Entrevista/ “As start-ups são as organizações que estão a ser mais audazes na utilização de IA”

Manuel Tânger, cofundador e Chief Innovation Officer da Beta-i

“Portugal é, de facto, um dos centros de inovação mais vibrantes e interessantes da Europa. Vemos agora coisas realmente inovadoras a acontecer no nosso país, com muita atração de talento e de start-ups”, afirma Manuel Tânger, cofundador e chief innovation officer da Beta-i.

Com mais de uma década de atividade no mercado nacional, e internacional, a Beta-i assume agora como uma das principais missões “demonstrar ao ecossistema que é juntos que chegamos mais longe, sendo a inovação colaborativa o nosso elemento de distinção”. Mais, “queremos demonstrar e guiar todos os stakeholders para que compreendam que, atualmente, até é possível colaborar com a concorrência e com os que se julgavam “inimigos” do negócio. Quem o diz é Manuel Tânger, cofundador  e chief innovation officer da consultora de inovação colaborativa, profissional que se congratula por ver que hoje “o ecossistema de empreendedorismo que impulsionámos em Portugal está mais sólido e com mais players, o que é muito positivo”. Reconhece, contudo, que “na parte da inovação, sabemos que ainda há um longo caminho pela frente, com muitas oportunidades e vias”.

Em entrevista ao Link to Leaders, Manuel Tânger faz uma análise transversal do ecossistema empreendedor nacional, do seu papel no mundo e de como a inovação e a tecnologia estão a mudar a atuação dos diferentes players deste mercado. E não hesita em afirmar que, em geral, há um grande “apetite” para a inovação e o seu valor é compreendido e valorizado”.

Desde que cofundou a Beta-i em 2010, e até agora, o que mudou mais no mercado nacional, ao nível empresarial, de inovação, tecnologia… quais os highlights que destaca neste período?
Na verdade, neste período mudou quase tudo. A Beta-i nasceu há mais de 10 anos e apareceu numa altura em que não havia praticamente nada ligado ao ecossistema de start-ups. Fomos o primeiro programa de aceleração, o primeiro programa de pré-aceleração e promovemos os primeiros eventos neste setor, como o Silicon Valley comes to Lisbon, que teve duas edições, e o Lisbon Investment Summit, feito para os investidores.

Portanto, viemos com estas iniciativas numa altura em que ainda não havia quase nada e verificamos que, desde então, muito mudou. Atualmente, já vemos muitos players, organizações e fundos nesta área que não existiam. Temos a Startup Lisboa, a Startup Portugal, fundos muito bem organizados, associações de Business Angels, a Fábrica de Unicórnios, etc.

O que verificamos agora em Portugal é que tem sido feita uma considerável quantidade de investimentos que estão a gerar mais crescimento e apoios para as start-ups. Além disso, temos de destacar também a vinda da Web Summit para Lisboa, que veio pôr Portugal na rota das start-ups, investidores e empresas maiores à procura de talento mais tecnológico.

Em pouco mais de dez anos, passámos de não ter nada para termos um dos países mais start-up friendly e “buzzy” da Europa. Lisboa, em particular, destaca-se como um dos focos desta inovação, mas também já começamos a ver as coisas a evoluírem nesse sentido no Porto e em Braga. Toda esta transformação tem trazido muitas coisas positivas, como a atração de talento, de investidores nacionais e estrangeiros e de co-investidores. Foi este contexto que também ajudou ao crescimento dos Unicórnios. Parece-nos claro que a evolução tem sido bastante positiva e tem levado o país para um nível bem interessante.

“A maioria das empresas está a falar da IA e de como afeta o trabalho (…), mas é importante que exista mais uma abordagem de oportunidades e experimentação do que de defesa”.

