Entrevista/ “A gamificação não é um jogo, mas para aprender a gamificar é preciso jogar”

Lançaram no início do ano um livro dedicado à gamificação em contexto empresarial e educativo. Mais recentemente Ricardo Queirós e Mário Pinto, docentes na Escola Superior de Media Artes e Design, do Politécnico do Porto, submeteram uma candidatura a um projeto europeu para aplicar modelos de gamificação no ensino das artes e prometem não ficar por aqui.
Ajudar a aplicar técnicas de gamificação para promover a motivação nas organizações e no ensino. É este o objetivo dos investigadores e docentes Ricardo Queirós e Mário Pinto, no seu mais recente livro “Gamificação Aplicada às Organizações e ao Ensino”.
Em entrevista ao Link To Leaders, os autores falam ainda das vantagens da gamificação em outras áreas como o desporto, saúde e bem-estar, redes sociais ou sustentabilidade e do futuro desta técnica.
O que vos levou a lançar o livro “Gamificação Aplicada às Organizações e ao Ensino”?
Mário Pinto (M.P.): Constatámos que não havia nenhuma obra, em português, que abordasse o tema da gamificação. Contudo, esta é uma área em forte crescimento e tem vindo a assumir-se como uma forte tendência nas organizações, tendo em vista impulsionar os seus negócios e potenciar comportamentos que ajudem a criar valor.
Em ambientes educacionais, sobretudo com o advento do ensino à distância, e em virtude da pandemia, tornou-se essencial manter os estudantes motivados e envolvidos nos processos de aprendizagem. A gamificação pode desempenhar um papel fundamental na proximidade dos estudantes com os conteúdos de aprendizagem, incrementando a sua motivação e envolvimento com o processo de ensino. Enquanto docentes, sentimos essa necessidade, à qual não será estranha o facto de a geração dos millenials corresponder a cerca de 75% da população ativa mundial. Esta geração nasceu e cresceu na era dos jogos e da Internet, pelo que é natural que se sinta mais motivada quando embebemos mecânicas de jogos nos processos do dia a dia. O livro surgiu, assim, da necessidade de organizar e sistematizar conhecimento sobre a gamificação, constituindo uma alternativa de literatura em português, sobre esta área em forte crescimento.
Que mensagens querem passar no livro?
M.P.: O livro procura sensibilizar os leitores para a gamificação, mais concretamente, para a sua aplicação nas organizações como forma de alavancar processos de negócio e motivar os seus colaboradores, bem como em ambientes educativos, de forma a promover o interesse dos estudantes e os ajudarem a consolidar as suas competências.
O livro pretende também evidenciar a importância do processo de desenho e implementação da gamificação, como forma de garantir o alinhamento da estratégia gamificada com os objetivos propostos, e descreve ainda 17 elementos e mecânicas de gamificação, agrupadas por diversos tipos de utilizadores. Pretende-se ainda ilustrar a aplicação destes conceitos em diversos contextos educacionais e organizacionais, através da apresentação de inúmeros exemplos práticos. Procura-se desmistificar algumas ideias pré-concebidas sobre a gamificação e demonstrar a sua aplicabilidade na prática.
“Através da gamificação, procura-se fomentar comportamentos que tragam valor acrescentado para a organização, recompensando comportamentos desejáveis, particularmente na execução de tarefas menos apelativas ou que são encaradas como mais aborrecidas”.
De que forma pode a gamificação ser aplicada aos contextos organizacionais e educacionais? E quais as vantagens?
M.P.: Em contextos organizacionais, a gamificação pode ser aplicada numa dimensão interna (processos de recrutamento, onboarding, gestão de talento, treino e formação, etc), ou externa (em processos de vendas, de marketing e fidelização de clientes). Através da gamificação, procura-se fomentar comportamentos que tragam valor acrescentado para a organização, recompensando comportamentos desejáveis, particularmente na execução de tarefas menos apelativas ou que são encaradas como mais aborrecidas.
No entanto, os efeitos da gamificação nas empresas podem ser vistos de uma forma muito mais extensa, conferindo potenciais benefícios em diversas áreas, tais como: motivação e envolvimento, cooperação e colaboração (p.e. em tarefas que trazem reconhecimento de grupo e não de forma individual), foco em tarefas produtivas (recompensas mais evidentes em tarefas que são mais relevantes para a organização), entre outras.
Em contextos educacionais, a gamificação tem como objetivo envolver e motivar os alunos através da inclusão de elementos e mecânicas presentes no design de jogos no ambiente de aprendizagem. Esta inclusão permite premiar alunos com sucesso nas suas tarefas diárias, dar feedback instantâneo e personalizado, apresentar o seu progresso no curso e fomentar a cooperação e competição saudável entre alunos.
As empresas recrutadoras estão cada vez mais a adotar o processo seletivo baseado em jogos. A gamificação é também uma tendência nesta área?
