Entrevista/ “A sustentabilidade não é um tema novo, mas continua a representar um desafio nos dias de hoje”

Fernando Leite, administrador-delegado da Lipor

“A Lipor tem hoje um volume de negócios à volta dos 50 milhões, ativos superiores a 110 milhões de euros, emprega cerca de 250 colaboradores diretos e cerca de 150 indiretos, trabalha em 20 países e espera investir cerca de 500 milhões em novas fábricas até 2035”, revela Fernando Leite, administrador-delegado da Lipor, que recebeu o Prémio Aluno Notável 2025 da AESE Business School.

Com mais de duas décadas de liderança à frente da Lipor – Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto, Fernando Leite transformou a organização numa referência internacional na área da sustentabilidade e da economia circular. Hoje, a Lipor regista um volume de negócios na ordem dos 50 milhões de euros, ativos superiores a 110 milhões e emprega cerca de 400 pessoas.

Reconhecido pela sua visão estratégica e pela capacidade de inovar num setor ainda pouco valorizado, Fernando Leite foi recentemente distinguido com o Prémio Aluno Notável 2025 da AESE Business School, distinção que sublinha o seu percurso de liderança responsável, impacto comunitário e compromisso com o bem comum. Nesta entrevista, partilha os desafios, as conquistas e as prioridades que moldam o futuro da Lipor e do setor da gestão de resíduos em Portugal.

O que representa para si ser distinguido com o Prémio Aluno Notável da AESE Business School em 2025?

Indubitavelmente uma honra e motivo de extrema felicidade. Sei do excelente, competente e extraordinários naipe de gestores que anualmente participam nos programas de formação da escola. Conheço muitos do grupo de Alummis que também aproveitam as “continuidades” e demais iniciativas que a AESE nos proporciona. O ser distinguido com o Prémio Aluno Notável faz-me devedor de uma gratidão imensa ao júri, à escola, à minha família e, consequentemente, também a mim que soube ser digno desta honraria.

Está à frente da Lipor desde 1999. Que balanço faz destas mais de duas décadas de liderança?

A minha liderança beneficiou de um conjunto de fatores que consegui congregar, para que o êxito fosse pleno. Em primeiro lugar as pessoas, pois são elas o “cérebro” das estratégias, dos planos, dos projetos e das operações. Com uma equipa de alto valor e que se motivou pelos desafios permanentes, foi possível desenvolver um plano de negócios consistente, sustentável, criando valor para as diferentes partes interessadas.

É inequívoco que os primórdios da nossa intervenção na Lipor foi muito complexo – foi “atacar” problemas urgentes, resolver carências básicas, estruturar um plano que permitisse à empresa “renascer quase das cinzas”. Julgo, salvo melhor opinião, que tudo foi feito conforme as melhores regras, utilizando as melhores práticas e tecnologias disponíveis, construindo um Sistema Integrado de gestão de resíduos, em que três importantes fábricas são o pilar do negócio que desenvolvemos.

Como balanço, comprova-se que desenvolvemos indústria, formámos um importante grupo de técnicos especialistas que puderam liderar os diferentes setores fabris com competência e que são hoje referência nos debates, congressos, produção teórica publicada e áreas formativas dedicadas as profissionais do setor.

Hoje temos um volume de negócios à volta dos 50 milhões, ativos superiores a 110 milhões de euros, empregamos cerca de 250 colaboradores diretos e cerca de 150 indiretos, trabalhamos em 20 países e esperamos investir cerca de 500 milhões em novas fábricas até 2035. 

“Os maiores desafios foram sempre os da enorme burocracia que entorpece o setor público e que nos limita em atividades (…)”.

Quais foram os maiores desafios e conquistas ao longo deste percurso de transformação da Lipor numa organização de referência internacional?

Os maiores desafios foram sempre os da enorme burocracia que entorpece o setor público e que nos limita em atividades, projetos, e na clarificação do modelo de negócio. As conquistas destes anos estão à vista de todos – são as fábricas, são a criação de postos de trabalho, a criação de valor, a importante afirmação da inovação na organização, o entendimento de que a sustentabilidade e a sua correta gestão é importantíssima na solidez do projeto, e o ambicioso plano de investimentos que temos em mãos, aprovado e em vias de se concretizar nos seus projetos principais, a prioridade que damos à digitalização e à produção de dados, à robotização e ao arranque de conhecimento domínio da IA.