Já se sente o impacto da IA nas organizações portuguesas? Em que medida?
Uma coisa é clara: a Inteligência Artificial está a ser falada por toda a gente. Contudo, o que penso que esteja a acontecer com as organizações em Portugal, é que houve um primeiro momento de fascínio, onde se pensava que a IA iria mudar toda a realidade como a conhecíamos e, após isso, entrámos numa fase de receio. As empresas portuguesas estão muito preocupadas com os perigos, riscos e segurança da IA, o que está a ser um obstáculo ao aproveitamento dos benefícios e oportunidades que pode trazer. Claro que não é uma situação aplicada a todas as realidades, mas, no geral, é ao que estamos a assistir.

Esta fase é crucial para as organizações se focarem e explorarem o que a tecnologia pode trazer de novo e disruptivo, porque o início de algo só acontece uma vez e, não se aproveitando, pode ser uma oportunidade perdida. A maioria das empresas está a falar da IA e de como afeta o trabalho, os departamentos e todos os níveis, mas é importante que exista mais uma abordagem de oportunidades e experimentação do que de defesa.

Tendo em conta o atual cenário tecnológico, prevê-se que as start-ups de IA generativa tenham um boom no mercado nacional ou nem por isso?
Sim, penso que vá haver um boom no mercado nacional transversal a todas as start-ups: não só as de IA generativa, mas também as dos restantes setores. Estas empresas (start-ups) têm menos recursos e são muito recetivas a todas as oportunidades que surjam e que facilitem o processo de aceleração, que lhes dê uma vantagem competitiva. Esse é o motivo pelo qual vemos que as start-ups são as organizações que estão a ser mais audazes na utilização de IA. Mesmo anteriormente, elas já utilizavam ferramentas de inteligência como os algoritmos embebidos nos seus serviços, e sempre se caracterizaram por serem early adopters das novas tecnologias, utilizando agora a IA para automatizarem e crescerem.

Entre grandes empresas, PME e start-ups, qual o papel de cada um destes players no atual cenário empresarial nacional e no processo de transformação digital?
Todos estes tipos de organização têm um papel crucial no tecido empresarial português, nomeadamente quando se juntam. Acho que a grande mais-valia de termos estes diferentes níveis de empresas com características distintas é o que trazem para a mesa quando se reúnem para resolverem grandes desafios em comum.

No que toca à transformação digital, há aqui duas questões. A primeira é o primeiro processo de digitalização do que já existe, mas ainda não digital. Aqui se ganham eficiências e o “back-end” do negócio torna-se digital. A segunda é diferente, trata-se da inovação digital que se torna possível após a primeira transformação digital, isto é, fazer diferente dentro do contexto do digital e nativamente digital.

Isto é relevante uma vez que a digitalização é apenas a transição das coisas do espaço físico tradicional para o espaço digital e, nesse campo, temos visto grandes desenvolvimentos em vários setores. Contudo, no que toca à inovação digital, com a criação de novos produtos e novos serviços neste novo meio, não temos visto tanta atividade. Assim sendo, há uma necessidade crescente de que todas estas organizações se juntem e colaborem: não só no sentido de se digitalizarem, mas de poderem construir este novo nível de inovação.

“A inovação, não só a nível nacional, como internacional, caminha para a inovação colaborativa”.

Para onde caminha a inovação nacional?
Portugal tem feito um trabalho particularmente relevante na área da inovação e isso revela-se no Índice Global de Inovação. Em 2023, Portugal ocupou a 30.ª posição entre as 132 economias mundiais, tendo subido duas posições em relação ao ano anterior. Esta é uma realidade que temos de louvar e que nos mostra que estamos no caminho certo.

Este ano e nos próximos dois, temos uma variável muito distinta neste setor que são as iniciativas do PRR. Estes vão ser anos de grande investimento em inovação, por causa destes mecanismos impulsionados pela Europa e que depois são distribuídos por Portugal. Isto significa que está a haver muito movimento no setor da inovação, com muitas tecnologias a serem criadas e pilotos a serem testados e com a procura de codesenvolvimento de soluções por vários players e isso é algo que é necessário valorizar. Contudo, temos de compreender que este pico é um pico de alguma forma artificial, porque não vem do mercado, mas sim do setor público e é “one-shot”.

