Entrevista/ “As organizações precisam de adotar uma mentalidade de aprendizagem contínua”

Filipa Lemos Cristina, fundadora da PowerUP

“As empresas que prosperam são aquelas que equilibram tecnologia com um forte foco no lado humano – é aqui que as power skills se destacam, tanto a nível global como em Portugal”, defende Filipa Lemos Cristina, fundadora da PowerUP.

A bióloga Filipa Lemos Cristina fundou a  PowerUp, em 2022, integrando a neurociência no desenvolvimento de competências essenciais e regressou às raízes científicas para entender como o cérebro humano aprende e se adapta. Defende que “se o processo de aprendizagem é cognitivo-emocional, então uma metodologia que envolve desenvolvimento de competências eficaz deve basear-se num conhecimento mais profundo de como aprendemos; garantindo assim o desenvolvimento de competências eficaz e sustentável”.

A responsável da PowerUp define as power skills como as soft skills 2.0: capacidades humanas (socioemocionais e cognitivas avançadas) que empoderam as pessoas e que são fatores críticos para o sucesso organizacional. Em entrevista ao Link to Leaders aborda o impacto destas competências no recrutamento, na performance e no sucesso das empresas.

Revela ainda que, atualmente, “o objetivo é aumentar a tração, para já no mercado português, e reforçar a componente tecnológica, para ampliar ainda mais o impacto da missão. Nesse sentido, se surgir um investidor estratégico que partilhe os nossos objetivos e visão, estamos abertos a essa possibilidade”, afirma.

O que é a PowerUP? Como define o projeto?

A PowerUP é um projeto que mede, ativa e promove a sustentabilidade das competências humanas essenciais para o sucesso organizacional – as chamadas “power skills”. O nosso objetivo é ajudar as empresas a atingir os seus resultados financeiros e, com isso, garantir a sua sustentabilidade social e financeira. Para atingir melhores resultados financeiros são precisas pessoas com as competências adequadas.

As power skills (antigamente designadas soft skills) são hoje classificadas pelo World Economic Forum como fatores críticos de sucesso. Na PowerUP, temos um teste específico para medir estas competências e desenvolver com um processo baseado em neurociência e metodologias de aprendizagem ativa. Com a esta metodologia temos observado que quase 80% das pessoas desenvolvem duas ou mais powerskills e esses aumentos podem ir até 15%. Desta forma, promovemos o desempenho das equipas, melhoramos a fidelização de talentos e impulsionamos os resultados financeiros, preparando as organizações para enfrentar os desafios de um mercado em constante mudança.

O que são exatamente as “power skills” e qual a sua importância no mercado de trabalho global e em Portugal?

São competências interpessoais e cognitivas avançadas que, relatórios internacionais como os do World Economic Forum e da McKinsey, identificam como fatores críticos de sucesso, a par com as competências digitais. Algumas destas power skills incluem colaboração, comunicação, criatividade, pensamento crítico e empatia. Estas competências são essenciais para enfrentar os desafios de um mercado em constante mudança, promovendo a inovação, a adaptabilidade e a capacidade de resolução de problemas complexos. Existem diversos estudos internacionais que referem que estas competências nas organizações têm um impacto positivo na produtividade, e que se obtém ROI (return of investment) quando se investe no seu desenvolvimento.

Num mundo cada vez mais tecnológico, as empresas que prosperam são aquelas que equilibram tecnologia com um forte foco no lado humano — é aqui que as power skills se destacam, tanto a nível global como em Portugal. Elas ajudam a construir equipas mais resilientes e eficazes, ao mesmo tempo que criam culturas organizacionais que atraem e fidelizam os melhores talentos durante mais tempo, um fator crítico para a competitividade no longo prazo.

“As power skills são competências transversais e essenciais para qualquer função, setor ou geografia”.

Como enquadra as power skills a par das já sobejamente faladas hard e soft skills? Qual o impacto destas na formação de equipas e nos processos de recrutamento?

As power skills são competências transversais e essenciais para qualquer função, setor ou geografia. Quando comparadas às hard skills e soft skills, destacam-se por serem o elo que transforma o conhecimento técnico em resultados práticos e sustentáveis.