Como é liderar uma organização que atua num setor ainda pouco valorizado por muitos, mas absolutamente central para o futuro das cidades?

Percebemos a necessidade de posicionar o setor como relevante para o desenvolvimento económico do país e temos sido uma entidade reconhecida como pioneira no país e na Europa. Isto mede-se pela importância que damos ao relacionamento com os municípios nossos associados, em diferentes projetos. A forte participação da Lipor nos conselhos de administração das entidades internacionais, que se ocupam das matérias importantes do nosso negócio, dá-nos a vantagem de acompanhar a evolução internacional de assuntos relevantes do setor e, ao mesmo tempo, assaca-nos a responsabilidade na coautoria de políticas e estratégias internacionais no setor, ou até na liderança de grupos de trabalho específicos, nas matérias onde a nossa expertise é mais vincada.

“Estamos na linha da frente e utilizamos nas nossas unidades as melhores tecnologias de tratamento e garantimos a qualidade dos materiais que encaminhamos para as indústrias recicladoras”

A Lipor é hoje reconhecida por práticas inovadoras na valorização de resíduos e pela aposta na sustentabilidade. Que projetos ou tecnologias destacaria como marcos nesta trajetória?

Temos desenvolvido a nossa atuação sob uma orientação estratégica forte e consistente – em prol da evolução para um novo paradigma de economia circular, que se impõe com particular relevância no setor dos resíduos -, com vista a que o nosso modelo de negócio evolua de uma gestora de resíduos para uma entidade produtora de produtos e prestadora de serviços especializados. Os nossos produtos e serviços integram e promovem os princípios da economia circular, contribuindo, de forma natural, para alavancar a circularidade junto de todos os clientes.

Estamos na “linha da frente”, utilizamos as melhores tecnologias de tratamento nas nossas unidades e garantimos a qualidade dos materiais que encaminhamos para as indústrias recicladoras. Posso ainda fazer uma referência a um projeto emblemático, que remota já aos finais dos anos 90, mas inovador ainda nos dias de hoje, em que decidimos encerrar e requalificar ambiental e paisagisticamente os nossos aterros. Decorrente dessa estratégia, em 2009 inaugurámos o Parque Aventura da Lipor e, um ano mais tarde, abrimo-lo para fruição de comunidade. É com muita satisfação que partilho que esta infraestrutura alcançou recentemente um marco histórico: mais de 500 mil visitantes desde a sua abertura, o que demonstra a sua importância. E foi galardoado com a prestigiada marca Green Flag Award.

O nosso caminho é o de continuar a alargar o portefólio de produtos Lipor, projetados de acordo com os princípios da economia circular, minimizando o impacto ao longo do respetivo ciclo de vida.

Como se equilibra a eficiência económica com o impacto social e ambiental, numa lógica de verdadeira economia circular?

Exige uma abordagem integrada, onde o crescimento económico seja dissociado da extração de recursos e da produção de resíduos. Para tal, é fundamental apostar em modelos de negócio circulares que favoreçam a redução, a reutilização, o prolongamento da vida útil dos produtos e a valorização de recursos. Os negócios circulares, além de vantagens ambientais, como a poupança de recursos naturais, e vantagens sociais, como a dinamização das economias locais e a criação de empregos, permitem evitar custos, por exemplo, com o transporte e o tratamento de resíduos.

Ao mesmo tempo, promovem a resiliência das organizações, a sua melhor adaptação às exigências regulatórias, do mercado e melhoram a sua competitividade. Facilitam a atração de investidores e financiadores, no que respeita a fontes de financiamento sustentáveis, e promovem a melhoria da sua reputação junto dos consumidores, sobretudo entre as gerações mais jovens, cada vez mais conscientes das questões ambientais.

Qual tem sido o papel da Lipor na concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente no que toca à ação climática e produção/consumo responsáveis?

A sustentabilidade não é um tema novo, mas continua a representar um desafio nos dias de hoje. Reconhecida a importância que a sustentabilidade desempenha na criação de valor nas organizações, torna-se necessário incrementar o debate, colocando-a na agenda.