M.P.: Sim, a gamificação tem vindo a ser introduzida em processos de seleção e recrutamento com assinalável sucesso. A gamificação aplicada a processos de seleção e recrutamento pode adicionar desafios aos candidatos que permitam não só avaliar qualificações técnicas, mas, sobretudo, característicos pessoais, mentais e emocionais, aspetos normalmente difíceis de avaliar numa típica entrevista. Espírito crítico, criatividade, capacidade de resiliência e de resolução de problemas são alguns aspetos em que a gamificação pode trazer feedback imediato, fazendo com que o processo de recrutamento seja agilizado de forma mais rápida.
Atividades como quizzes, hackathons, desafios ou puzzles, são uma ótima forma de gerar competição entre os candidatos, de promover a cooperação entre eles, e de estes demonstrarem a sua competência e criatividade na resolução de problemas.
Que outras áreas poderão fazer uso da gamificação?
M.P.: Nas organizações, a gamificação tem vindo a ser introduzida em áreas muito diversas, procurando gerar motivação e envolvimento dos diversos intervenientes, sejam eles clientes, potenciais clientes ou colaboradores. As áreas de vendas e de marketing foram talvez as primeiras onde se procuraram implementar estratégias gamificadas. Fidelizar clientes, captar potenciais clientes ou reconhecer os melhores vendedores, são exemplos muito comuns. Hoje em dia, as organizações procuram trazer estas estratégias para dentro da organização, em contextos como o recrutamento, onboarding, gestão do talento, treino e formação ou mesmo na avaliação de desempenho.
Assiste-se ainda, atualmente, a uma presença muito forte da gamificação em áreas como o desporto (são exemplos as aplicações de running, caminhadas, etc.), saúde e bem-estar (saúde mental, nutrição), redes sociais (como a Waze ou Swarm), ou sustentabilidade (reconhecendo comportamentos que contribuam para a reciclagem ou diminuição do CO2). Sem esquecer, naturalmente, o ensino, área de atuação onde a gamificação tem vindo a assumir um papel muito relevante. Incrementar a motivação e o envolvimento dos estudantes, aliado ao feedback imediato, e ao incentivo à cooperação e colaboração, são algumas das vantagens que decorrem da aplicação da gamificação ao ensino.
“Não basta introduzir alguns elementos associados a jogos, em contexto empresarial. É preciso conhecer os colaboradores, o que os motiva, os processos e objetivos da organização, para se poder delinear uma estratégia com sucesso (…)”.
Estão as empresas portuguesas preparadas para aplicar a gamificação nos seus processos?
M.P.: A maioria das empresas não está, efetivamente, preparada. Sobretudo, porque falta informação sobre o processo de implementação de uma estratégia gamificada. Não basta introduzir alguns elementos associados a jogos, em contexto empresarial. É preciso conhecer os colaboradores, o que os motiva, os processos e objetivos da organização, para se poder delinear uma estratégia com sucesso, e embeber os elementos de gamificação mais apropriados a cada contexto. Há um processo próprio, sistematizado, para se desenvolver uma estratégia de gamificação, que o livro aborda e descreve com bastante clareza.
E as instituições de ensino? Quais os desafios que enfrentam para utilizar esta técnica?
M.P.: O maior desafio na implementação da gamificação é torná-la efetiva e uma mais-valia real no processo de aprendizagem. O poder da gamificação é enorme, quando esta é bem desenhada e implementada. Infelizmente, a gamificação tem também problemas. No âmbito do ensino, e com o buzz da gamificação, muitos professores sentem-se pressionados a adicionar algum tipo de elemento de gamificação aos seus métodos de ensino. Em muitos casos, essas tentativas forçadas são limitadas à simples inclusão de badges, sem qualquer estratégia previamente definida. Este é o conceito conhecido como “brócolos cobertos com chocolate”.
Na prática, podem cobrir-se os brócolos com chocolate, mas continuam a ser brócolos. Da mesma forma, pode adicionar-se uma camada de gamificação a um curso enfadonho, mas, no final do dia, a gamificação não será certamente a técnica que vai fazer com que todos os alunos tenham sucesso. Efetivamente, a gamificação pode ser uma ferramenta incrível, se aplicada corretamente, devendo ser tratada como parte de uma ideia maior de criação de conteúdo educacional envolvente e de sucesso.
Que casos de sucessos vos inspiram?
M.P.: O livro aponta diversos casos de sucesso, tanto ao nível da implementação da gamificação em organizações, como no ensino. Encontramos diversas plataformas de ensino que implementam estratégias gamificadas com assinalável sucesso, como a plataforma de e-learning Udemy, a Sololearn, a freeCodeCamp, entre muitas outras. Nas organizações, são por demais conhecidas algumas iniciativas de sucesso em empresas como a McDonnald’s, SONAE, EDP, e muitas outras.