As hard skills referem-se ao conhecimento técnico, que, embora crucial, enfrenta um ritmo acelerado de obsolescência devido à evolução tecnológica. Por isso, competências como aprendizagem ao longo da vida (uma power skill) tornam-se fundamentais para acompanhar essa mudança constante. É importante lembrar que até na aquisição de hard skills depende a forma como ensinamos. As formações devem alinhar-se à forma de como o cérebro humano aprende para garantir o ganho de conhecimento, caso contrário, tornam-se apenas informações sem impacto real.

Já o termo soft skills teve origem nos anos 70, na Marinha Americana. O termo acabou associado a algo secundário ou opcional, o que está longe de refletir a sua importância. Designar estas competências como power skills faz mais justiça ao seu impacto. São as soft skills 2.0, se quisermos dizer desta forma. São capacidades humanas (socioemocionais e cognitivas avançadas) que empoderam as pessoas e são fatores críticos para o sucesso organizacional.

No recrutamento, medir as power skills permite compreender melhor os candidatos, além das suas qualificações técnicas, avaliando como se encaixam na cultura da empresa e nos desafios do cargo. Estudos da PowerUP apresentados em conferências internacionais mostram tendências destas competências por género e idade (ou mesmo por outros fatores demográficos), ajudando a mapear perfis e alinhar expectativas.

Na formação, as power skills ganham ainda mais relevância. Avaliar estas competências antes e depois de um programa de desenvolvimento permite não só medir o impacto imediato nas pessoas e nas equipas, mas também acompanhar o progresso ao longo do tempo. Esse acompanhamento contínuo ajuda a validar o retorno do investimento (ROI) das formações e a promover mudanças reais e sustentáveis na organização.

“É com resultados financeiros que depois se pode reinvestir, retribuir à comunidade e distribuir lucros pelas pessoas”.

O que é preciso para que as empresas e as suas equipas prosperem num mundo de mudança tão acelerada como o que vivemos hoje?

Atingir os resultados financeiros é indispensável! É com resultados financeiros que depois se pode reinvestir, retribuir à comunidade e distribuir lucros pelas pessoas. Sem estes resultados não se consegue crescer e inovar; é um facto. No entanto, temos de ter a capacidade de parar e pensar como é que chegamos lá.

Temos de ter a capacidade de trabalhar em equipa e, por vezes a solo, de ter pensamento crítico ao utilizar o chat GPT ou desenhar um plano estratégico, de sermos líderes e colegas empáticos, de ouvir os nossos clientes, de deixar pensar e pensar de forma criativa e promover uma comunicação transparente. Mesmo em empresas tecnológicas, onde a inovação é o foco, o elemento humano — as power skills — é um fator importante e que impulsiona a inovação e claro, os resultados financeiros.

No entanto, o mundo atual, com sua sobrecarga de estímulos, muitas vezes leva-nos a agir de forma apressada, em busca de reconhecimento imediato. Isso está relacionado a um mecanismo biológico influenciado pela serotonina, o neurotransmissor do “sentimento de importância ou de poder”. O ato de nos sentirmos ocupados e produtivos ativa a libertação de serotonina, criando uma sensação de bem estar e que estamos em controle, que somos respeitados, reforçando o desejo de estarmos sempre “ocupados”. Esse ciclo de pressa e busca por status é difícil de quebrar, mas é possível. E é crucial para o bem-estar das pessoas, incluindo o nosso, nas empresas.

As organizações precisam de adotar uma mentalidade de aprendizagem contínua, investindo no desenvolvimento humano sem levar as pessoas (nem a si mesmas) ao esgotamento. A prosperidade verdadeira vem de equipas capazes de lidar com a complexidade, inovar em tempos de incerteza e manter um equilíbrio saudável entre tecnologia e as relações humanas. Esse equilíbrio é o que sustenta a inovação sustentável, a qual não depende apenas de processos ou ferramentas, mas da capacidade das pessoas de se conectarem, aprenderem e crescerem juntas, aprendendo a gerir as suas emoções e pensamentos de forma eficaz.

E como é que as empresas se podem preparar para o futuro do trabalho, perante a “revolução” tecnológica em curso e para o impacto humano que inevitavelmente existirá?

