Entrevista/ “A fileira agroalimentar conseguiu adaptar-se e reinventar-se”

“A crise provocada pelo surto da Covid-19 na Frulact e na generalidade das indústrias alimentares que não dependem dos canais HORECA não teve impacto”, revelou, ao Link To Leaders, João Miranda, o agora administrador não executivo da empresa fabricante de ingredientes naturais para a indústria alimentar e de bebidas, que foi vendida à francesa Ardian no início deste ano.
João Miranda construiu com a Frulact uma história empresarial de sucesso. Desde o nascimento num pequeno barracão nortenho no fundo do quintal até à internacionalização e à conquista de mercados tão díspares como França, Tunísia, Marrocos, África do Sul ou Canadá, a Frulact tornou-se numa imagem de marca portuguesa que o nosso país exporta com sucesso para mercados internacionais competitivos.
O Link To Leaders falou com o responsável sobre o impacto da pandemia na empresa, o cenário atual da indústria alimentar, o prémio ECOTROPHELIA Portugal, do qual é embaixador e que desafia alunos do ensino superior a desenvolverem produtos eco-inovadores e sustentáveis, do projeto de solidariedade social ao qual está ligado, o Centro Zulmira Pereira Simões (CZPS), e ainda da sua visão para o futuro.
De que forma foi a Frulact foi afetada pela pandemia? Que necessidades têm sentido?
A Frulact, sendo uma indústria que atua na cadeia alimentar, tem, mesmo em contextos adversos como o que vivemos, uma missão a cumprir perante os seus parceiros e comunidades onde se insere. Neste contexto, as nossas operações têm laborado normalmente, em todas as geografias, nas quais temos contado com o sentido de responsabilidade e de profissionalismo de todos os nossos quadros, que se têm focado em garantir o contínuo fornecimento e níveis de serviço habituais aos nossos clientes.
Por outro lado, importa também referir que a indústria alimentar, e em particular o setor de atividade da Frulact, em condições normais caracteriza-se por padrões de qualidade, higiene, segurança no trabalho e boas práticas de fabrico de alto nível de exigência, pelo que não houve disrupção ou impacto significativo naquilo que é o normal funcionamento das unidades industriais do Grupo Frulact.
O maior ajuste teve, essencialmente, a ver com a vertente relacional e de proximidade tradicional nos modelos de negócios B2B como o da Frulact, que as regras de distanciamento social impuseram. Mas, hoje, temos todos acesso a um conjunto de ferramentas que encurtam esse distanciamento e que permitiram acompanhar, como habitual, nestes últimos tempos, muito de perto os desafios dos nossos clientes, cumprindo assim com o nosso papel de apresentar soluções e criar valor aos nossos parceiros de negócio.
Quais as medidas que adotaram para inovar e fazer frente à crise?
A crise provocada pelo surto da Covid-19 na Frulact e na generalidade das indústrias alimentares que não dependem dos canais HORECA não teve impacto. A Frulact manteve as suas operações a decorrer normalmente, com níveis de atividade normais, não tendo exigido aqui inovação ao nível do modelo de negócio, como outros setores tiveram de introduzir. Ainda assim, um contexto como este permitiu-nos consolidar na inovação e transformação digital que vínhamos já a investir nos últimos anos.
“As medidas adotadas pelo Governo para uma situação com esta amplitude acabam sempre por não ser suficientes, mas foram importantes para minimizar o impacto no setor, esperando-se maior celeridade e novas iniciativas de carácter mais prático”.
As medidas do governo para assegurar o funcionamento do setor agrícola e agroalimentar nesta fase foram suficientes?
As medidas adotadas pelo Governo para uma situação com esta amplitude acabam sempre por não ser suficientes, mas foram importantes para minimizar o impacto no setor, esperando-se maior celeridade e novas iniciativas de carácter mais prático.
