Entrevista/ “A transparência salarial não se impõe por decreto: constrói-se com base em dados, coerência e confiança”

Maria Palma, Senior Manager of People and Culture Consulting da Cegoc

A Diretiva Europeia da Transparência Salarial entrará em vigor dentro de um ano em Portugal e promete transformar a forma como as empresas comunicam e aplicam as suas políticas de remuneração. Maria Palma, Senior Manager of People and Culture Consulting da CEGOC, explica o que muda, os principais desafios e como preparar o caminho para uma cultura mais justa e sustentável.

A transparência salarial vai muito além da simples divulgação de salários. Envolve critérios claros, objetivos e aplicados de forma consistente, com impacto direto na confiança, no engagement e na retenção de talento. Mas estarão as empresas portuguesas preparadas para este novo paradigma?

Para Maria Palma, Senior manager of People and Culture Consulting da CEGOC, a resposta varia consoante a maturidade das organizações: “Encontramos empresas que ainda estão numa fase muito inicial, sem estruturas remuneratórias formais ou critérios objetivos definidos, outras que já têm práticas parcialmente alinhadas e um grupo mais restrito que está francamente preparado, precisando apenas de consolidar a forma como sistematiza e comunica essa informação internamente”.

Neste contexto e tendo em conta que a nova Diretiva Europeia sobre Transparência Salarial entrará em vigor a 1 de junho de 2026, a responsável diz que o papel da liderança, o rigor no diagnóstico e a coerência nas práticas são determinantes para que a transparência se torne norma e não exceção.

Como definiria, de forma simples e prática, o conceito de transparência salarial?

Transparência salarial é garantir que as decisões de remuneração seguem critérios claros, objetivos, conhecidos por todos e aplicados de forma consistente. Não se trata apenas de divulgar salários, mas de conseguir explicar, com base em critérios justos, o “como” e o “porquê” das diferenças remuneratórias entre pessoas e funções.

“Muitas organizações continuam sem grelhas salariais claras, sem critérios objetivos de progressão ou promoção e com decisões ainda muito centradas em abordagens casuísticas”.

Estarão as empresas portuguesas preparadas para cumprir a Diretiva Europeia sobre a Transparência Salarial? Que condições precisam de existir para que tal seja uma realidade?

Pela nossa experiência de trabalho com diversas organizações, o cenário é muito heterogéneo. Encontramos empresas que ainda estão numa fase muito inicial, sem estruturas remuneratórias formais ou critérios objetivos definidos, outras que já têm práticas parcialmente alinhadas e um grupo mais restrito que está francamente preparado, precisando apenas de consolidar a forma como sistematiza e comunica essa informação internamente.

Apesar da consciência sobre o tema estar a crescer, persistem lacunas estruturais importantes. Muitas organizações continuam sem grelhas salariais claras, sem critérios objetivos de progressão ou promoção e com decisões ainda muito centradas em abordagens casuísticas.

Importa também sublinhar que os requisitos da Diretiva não são iguais para todas as empresas: aquelas com mais de 250 colaboradores estarão sujeitas a obrigações mais exigentes, como a entrega anual de relatórios de transparência salarial. Já as empresas com 150 a 249 colaboradores terão de cumprir estas obrigações com uma periodicidade trienal. Esta diferenciação oferece algum tempo adicional às empresas de média dimensão, mas não deve ser interpretada como um adiamento, antes como uma oportunidade para estruturar, com solidez, as suas políticas e práticas remuneratórias.

Para que esta mudança se torne efetiva e sustentável, é essencial começar por um diagnóstico rigoroso da realidade atual. A partir daí, rever políticas e práticas internas, formalizar critérios e capacitar as lideranças, porque são elas que vão precisar de aplicar e, sobretudo, de explicar estas práticas com consistência e segurança. A transparência salarial não se impõe por decreto: constrói-se com base em dados, coerência e confiança.

O que muda, na prática, para as empresas portuguesas?

A grande mudança está mesmo na exigência de transparência. Práticas que antes eram pouco claras ou até consideradas tabu passam a ter de ser explicadas e documentadas. Os colaboradores têm o direito de aceder a informação sobre faixas salariais médias por género e função, e as empresas terão de explicitar critérios objetivos e neutros para promoção e progressão.

Acresce que as obrigações concretas variam, mais uma vez, consoante a dimensão da empresa. As organizações com mais de 250 colaboradores terão de apresentar relatórios anuais de transparência salarial. Enquanto as empresas entre 150 e 249 colaboradores deverão fazê-lo de três em três anos. Este calendário progressivo volta a dar algum tempo adicional às empresas de média dimensão, mas deve ser encarado como uma oportunidade para preparar, com rigor, políticas remuneratórias mais justas, claras e sustentáveis. Isto obriga a uma maior coerência entre o que se pratica internamente e o que se consegue demonstrar com clareza.

“(…) a transparência salarial pode e deve ser um instrumento para prevenir desigualdades ligadas a outros fatores, como idade, origem étnica, deficiência ou qualquer característica não relacionada com mérito”.

A transparência salarial está muitas vezes associada à igualdade de género. Concorda que vai além disso? Que outras dimensões cobre?