A história das revoluções industriais revela um padrão claro: sempre que as novas tecnologias surgem, as funções repetitivas ou rotineiras tendem a ser substituídas por máquinas, sistemas automatizados ou, mais recentemente, pela inteligência artificial (IA). Exemplos disso são visíveis em várias indústrias, desde o uso de IA para automatizar a criação de campanhas de e-mail marketing, até ferramentas avançadas como o ChatGPT, que estão a transformar a criação de conteúdo em muitas áreas. Este movimento de automatização não é novo, mas, com a IA, a velocidade e o impacto são incomparáveis.

Segundo estudos do World Economic Forum, até 2030, estima-se que cerca de 400 milhões de pessoas precisem de requalificação (reskilling) devido à rápida evolução das tecnologias e da automatização, sendo uma parte dessa necessidade diretamente ligada às power skills (competências interpessoais e cognitivas avançadas). Em todas as funções existe a necessidade de — liderança, empatia, criatividade e pensamento crítico — é é aqui que as empresas precisam começar a investir de forma mais intensa, para garantir a adaptação de suas equipas a esse novo cenário.

A preparação das empresas para o futuro do trabalho deve focar na integração entre tecnologia e propósito humano. A tecnologia, por si só, não é suficiente para garantir a sustentabilidade ou o sucesso no longo prazo das organizações. As organizações precisam identificar as competências que são críticas agora e no futuro, tanto do ponto de vista técnico quanto humano. Isso envolve investir em programas de reskilling que não apenas ensinem novas competências técnicas, mas também desenvolvam as power skills.

Além disso, as empresas devem apostar em medir o impacto dessas competências no desenvolvimento de suas equipas. Ao fazer isso, conseguem equilibrar a eficiência tecnológica com o bem-estar das pessoas, garantindo que a tecnologia seja utilizada como uma aliada e não como uma ameaça ao capital humano. Esse equilíbrio entre inovação tecnológica e qualidade de vida no trabalho é essencial para garantir não apenas a adaptação, mas também o crescimento sustentável. O retorno sobre o investimento (ROI) será visível, em termos financeiros, e também em termos de fidelização do talento mais tempo, aumento da produtividade e criação de uma cultura de inovação constante.

Como é que a neuroaprendizagem revoluciona a formação e o desenvolvimento profissional?

A neuroaprendizagem utiliza princípios da neurociência para alinhar os processos de formação com a forma como o cérebro realmente aprende. A aprendizagem é um processo cognitivo-emocional, então há diversos pontos que devemos ter em conta para garantir que existe ganho de conhecimento e/ou desenvolvimento de competências. É importante criarmos a possibilidade de foco, estimular a criação de associações a algo aprendido no passado, emoções positivas (estimulação dos neuroquímicos do bem estar)  e repetições espaçadas (ao invés de uma dose gigante de informação).

Na PowerUP aplicamos estes princípios para desenhar experiências práticas e interativas, que ativam tanto o ganho de conhecimento, como a sua aplicação direta no ambiente de trabalho. O impacto desta abordagem é revolucionário porque não apenas melhora os resultados da formação – como maior ganho de competências para o contexto profissional –, mas também possibilita medir o progresso e o impacto das intervenções. Isto torna a gestão de talentos mais alinhada com os desafios do mercado.

“O que realmente me motiva é saber que posso contribuir para desbloquear o potencial nas pessoas e consequentemente nas organizações”.

Como é que uma bióloga, especialista em neurociência, entra no mundo do empreendedorismo? O que a motiva?

A transição foi muito natural para mim. Comecei a minha carreira no campo da investigação científica, em Portugal e no exterior, onde estive durante quase seis anos. Depois trabalhei 16 anos em multinacionais e, mais recentemente, tenho estado ligada a uma start-up internacional. Todos esses passos foram impulsionados pela minha curiosidade e por necessidade de desenvolvimento que ia sentindo, quer na minha vida profissional como pessoal. Quando deixei o mundo científico, saí da ciência, mas a ciência não saiu de mim. Nas multinacionais, continuei a aplicar a minha formação científica em projetos com clientes, como no desenvolvimento de protocolos e na criação de posters científicos, por exemplo.

A transição para o empreendedorismo também envolveu uma importante descoberta pessoal: ao mudar de projeto em projeto, percebi o quanto os meus próprios limites eram um reflexo da forma como o cérebro humano lida com mudanças e desafios. Ao longo das transições que tenho feito, tenho vindo a reconhecer e a aprender a lidar com a pressão, a saber dizer que “não”, a entender como os níveis de serotonina (e os outros neuroquímicos) influenciam nosso desempenho e motivação e, principalmente, como equilibrar as exigências externas com o cuidado interno.