Considera que as empresas portuguesas ligadas ao setor agroalimentar têm demonstrado resiliência e capacidade de resposta
A fileira agroalimentar, no seu todo, conseguiu adaptar-se e reinventar-se, para garantir que os produtos alimentares nunca faltassem nos lineares, mesmo em momentos de muita insegurança e incerteza por parte dos consumidores.
Um inquérito promovido pela Direcção-Geral da Saúde mostra que um em cada três portugueses reporta preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos por dificuldades económicas, no contexto da covid-19. A segurança alimentar poderá ser um principais problema nos próximos meses?
Houve, na realidade, no início da pandemia, uma reação de pânico dos consumidores, mas que rapidamente foi ultrapassada, pois foi percetível a capacidade de resposta da fileira agroalimentar, garantindo a produção e a distribuição dos produtos alimentares.
Nunca esteve em causa a segurança alimentar durante todo este processo, até porque as boas práticas de higiene e segurança, que tanto se tem falado nesta pandemia, são elementares e básicas, quando comparadas com as que são praticadas em toda a fileira.
Quais serão os impactos da Covid-19 a médio e longo prazo no setor?
O impacto no agroalimentar será essencialmente económico, principalmente nos players que estão mais expostos ao canal HORECA, mas também aos mercados de exportação. Estes são os momentos em que as organizações se reinventam, adaptando-se às novas necessidades dos consumidores, ajustando os produtos e a oferta e colocando novo conhecimento ao serviço da sua atividade.
É a produção deste novo conhecimento que é estimulada em iniciativas como o ECOTROPHELIA e que permite às empresas ganharem posições competitivas e comparativas. Tenho a certeza de que o agroalimentar português irá provar, uma vez mais, que está robusto e coeso para sair ainda mais forte desta situação devastadora em termos socioeconómicos.
Que balanço faz destes mais de 30 anos de atividade da Frulact?
O balanço é muito positivo, pois sentimos que conseguimos desenvolver e globalizar a Frulact assente em valores muito fortes, mantendo sempre a ambição de sermos reconhecidos pela competência e excelência das nossas equipas, o que nos fez sempre apostar nos melhores e criar as melhores condições para reter talento.
Este é um processo longo, mas muito gratificante. Hoje, orgulhamo-nos de ter criado uma estrutura fantástica, que apelidamos carinhosamente de Frulacteanos, que são o garante do futuro do projeto Frulact.
“É verdade que a Frulact deixou de ser uma empresa de base familiar, mas a própria Ardian reconheceu que o principal capital da Frulact eram as pessoas e a sua cultura, tendo confiado em toda a equipa da Frulact para esta nova fase da sua história”.
O que mais mudou com a compra da Frulact pela francesa Ardian? Perdeu-se o vínculo familiar da empresa?
É verdade que a Frulact deixou de ser uma empresa de base familiar, mas a própria Ardian reconheceu que o principal capital da Frulact eram as pessoas e a sua cultura, tendo confiado em toda a equipa da Frulact para esta nova fase da sua história. Nestes processos, são sempre esperadas mudanças, que serão necessárias e salutares, até para alcançar a dimensão superior que esteve na base da decisão da alienação. Acredito que o verdadeiro vínculo da família está no seu legado, que está enraizado na cultura da Frulact e nos Frulacteanos, que estou certo de que a atual equipa de gestão irá saber usar e respeitar.
Como surge o prémio ECOTROPHELIA Portugal, do qual o João Miranda é embaixador?
A nível europeu, o ECOTROPHELIA Europe acontece desde 2008, mas em Portugal esta será a 4.ª edição do prémio. O ECOTROPHELIA Portugal teve a sua primeira edição em 2017, sendo organizado pela PortugalFoods, associação que representa o setor agroalimentar nacional. É um prémio que visa dinamizar e modernizar o setor agroalimentar, desafiando alunos do ensino superior a desenvolverem produtos eco-inovadores e sustentáveis, que possam fazer a diferença neste ecossistema, que é um dos que mais contribui para a economia nacional.