Na Lipor temos acompanhado bem de perto as principais tendências nestas matérias, sabendo que nos últimos anos o contexto regulatório no que se refere aos temas de sustentabilidade intensificou-se. A abordagem à sustentabilidade está na nossa génese e é a bússola do nosso modelo de governação, considerando-a como um elemento permanente e integrante do negócio. É na agenda de sustentabilidade que refletimos a nossa dinâmica e corporizamos a resposta aos desafios ESG totalmente alinhada com a estratégia corporativa.

“O nosso compromisso vai muito para além da gestão e valorização dos resíduos. Estamos comprometidos com a sustentabilidade e com a partilha de valor (…)”.

A sensibilização ambiental é também uma das vossas apostas. Como é feita essa aproximação às comunidades, escolas e empresas?

O nosso compromisso vai muito para além da gestão e valorização dos resíduos. Estamos comprometidos com a sustentabilidade e com a partilha de valor, daí que a sensibilização, a educação e a formação ambiental sejam valências fundamentais. Corporizamos, num Plano de Prevenção, Educação, Comunicação e Sustentabilidade, a sistematização de estratégias, projetos e iniciativas, alicerçadas numa oferta holística de envolvimento e de proximidade com as diferentes partes interessadas, nomeadamente comunidades, escolas e empresas.

Acreditamos que é fundamental que as comunidades estejam connosco, que participem neste desafio, que sintam que são uma peça fundamental para que possamos fazer mais e melhor. Investimos em campanhas de comunicação e de sensibilização, em especial de proximidade. “Entramos” nas habitações, nas empresas, na comunidade escolar e valorizamos o seu empenho com o reconhecimento coração verde. Destaco o desenvolvimento de projetos educativos, dirigidos a instituições de ensino público e privado, bem como a instituições da área social ou a outras associações e entidades, que transferem práticas ambientalmente sustentáveis para a nossa comunidade, de acordo com os desafios que hoje se enfrentam.

Como vê a evolução da consciência ambiental dos cidadãos portugueses? O que ainda falta fazer?

Considero que a aposta na promoção de comportamentos cada vez mais sustentáveis deve estar alicerçada no desenvolvimento de uma estratégia de sustentabilidade, prevenção, educação, comunicação e capacitação, numa ótica de proximidade e interação com as diferentes “partes interessadas”. É inequívoco que são fundamentais a consciencialização ambiental e o envolvimento da comunidade para o crescente compromisso com práticas de prevenção da produção de resíduos, bem como de reciclagem. Fomentar as condições necessárias para que os cidadãos portugueses possam contribuir para os desideratos nacionais e europeus, nomeadamente os da política de resíduos, faz-nos evoluir enquanto sociedade, protegendo o planeta.

Acredita que a mudança de mentalidades é hoje o maior desafio para a sustentabilidade?

Diria que hoje, face até ao contexto que nos rodeia, nomeadamente o contexto externo, são múltiplos os desafios e todos eles com relevo. Para acelerar esta mudança, precisamos de um maior envolvimento de todos os stakeholders, como os cidadãos, as empresas, os municípios, as entidades gestoras, os sistemas de gestão de resíduos urbanos e a indústria recicladora.

A mudança de mentalidades é só mais um e importante desafio, ao qual começámos a dar realce à muito tempo, com a criação do Gabinete de Informação Lipor, em 1996. Paulatinamente, temos vindo a promover um compromisso dos cidadãos com as boas práticas ambientais, facilitando a aquisição de competências promotoras de maior intervenção cívica, tornando-os capazes de alimentar o crescimento e consolidação de processos ambientalmente responsáveis e sustentáveis.

Apesar deste esforço há ainda um caminho a percorrer. Precisamos de contrariar o estigma social e partilhar a responsabilização das pessoas pelo seu papel na sustentabilidade. As palavras e as imagens são aliadas chave nesta mudança. Utilizar uma linguagem clara, precisa e harmonizada. Trazer o problema para o presente e não se focar exclusivamente no futuro são alguns dos drivers fundamentais nesta mudança. Asseguramos o acesso e a transparência da informação, bem como a possibilidade de envolvimento e adoção de boas práticas, queremos erguer um estilo de vida Lipor que promova o crescimento de comunidades sustentáveis, criando assim uma forte identidade com os valores da marca.