Estas aprendizagens foram fundamentais para o meu crescimento como profissional e como empreendedora, e ajudaram-me a estruturar projetos mais equilibrados, focados no bem-estar, sem nunca esquecer o crescimento sustentável que inclui o lado financeiro.

Foi também nesse percurso que percebi a importância das power skills para o sucesso das empresas. Acredito que foi a minha formação científica que me deu a capacidade de desenvolver a ferramenta de medição das 5 power skills que utilizamos hoje, além de me permitir aplicar o pensamento crítico e criativo para compreender como o cérebro aprende e, com isso, ajudar as pessoas, ao criar formações que visam a aquisição de conhecimento de forma eficaz e duradoura. No mundo do empreendedorismo, vi uma oportunidade de aplicar este conhecimento de forma mais direta e impactante.

O que realmente me motiva é saber que posso contribuir para desbloquear o potencial nas pessoas e consequentemente nas organizações. Ver o impacto positivo que as power skills têm nas equipas e nas organizações, é um dos meus propósitos. Acredito que o futuro das empresas está em equilibrar tecnologia e as competências humanas, e é isso que me move a seguir este caminho. Tenho vindo a encontrar e estou segura que vou continuar ainda mais, pessoas com os mesmos valores e propósito.

Como e quando nasceu a PowerUP?

A PowerUP nasceu em 2022, impulsionada pela minha experiência pessoal e profissional ao observar uma lacuna crescente entre o desenvolvimento de competências humanas (ou power skills), a necessidade de atingir os resultados financeiros e as exigências em constante evolução do mercado de trabalho. Após mais de 20 anos a trabalhar em contextos académicos, empresariais e start-ups, ficou claro que competências como colaboração, criatividade, pensamento crítico, empatia e comunicação, embora essenciais, não estavam a ter o foco nem a ser desenvolvidas de forma prática e mensurável.

Inspirada pela neurociência e pela minha veia científica, comecei a criar ferramentas inovadoras que não medem apenas estas competências, mas também as ativam de forma sustentável. A PowerUP foi formalizada como resposta a este desafio, com o objetivo de capacitar indivíduos e organizações para prosperar num mundo em constante mudança, combinando ciência, prática e impacto real.

“(…) se surgir um investidor estratégico que partilhe os nossos objetivos e visão, estamos abertos a essa possibilidade.”

Está ligada a algum investidor ou pretende fazer alguma ronda de investimento?

Até ao momento, temos sido financiados através de bootstrapping, ou seja, com recursos próprios e pelas vendas geradas pelos seus serviços. O objetivo atualmente é aumentar a tração, para já no mercado português, e reforçar a componente tecnológica, para ampliar ainda mais o impacto da missão. Nesse sentido, se surgir um investidor estratégico que partilhe os nossos objetivos e visão, estamos abertos a essa possibilidade. Vale a pena destacar que o mercado europeu destas competências, as chamadas soft skills, foi quantificado (IMARC) em 2023 na ordem dos 8.3M€ com uma CAGR (taxa de crescimento anual composta) de 10.2% para 2032 (crescimento estimado até aos 21M€).

Quais os próximos passos da PowerUP? Quais as suas ambições?

Os próximos passos incluem aumentar a tração no mercado português, fortalecendo a nossa presença e impacto local, e o avanço na componente tecnológica destas soluções. Este desenvolvimento vai permitir escalar o impacto, alcançando mais pessoas e organizações de forma mais eficaz e mensurável. No entanto, acreditamos que a tecnologia é apenas parte da equação.

O verdadeiro impacto depende das pessoas que trabalham para tornar este propósito uma realidade. É essencial contar com uma equipa e parceiros que partilhem os mesmos valores de colaboração, propósito e inovação. Assim, garantimos que as nossas soluções não respondem apenas às necessidades reais das organizações, mas também promovem transformações significativas, onde o fortalecimento das power skills nas equipas resulta em desempenhos — incluindo financeiros — mais positivos.

A nossa ambição é posicionar a PowerUP como uma referência na medição e desenvolvimento de competências humanas (power skills), capacitando pessoas e organizações para enfrentar os desafios do futuro de forma mais equilibrada e sustentável, tanto social como financeiramente.

Comentários

Artigos Relacionados