Opinião
A elegância da virtude

Uma das principais competências de uma pessoa virtuosa, é a sua capacidade de reconhecer, a cada momento, que certos comportamento e atitudes próprias, e mesmo estratégias de vida, não estão a ser…virtuosas.
Esta competência não é, bem entendido, a única que permite integrar uma determinada pessoa na categoria de virtuosa. Indo aos clássicos, já por volta do ano 374 a.C., Isócrates, um dos mais célebres professores e retóricos de Atenas, aconselhava um jovem chamado Demócrito a seguir as “nobres máximas”, dizendo-lhe que “nenhum adorno te fica tão bem como a modéstia, a justiça e o autocontrolo, pois são estas as virtudes através das quais (…) se mantém o carácter dos jovens sob controlo” (*)
Esta definição, chamemos-lhe, clássica, da virtude, mantém uma grande atualidade, estando perfeitamente alinhada com portefólios atuais de competências requeridas, tanto aos líderes como ao conjunto dos colaboradores das organizações, com a pequena atualização do termo “modéstia”, que tem vindo a ser preterido pelo substantivo “humildade”.
Seja como for, e passando por alto a eventual controvérsia que poderá existir pela diferença entre estes dois conceitos, o que importa, e numa visão otimista, é que vivemos numa época em que “nobres” qualidades humanas, com as já referidas, e muitas outras, são finalmente valorizadas e com uma ampla aceitação e generalização, tanto por parte de responsáveis empresariais, como líderes e executivos das organizações. Pela prática destas competências, os líderes procuram dar expressão concreta, de uma forma ou de outra, àquilo que Kim Cameron, e outros autores, começaram a designar, no início do sec. XXI, por “virtuous organization” (1).
Mas, é claro, por contraponto à visão otimista aqui apresentada, há sempre o “reverso da medalha” e, neste caso, com expressões que configuram uma diferença, quase radical, para não dizer, absurda, entre a teoria e a prática.
Na verdade, em muitas situações, quanto mais se defendem e apregoam essas “nobres virtudes humanas”, mais chocante se torna observar como certos líderes, em vez da humildade, exibem, na prática, expressões de egos desmesurados e uma inquietante tendência para práticas prepotentes, sobretudo em relação àqueles que se recusam e enfileirar na “coorte” submissa” dos seus aduladores.
Por outro lado, assistimos também a práticas de outros líderes que, a pretexto de procurarem aquilo a que chamam de “sucesso”, atropelam tudo e todos pela exibição de uma autoconfiança que, sendo pretensamente assertiva, se torna intolerante em relação a opiniões alheias, demonstrando também uma total ausência de sensibilidade e empatia em relação aos interesses e sentimentos dos diferentes interlocutores.
E há ainda a situação daqueles líderes que, conhecendo muito bem a “cartilha” das boas práticas em relações humanas, enleiam os colaboradores num verdadeiro “canto de sereias” de forma a melhor manipulá-los e os levar a agir, muitas vezes contra o seu próprio interesse, sem se darem conta de que, afinal, estão a fazer algo que está muito mais de acordo com o interesse encapotado do líder.
Estas manifestações, digamos, altamente questionáveis (no mínimo), de liderança, resultam, entre outros fatores, do facto de que, de acordo com Ryan Holiday, o nosso “Ego é o Inimigo”, que nos leva a “em vez de vermos o que temos diante de nós, vivermos na nossa própria fantasia”. Esse “Ego”, de que fala o autor, “tem uma definição mais informal: uma crença doentia na nossa própria importância. Arrogância. Ambição egocêntrica. (…) É aquela criança petulante que há dentro de cada pessoa, aquele que escolhe levar a sua avante contra tudo e contra todos” (*).
Sendo reconhecidamente uma “coisa má”, tanto na sua etiologia como nos seus resultados, e sendo também, alegadamente, uma coisa “velha”, “que vem detrás” e que, talvez, “sempre tenha sido assim”, o mais inquietante é o desalinhamento gritante que estas práticas têm, hoje, em relação a certos discursos oficiais e às intervenções organizacionais, orientadas para a motivação e envolvimento dos colaboradores, onde a tónica dominante é, invariavelmente, a do “well-being” e a “felicidade organizacional”, modelos que valorizam justamente as “nobres virtudes humanas”, procurando criar as condições propícias para a “eclosão” dessas virtudes, tanto nos lideres como em todo o tecido humano das organizações.
Este é (mais) um dos paradoxos da nossa realidade atual. Se o “Ego é o Inimigo”, Holiday sustenta, todavia, que” agora, mais do que nunca, a nossa cultura atiça as chamas do ego. Nunca foi tão fácil falar e alimentar o nosso orgulho” (*)
Bombardeados sistemática e quotidianamente com posts e mensagens que glorificam a “superação pessoal” e os grandes feitos difundidos por influencers que só são “brilhantes” pelos efeitos especiais com que disfarçam o seu “dark side”, todos nós somos convocados pela “necessidade de ser melhor, de ser mais, de ser reconhecido para além de qualquer utilidade razoável”. E é este tipo de necessidade obsessiva que conduz ao “sentimento de superioridade e certeza que excede os limites da confiança e do talento”. (…) É isso o Ego.” (*).
Sejamos, no entanto, realistas. Todos nós temos egos e, desejavelmente, egos bem estruturados e, como tal, capazes tanto de autoconsciência, para nos sabermos distanciar e colocar-nos em perspetiva relativamente aos nossos atos, propósitos e sentimentos e em relação à realidade externa que nos envolve. E somos também capazes de realizar o autocontrolo e a autorregulação das nossas emoções e dos nossos sentimentos, de modo a prever, e a prevenir, eventuais desregulações emocionais que acabam por gerar resultados sempre indesejáveis.
Por isso, a autoconsciência e a autorregulação das emoções, são sempre ferramentas poderosas para “ajudar-nos a suprimir o ego antes que os maus hábitos se instalem, substituir as tentações do ego pela humildade e disciplina quando temos sucesso e cultivar a força e a fortaleza de espírito para que, se o destino se virar contra nós, não ficarmos destroçados pelo insucesso”. (*)
Julgo que esta pode ser uma boa definição de maturidade: humildade nos comportamentos e subtileza nas relações, contra a arrogância prepotente ou a manipulação insidiosa, sendo que as primeiras são, obviamente, o apanágio dos líderes verdadeiramente virtuosos: líderes fortes, tranquilos e que exercem o poder com elegância.
É que, para além de tudo o mais, haverá sempre uma certa elegância na virtude.
Referências
Kim Cameron, et.al. (2008). The Virtuous Organization.
Todas as outras citações constantes deste texto e assinaladas com (*) são extraídas de Holiday, R. (2024). O Ego é o Inimigo. Alfragide: Editora Lua de Papel.