“Acreditamos no crescimento de um ecossistema suportado num modelo sistémico e colaborativo, que incentive e promova a prosperidade e a inovação sustentável e tecnológica, gerando e partilhando valor”.

A Lipor tem investido em parcerias com instituições académicas e organismos internacionais. Qual a importância dessa rede de colaboração?

O desenvolvimento de um projeto tão audaz e multidisciplinar como o nosso, não se pode fazer isoladamente. Partindo desta premissa, desenvolvemos uma forte componente de cooperação e envolvimento com entidades e instituições nacionais e internacionais, académicas e outras. A união de esforços e a partilha de experiências entre diferentes entidades contribui para alcançar mais facilmente os objetivos definidos, sendo maior a probabilidade de êxito e mais célere a capacidade de resposta. Acreditamos no crescimento de um ecossistema suportado num modelo sistémico e colaborativo, que incentive e promova a prosperidade e a inovação sustentável e tecnológica, gerando e partilhando valor.

Para além disso, temos fomentado mais do que o trabalho em rede, ou seja, temos sido potenciadores de criação de organizações. Refiro-me particularmente a uma iniciativa recente que foi a constituição da ENNO – Energia do Norte, uma Comunidade de Energia Renovável (CER).  Posiciona-se como um exemplo de inovação colaborativa entre o setor público e institucional, promovendo um novo paradigma energético assente na economia circular, descentralização e responsabilidade partilhada.

Quais são os grandes objetivos da empresa para os próximos anos?

A gestão de resíduos em Portugal enfrenta desafios técnicos significativos, nomeadamente no que respeita ao tratamento de novos fluxos de resíduos, tais como, biorresíduos e resíduos têxteis. A União Europeia impõe metas ambiciosas e Portugal enfrenta ainda desafios estruturais no cumprimento das ambiciosas metas europeias de redução e valorização de resíduos. A superação destes desafios exige um esforço coordenado que inclua o reforço das infraestruturas, a adoção de novas tecnologias, a capacitação técnica e a implementação de sistemas eficazes de monitorização. E é na concretização destes objetivos, entre outros igualmente importantes para a nossa atividade, que temos de estar centrados.

Contudo, temos trabalhado noutros objetivos, como o combate às alterações climáticas e transição energética, através da prossecução da nossa Estratégia 4M – menos resíduos, menos carbono, mais clima, mais biodiversidade -, para a qual reforçámos o compromisso para 2030 de redução de 50% das emissões, ou seja, reduzindo para metade as suas emissões, face a 2006, e a sua ambição de atingir a neutralidade climática em 2045, pois sabemos que o aumento dos riscos climáticos físicos tem de impulsionar padrões de divulgação mais rigorosos.

Não podemos deixar de acompanhar os avanços tecnológicos, que são contínuos a sempre em aceleração, para potenciar o nosso negócio face às vantagens, por exemplo, da inteligência artificial, mas também antecipar a proteção face a potenciais danos. O investimento, a inovação, a digitalização, a criatividade, a capacitação, a comunicação e sensibilização e a ambição têm sido elementos-chave neste trajeto.

Por último, mas de prioridade de topo, é continuar a fomentar políticas, internas e externas, de direitos humanos e igualdade, bem como criar valor e impacto pelas parcerias e na comunidade.

Que conselhos deixaria a futuros líderes que queiram ter impacto social positivo através da sua atividade profissional?

Acredito na importância de uma visão holística e numa liderança que seja capaz de criar mais e novos líderes. Um líder, em primeiro lugar, tem de ter a habilidade de se focar no crescimento e desenvolvimento dos seus colaboradores, e conseguir entender que uma organização não cresce isoladamente, que precisa de todo um ecossistema interno e externo capaz de gerar valor. Sustentabilidade é gerar valor, é criar impacto nas suas diferentes dimensões.

Além disso, hoje grande parte das organizações tem a coabitar diferentes gerações com expetativas, competências e visões sobre o trabalho muito distintas, o que coloca às lideranças vários desafios. Mas neste tema destacaria dois: o gerir a convivência e o gerir o talento. Por último, reforçaria que o exercício da liderança é uma caminhada de aprendizagem contínua, mas que acima de tudo seja de exemplo.

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