Sem dúvida. A igualdade de género é uma frente fundamental, mas a transparência salarial pode e deve ser um instrumento para prevenir desigualdades ligadas a outros fatores, como idade, origem étnica, deficiência ou qualquer característica não relacionada com mérito. No fundo, é um passo importante para garantir justiça e coerência em todas as decisões de gestão de pessoas.

Na vossa experiência na Cegoc, quais têm sido os principais benefícios observados nas organizações que adotam políticas de transparência salarial?

Quando bem trabalhada, a transparência fortalece a confiança dos colaboradores, aumenta a perceção de justiça e tem impacto direto no engagement, na retenção e na imagem da empresa como empregadora. Internamente, ajuda a alinhar líderes e Recursos Humanos em decisões mais estruturadas e fundamentadas. É uma mudança que melhora a relação das pessoas com o trabalho – e com quem lidera.

E quais os maiores receios ou resistências por parte das empresas quando se fala neste tema?

O principal receio é o de expor desigualdades internas que até agora não estavam claras ou documentadas. As empresas preocupam-se com o impacto na motivação das equipas e com possíveis ajustamentos salariais. Mas ignorar o tema ou adiar a sua abordagem pode trazer riscos maiores, sejam estes legais, reputacionais e, sobretudo, de confiança junto das pessoas.

“Sabemos que nenhuma mudança se faz sem pessoas, por isso investimos também na sensibilização e formação de lideranças e equipas de Recursos Humanos (…)”.

Como é que a Cegoc ajuda as empresas a dar os primeiros passos na construção de um modelo de transparência salarial? Como apoia as empresas neste processo?

Na Cegoc trabalhamos com uma abordagem prática e estratégica, que ajuda as empresas a dar passos sólidos neste processo. Começamos com um diagnóstico profundo das práticas salariais, identificando desigualdades, incoerências ou zonas de risco. A partir daí, apoiamos a construção ou revisão de políticas remuneratórias, definindo grelhas salariais, critérios de progressão e lógicas de remuneração variável — sempre com foco na equidade, na clareza e na coerência.

Sabemos que nenhuma mudança se faz sem pessoas, por isso investimos também na sensibilização e formação de lideranças e equipas de Recursos Humanos, para que estejam preparadas para aplicar e comunicar estas políticas com confiança. Ajudamos ainda na definição de estratégias de comunicação interna, bem como na gestão do risco reputacional associado ao tema.

Para facilitar o arranque, disponibilizamos uma checklist de autodiagnóstico que ajuda as empresas a perceber em que ponto estão e que passos devem dar. Cada organização é única — por isso o nosso apoio é sempre adaptado à sua realidade.

Quais são os erros mais comuns que as empresas cometem neste processo?

Um erro frequente é tratar o tema apenas como um exercício técnico ou de compliance legal, sem o enquadrar na estratégia de gestão de pessoas. Outro erro é comunicar demasiado cedo, antes de garantir que as práticas internas são realmente justas e coerentes. A transparência não pode ser apenas comunicada, tem de ser construída com consistência.

Há um perfil de empresa mais recetivo ou preparado para abraçar esta mudança? PME vs grandes empresas, setores mais regulados, etc.?

As grandes empresas ou aquelas que atuam em setores regulados tendem a estar mais avançadas — muitas já têm políticas estruturadas ou experiência com exigências similares noutros mercados. No entanto, temos visto PME a dar passos muito consistentes, especialmente quando têm uma liderança comprometida e disponível para mudar. A chave não está tanto na dimensão, mas na vontade de fazer diferente.

Que medidas concretas devem as empresas adotar para garantir transparência salarial: Relatórios anuais de remunerações (para empresas com +100 trabalhadores) e uma avaliação de categorias sob critérios objetivos, por exemplo?

Avaliação de funções com base em critérios objetivos, grelhas salariais bem definidas, critérios claros de progressão e comunicação acessível a todos os colaboradores, são pilares essenciais. O reporte periódico será obrigatório para empresas com mais de 100 trabalhadores, mas com exigências diferenciadas: anual para empresas com mais de 250 colaboradores e trienal para empresas entre 150 e 249. A preparação deve começar antes, com base em práticas estruturadas, como uma avaliação objetiva de funções, grelhas salariais claras e critérios de progressão acessíveis e compreendidos por todos.

“A transparência está cada vez mais ligada à confiança e num mercado competitivo a confiança é uma vantagem”.

O que antecipa para o futuro? Acredita que a transparência salarial será, em breve, a norma e não a exceção?

Acredito que será a norma, primeiro por via da legislação, mas depois de forma mais natural, à medida que as organizações percebam os benefícios. A transparência está cada vez mais ligada à confiança e num mercado competitivo a confiança é uma vantagem. Quem for mais claro e mais justo, será também mais atrativo.

Que mensagem deixaria às lideranças que ainda estão hesitantes quanto à adoção de práticas mais transparentes em matéria de remuneração?

A hesitação é legítima, mas não deve impedir o progresso. A transparência pode e deve começar com passos simples e consistentes. É uma oportunidade para alinhar a empresa com os valores que o talento procura e para construir uma cultura mais justa, coesa e preparada para o futuro.

 

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