A segunda parte do livro – Gamificação na Prática – apresenta ainda dois casos práticos onde a gamificação é aplicada no contexto organizacional e no contexto educativo, recorrendo à inclusão de elementos e mecânicas de gamificação em plataformas conhecidas como o WordPress e o Moodle.
Que outros aspetos podem ser explorados por esta técnica e que ainda não o são?
Ricardo Queirós (R.Q.): Na realidade, existem exemplos da aplicação da gamificação em quase todos os contextos e quadrantes da nossa sociedade. No entanto, indo ao encontro das cidades do futuro onde conceitos como a civilidade, eficiência energética, sustentabilidade e participação cívica são cruciais, espera-se que a gamificação possa potenciar essa participação de forma colaborativa.
De que forma a motivação e a gamificação devem andar juntas?
R.Q.: São dois conceitos que se ligam completamente. A aplicação de uma estratégia gamificada tem quase sempre como intuito fomentar a motivação dos seus utilizadores. Uma estratégia gamificada agrega um conjunto de ciclos de envolvimento onde a ação de um utilizador é provocada por uma motivação, que assume um papel fundamental no ciclo. Sendo assim, é importante perceber a forma como somos motivados. Na gamificação, a motivação divide-se, tipicamente, em dois grandes grupos: motivação intrínseca e extrínseca. A primeira influencia os utilizadores na realização de atividades só porque querem ou para a sua satisfação pessoal; a segunda influencia os utilizadores na realização de atividades a fim de se atingir um bem mensurável.
Em termos de gamificação, seria uma recompensa dada a um utilizador (por exemplo, um badge). Na prática, é simples distingui-las: uma pessoa motivada de forma intrínseca realiza as atividades pelo prazer, diversão ou como forma de crescimento, sem necessitar de recompensas. Por outro lado, uma pessoa motivada de forma extrínseca é movida exclusivamente pelos benefícios mensuráveis que a realização traz, como, por exemplo, um aumento salarial ou uma promoção, e não por querer fazê-lo.
Qual tem sido o contributo das start-ups nesta área?
R.Q.: A gamificação é uma tendência recente. Como tal, a gamificação há 10 anos era vista como um mecanismo extra ou um layer a ser incluído numa aplicação existente de forma a dotá-la com capacidades de fidelização e motivação. Hoje em dia, a gamificação começa a ser já pensada na fase de conceção das aplicações e tal deve-se a uma maior consciencialização dos seus benefícios.
Sendo as start-ups compostas por jovens empreendedores, muitos deles millenials, ou seja, familiarizados com o mundo dos jogos, pode-se dizer que é quase instintivo pensar na gamificação em todos os processos de desenho e implementação de aplicações. Sendo assim, consideramos que a adoção da gamificação por parte das start-ups permite gerar impacto e empatia pelo conceito, ao mesmo tempo, disponibilizar mais casos de estudo que irão servir de base, num futuro próximo, para a standardização da gamificação.
Como perspetiva o futuro da gamificação?
R.Q.: O futuro da gamificação é de franco crescimento. Um dos vários estudos mencionados no livro (MarketsandMarkets) refere que o mercado da gamificação está projetado para crescer de 9 biliões de dólares em 2020 para 30,7 biliões em 2025, a uma taxa de crescimento anual de 27,4%. Este crescimento vai criar procura em especialistas na área e com empresas a dedicarem-se exclusivamente à aplicação de estratégias de gamificação. Todo este crescimento vai levar certamente à standardização da gamificação com a definição de especificações para modelar elementos e mecânicas de gamificação, à criação de normas de interoperabilidade e ao surgimento da gamificação na cloud com os principais cloud players (Microsoft, Google e Amazon) a investir em módulos nativos nas suas infraestruturas cloud.
“Um dos vários estudos mencionados no livro (MarketsandMarkets) refere que o mercado da gamificação está projetado para crescer de 9 biliões de dólares em 2020 para 30,7 biliões em 2025, a uma taxa de crescimento anual de 27,4%”.
Projetos para o futuro?
R.Q.: Os projetos passam por continuar a investigar e a partilhar conhecimento sobre gamificação. Submetemos recentemente uma candidatura a um projeto europeu que envolve gamificação e esperamos que seja aceite para podermos, em conjunto com vários parceiros europeus, aplicar alguns modelos de gamificação no ensino das artes. Outros projetos estão a ser equacionados, mas que, dado a estarem numa fase embrionária, requerem sigilo. Esperemos ter notícias em breve!
R.Q.: Respostas rápidas:
O maior risco: Assegurar o envolvimento dos utilizadores e, ao mesmo tempo, garantir que estes não se desarticulem com os objetivos organizacionais.
O maior erro: Aplicação de estratégia de gamificação sem conhecer o público-alvo.
A maior lição: A gamificação não é um jogo, mas para aprender a gamificar é preciso jogar.
A maior conquista: Manter os utilizadores no canal de fluxo (longe da frustração e do tédio), conseguindo assim a tão desejada transição da motivação extrínseca para intrínseca.