A inovação, não só a nível nacional, como internacional, caminha para a inovação colaborativa. Facilmente percebemos que os grandes problemas que procuramos resolver na sociedade são complexos e estruturais e, por isso mesmo, exigem a intervenção de várias entidades para a sua resolução: públicas, privadas, start-ups, ONGs, associações, etc. Apenas através da colaboração de todos estes players, que até podem ser concorrentes, é que poderemos levar a inovação para um patamar mais alto e sólido.

Quais os setores de atividade em que, na sua opinião, se tem feito sentir mais o impacto positivo da inovação tecnológica?
Penso que todos os setores usufruem muito da inovação. No entanto, há três que se destacam pela positiva. Por um lado, o setor da saúde, que tem tido um progresso gigante nos últimos cinco anos e até mesmo com a pandemia de Covid-19.

Hoje em dia, tomamos por garantidas algumas funcionalidades que há poucos anos não existiam, como termos um grande acesso a informação médica, a aplicações e a um acompanhamento médico mais personalizado. Mesmo entre especialidades médicas, há agora uma troca de informação muito grande, o que tem proporcionado uma maior acessibilidade aos cuidados de saúde e o desenvolvimento de diagnósticos e tratamentos muito mais precisos.

Além deste, temos também o setor da energia, onde vemos que surgem legislações e regulações cada vez mais exigentes, como o European Green New Deal, que levam a que haja um crescente investimento na transição energética. Os objetivos que estão a ser definidos são cada vez mais ambiciosos e isso espelha-se na necessidade de se desenvolverem tecnologias inovadoras para que se consiga chegar mais perto dessas metas.

Depois, um bocadinho transversal a todos os setores, temos a área da sustentabilidade que, neste caso, assemelha-se muito à da energia. A inovação tem trazido novas ferramentas de deteção de problemas e de monitorização, por exemplo, que permitem um maior acesso aos dados relativos às questões ambientais. A sustentabilidade é, realmente, um dos setores mais impactados pela inovação e que precisa dela para dar resposta ao atual panorama de alterações climáticas, por exemplo.

E pela negativa?
No que toca à parte mais negativa, há um setor que tem tido maior dificuldade em adaptar-se à inovação: o setor bancário e das fintech. Este ainda é um mercado com uma regulação muito apertada que acaba por estrangular a inovação, ainda que se comece a assistir a mudanças nesta área. É até curioso perceber que não é a tecnologia que é o problema neste caso, mas sim o próprio contexto regulatório.

“(…) em geral, há um grande “apetite” para a inovação e o seu valor é compreendido e valorizado”.

Enquanto consultora de inovação colaborativa quais os desafios mais recorrentes na vossa relação com os diferentes players do tecido empresarial nacional? Tem sido fácil sensibilizá-los para a importância de inovar?
Diria que sim, uma vez que, em geral, há um grande “apetite” para a inovação e o seu valor é compreendido e valorizado. No entanto, no tecido empresarial nacional temos organizações com diferentes níveis de maturidade de inovação. Assim, naquelas que têm um nível mais baixo de maturidade, o processo de inovação pode ser mais lento e mais complicado, porque estamos a inserir algo de novo num contexto que ainda não está preparado para tal.

Por outro lado, temos empresas mais maduras, e são tanto start-ups como grandes empresas, em que os mecanismos e os processos já funcionam todos muito bem e não existe este caminho complicado de integração de algo inovador, tornando-se tudo muito fluído. Assim, todos têm a vontade de inovar, contudo alguns têm algumas complicações internas que ou não permitem a inovação ou tornam o processo mais complicado.

