegiar o empreendedorismo e inovação.

(…) Portugal ainda hoje é dos países na Europa e no mundo com uma melhor infraestrutura de telecomunicações.

Quais foram as empresas ou projetos  que mais dinamizaram/impulsionaram a disseminação da Internet no nosso país?
Houve muitos projetos. Um exemplo é o Sapo que, durante muito tempo, foi confundido com a própria internet, o que mostra a sorte e também o mérito que tivemos com o projeto. Outros projetos foram, por exemplo, os motores de pesquisa AEIOU e o Cusco. Começaram também a aparecer muito cedo projetos de conteúdos digitais e as empresas de telecomunicações também fizeram fortes investimentos, acreditando na internet desde o início.

Um facto interessante a destacar é que Portugal ainda hoje é dos países na Europa e no mundo com a melhor infraestrutura de telecomunicações. A uma determinada altura, esta infraestrutura chegou a ser muito melhor do que a que se podia encontrar nos EUA. Em relação à banda larga, banda larga móvel e acesso à internet, Portugal sempre foi particularmente tecnológico e vanguardista.

Depois, com a globalização no mundo digital, houve uma altura em que se tornou difícil fazer projetos apenas para Portugal, pois tudo se expande mais rapidamente. A partir dos anos 2004/2005, começou a deixar de existir espaço para projetos regionais, porque a Google, o Facebook, o Yahoo, a Microsoft, ou até mesmo o Hi5, tinham um peso tão grande nas audiências que secavam tudo. O Sapo conseguiu vingar porque surgiu muito cedo, no início dos anos 90, construiu uma marca muito forte e cresceu o suficiente para se tornar uma marca sustentável. A partir dos anos 2000, era impensável criar um Sapo em Portugal, porque não seria economicamente viável. Muitos tentaram e não conseguiram.

De que forma o universo Silicon Valley mexeu com o mundo?
As grandes empresas digitais do planeta nasceram ou sediaram-se em Silicon Valley, muito devido à forte cultura empreendedora e à baixa aversão ao risco dos Estados Unidos e também pela disponibilidade de recursos – o financiamento que as “dot.com” tiveram nos anos de 1999/2000 nos EUA era impossível de obter em qualquer país do mundo.

Do ponto de vista cultural, a história de Silicon Valley contagiou e inspirou o mundo. Considero que foi um exemplo que incentivou empreendedores de outras regiões do mundo a arregaçar as mangas e a criar projetos para a internet. Nós ouvíamos as histórias, conhecíamos e era inspirador.

Portugal é um excelente laboratório com muito talento e isso faz de nós um potencial bom sítio para um empreendedor estabelecer a sua base …

Portugal é conhecido por ser um país early adopter, que gosta de estar na frente das tecnologias… neste contexto, que tendências prevê para evolução da internet (da tecnologia) no mercado nacional?
Com a internet e o mundo digital, as tendências são globais. Adicionalmente, não faz sentido criar um negócio especificamente para Portugal, pela sua dimensão. Contudo, Portugal é um excelente laboratório com muito talento e isso faz de nós um potencial bom sítio para um empreendedor estabelecer a sua base, ter a sua equipa e entrar na Europa a partir do nosso país.

Faz sentido pensar em Portugal na perspetiva de criar o negócio cá pelas suas condições, pelo facto de termos talentos a lidar com novas tecnologias e de gostarmos de testá-las, pelas boas infraestruturas, pelo clima e as pessoas e pelo facto de estarmos na Europa, um mercado sem fronteiras. Por exemplo, uma tendência que está a acontecer agora é que empresas brasileiras estão a olhar para Portugal como uma porta de entrada para a Europa, porque partilhamos a língua e porque, estando cá, é muito fácil entrar noutros países.

Em relação às tendências, estas são globais. Algumas ainda estão na fase do marketing, outras têm mais substância. Falamos das tecnologias emergentes, como a IA, tratamento de dados, descentralização, realidade aumentada/mixed/virtual, entre outras.

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