Opinião

Criar ligações numa época de divisões

Mário de Sousa, CEO da Portocargo

O título que serve de mote a esta reflexão poderia bem versar uma discussão acerca da sociedade atual, da ausência de elos e de vínculos emocionais. Mas como acredito que devemos deixar para “César o que é de César”, entrego esse tema aos especialistas no estudo da mente humana e das sociedades.

A minha análise é bastante mais literal e visa uma radiografia de um cenário geopolítico mundial particularmente fragmentado. A verdade é que, nas mais de quatro décadas de logística internacional que somo, tenho dificuldade em identificar um período com tamanhas feridas – umas a céu aberto, outras (ainda) encapotadas – como no panorama atual. Guerra, tensões sociais, instabilidade política e uma permanente incerteza para as gerações atuais e futuras. Terrorismo, fanatismo e intolerância. Os ingredientes certos para um desfecho indesejável, e as consequências perfeitamente imprevisíveis.

Operar na cadeia logística internacional neste quadro é um exercício ambicioso. Diariamente, surgem novas restrições de espaço aéreo, interrupções temporárias de laboração e constrangimentos de acesso a portos e aeroportos de enorme relevância para o tráfego de mercadorias. Os impactos são múltiplos e de dimensões dramáticas. Os tempos de trânsito aumentam de forma substancial, os custos crescem em igual escala e contribuem para uma inflação que tarda em desacelerar.

Não podemos minorar os impactos decorrentes do aumento ou atrasos nos prazos de transporte. No topo dos bens mais afetados, elevam-se os perecíveis. Para muitas empresas, somar duas semanas aos tempos médios de transporte é o suficiente para que este deixe de ser viável para a sua atividade, encurtando de sobremaneira o prazo que teria para a comercialização do produto, no caso das importações, ou condicionando a sua venda no destino, quando falamos das exportações.

Para as organizações cujos produtos não obedecem a termos de validade, os problemas não são menos impactantes. A capacidade de resposta às encomendas e o cumprimento dos prazos de entrega são duas das métricas essenciais para a satisfação e fidelização do cliente. Estes atrasos implicam insuficiências na cadeia de abastecimento, demoras na produção e, consequentemente, ineficiências na entrega. Além de tornarem as marcas menos flexíveis e solícitas na resposta ao mercado, podem afetar decisivamente a imagem destas perante as atuais carteiras de clientes.

Uma das soluções adotadas tem passado pelo aumento dos stocks, assegurando uma superior eficiência de atuação. Uma resposta que acarreta, evidentemente, alguns riscos, nomeadamente com encargos superiores a nível de armazenamento, e com a potencial obsolescência de bens não escoados.

Estes são relatos que tenho escutado diariamente no último ano, e aos quais tenho procurado responder com duas palavras-chave: planeamento e previsibilidade. Autonomamente ou através de um parceiro especializado, é fundamental que as organizações disponham de uma gestão logística inteligente, apoiada em tecnologia e inovação. Tal implica a capacidade de prever níveis de encomendas a médio e longo prazo, medir e atuar imediatamente perante o inventário e dispor de um serviço logístico automatizado e de proximidade.

A turbulência geopolítica que permeia a logística internacional exige uma abordagem estratégica e inovadora por parte das organizações. Diante dos desafios inesperados que surgiram e, certamente, continuarão a eclodir, a gestão logística inteligente, respaldada pela robotização e desenvolvimento tecnológico, emerge como o antídoto para mitigar os efeitos colaterais de atrasos e restrições, possibilitando a sobrevivência, bem como a prosperidade no meio das incertezas. Nem todas conseguirão dar resposta às solicitações do mercado, e este saberá recompensar as que o fizerem.

Neste cenário, a resposta proativa, ancorada na visão de longo prazo, não preserva apenas a integridade das cadeias de abastecimento, mas também solidifica a resiliência das organizações diante de um mundo em constante transformação. Apenas deste modo as empresas podem enfrentar as preocupantes ameaças atuais e moldar um futuro logístico mais robusto e eficiente.

Tendo iniciado esta reflexão com uma referência a um dos grandes vultos da história, penso que não encontraria melhor forma de a encerrar e resumir do que com uma citação de uma outra personalidade incontornável, neste caso do mundo da arte – Michelangelo: “A escultura já está completa dentro do bloco de mármore antes de eu começar o meu trabalho. Já está lá, eu só preciso de remover o material extra.”

Comentários

Artigos Relacionados