Com a vossa experiência de projetos realizados em mais de 20 países, onde é mais fácil trabalhar? Qual o mercado mais estimulante?
Tanto os EUA como o Brasil são mercados muito estimulantes para a inovação, porque têm mais apetite ao risco. São contextos culturais muito distintos do nosso e bastante recetivos a experimentarem coisas novas. Também têm as suas dificuldades, claro, nomeadamente os EUA que são um país muito concorrencial e maduro.

No caso da Europa, apesar de não termos esta realidade tão audaz, temos um fator muito interessante que é o facto de existirem temas muito bem identificados e com vetores bastante definidos, quer seja pela Comissão Europeia como por outras instituições. Essa clareza estratégica é bastante interessante e proporciona aqui um caminho para o investimento e a inovação. Claro que dentro da Europa temos países onde a inovação é mais fácil, como é o caso dos países da União Europeia, nomeadamente a Holanda, a Bélgica e os países nórdicos.

O objetivo inicial da Beta-i “era impulsionar o ecossistema de inovação e empreendedorismo”. Uma década depois essa missão foi alcançada?
Nunca poderemos dizer que alcançámos essa missão, porque os objetivos estão sempre a crescer e os alvos também, mas podemos dizer que estamos infinitamente melhor. Na realidade, temos tido um percurso muito interessante, onde agora vemos que o ecossistema de empreendedorismo que impulsionámos em Portugal está mais sólido e com mais players, o que é muito positivo.

Diria que na parte do empreendedorismo já conseguimos ter um sentimento de missão cumprida, com este crescimento exponencial. Contudo, na parte da inovação, sabemos que ainda há um longo caminho pela frente, com muitas oportunidades e vias. Assumimos agora como uma das principais missões da Beta-i demonstrar ao ecossistema que é juntos que chegamos mais longe, sendo a inovação colaborativa o nosso elemento de distinção. Queremos demonstrar e guiar todos os stakeholders para que compreendam que, atualmente, até é possível colaborar com a concorrência e com os que se julgavam “inimigos” do negócio.

“Vemos agora coisas realmente inovadoras a acontecer no nosso país, com muita atração de talento e de start-ups”.

Hoje, Portugal pode intitular-se um dos centros de inovação mais vibrantes da Europa ou isso ainda é uma miragem?
Sim, Portugal é, de facto, um dos centros de inovação mais vibrantes e interessantes da Europa. Vemos agora coisas realmente inovadoras a acontecer no nosso país, com muita atração de talento e de start-ups. No entanto, também é importante destacar que, embora Portugal seja um polo de inovação na Europa, não quer dizer que seja voltado para dentro do próprio país. Ou seja, muito deste talento e destas start-ups que vêm para o país, instalam-se aqui, porque há excelentes condições para isso, mas produzem inovação maioritariamente para outros países.

O que é que a Beta-i espera fazer pelo empreendedorismo e pela inovação nacionais este ano?
Temos grandes objetivos para este ano e para os próximos. Temos cinco projetos associados a PRRs com consórcios que estão a inovar ao nível da energia, das baterias, entre outros, e isto é algo que temos em vista e que expectamos. Também temos tido programas de inovação bastante relevantes em áreas como a mobilidade, blue economy e turismo. No entanto, realçava sobretudo o programa que temos com a Sociedade Ponto Verde, o Re_Source, que tem tido um impacto nacional muito interessante no que toca à reciclagem, sustentabilidade e gestão de resíduos.

Estamos empenhados em fazer a diferença e em promover a inovação colaborativa do ecossistema e, apesar de termos muitos projetos em curso e em diferentes áreas, queremos ter um impacto positivo e relevante na sustentabilidade, na transição energética e na economia azul. Este é, sem dúvida, o nosso foco para 2024.

Comentários

Artigos Relacionados

Rosário Pinto Correia, Catolica Lisbon School of Business and Economics
Sónia Jerónimo, empreendedora