Apesar dos produtos serem criados pelos alunos, reúnem o apoio de professores, investigadores e profissionais do setor, com o prémio a funcionar como um laboratório de inovação no meio académico, promovendo em simultâneo o empreendedorismo e a competitividade, aspetos que ganham ainda maior relevância para o setor agroalimentar no momento desafiante que vivemos.
Desde a sua estreia, o ECOTROPHELIA Portugal tem crescido sustentadamente, chegando já a instituições de ensino de todo o país e de diversas áreas, evidenciando a mobilização e empenho dos alunos e das próprias escolas para a participação na iniciativa. Este é o primeiro ano que sou embaixador do prémio, mas já o acompanho desde sempre e é com entusiasmo que vejo esta evolução positiva. É também de salutar a competência das equipas e a qualidade dos produtos desenvolvidos, que têm elevado potencial para chegarem ao mercado.
“A equipa vencedora [do prémio ECOTROPHELIA], além de ganhar um prémio monetário de 2 mil euros e um grande prémio em serviços para acompanhamento e desenvolvimento do seu projeto, irá representar Portugal na final europeia (…)”.
Quais os grandes atrativos e o que espera deste prémio?
São inúmeros os atrativos da iniciativa, tanto para os participantes e o seu vencedor, mas também para o próprio setor. Primeiramente, todas as equipas de estudantes em participação são apoiadas no processo de criação dos produtos agroalimentares, adquirindo novas competências, conhecimentos e a possibilidade de produzir um produto de raiz com potencial real de ser comercializado. No final, a equipa vencedora, além de ganhar um prémio monetário de 2 mil euros e um grande prémio em serviços para acompanhamento e desenvolvimento do seu projeto, irá representar Portugal na final europeia, que este ano se realiza na Sial Paris, em outubro, podendo arrecadar um prémio monetário de 5 mil euros.
Além disto, o prémio surge como um elo entre o tecido empresarial e a academia, introduzindo no setor novas ideias e processos, que vêm promover a revitalização desta área e a sua modernização. Tendo em conta o panorama atual, provocado pela pandemia da Covid-19, esta 4ª edição ganha ainda uma importância maior, uma vez que pode ajudar na adequação do setor a esta nova realidade, inovando e indo ao encontro das necessidades que com ela surgiram. Espera-se que as 10 equipas finalistas em competição este ano criem produtos atuais, pensados para o momento e que possam ter um real impacto na sociedade.
O João está também ligado a um projeto de solidariedade social, o Centro Zulmira Pereira Simões (CZPS). Este tipo de projetos faz cada vez mais sentido?
Sem dúvida que sim. Este, como muitos outros projetos do género, são fundamentais para se desenvolverem respostas sociais de maior proximidade. A criação e a liderança deste projeto, ao longo dos últimos 12 anos, foi também uma forma de me realizar em termos de responsabilidade social. O CZPS é uma IPSS que presta apoio à comunidade mais idosa e desfavorecida em Roriz e na envolvente do concelho de Barcelos, com lar, centro de dia e apoio domiciliário.
Como está a lidar o Centro Zulmira Pereia com a pandemia?
O CZPS desenvolveu medidas preventivas e de proteção de toda a comunidade de utentes, colaboradores e familiares antes do Estado as decretar e até ao momento não temos nenhuma ocorrência de contágio.
“Espero conseguir desfrutar de forma plena da minha família, tentando compensar as fases da vida dos meus filhos que perdi e que não são recuperáveis”.
O que espera do futuro?
Espero conseguir desfrutar de forma plena da minha família, tentando compensar as fases da vida dos meus filhos que perdi e que não são recuperáveis.
Vai continuar ligado à Frulact?
Continuarei na Frulact como Chairman enquanto perceber e sentir que posso continuar a ser útil.
O que ainda lhe falta realizar?
O meu percurso profissional, ao longo dos últimos 35 anos, foi vivido com muita intensidade, desassossego e tensão constante. Em paralelo com a Frulact pude desfrutar do envolvimento em vários outros projetos noutras áreas, que fazem com que me sinta “saciado” a esse nível. Ficaram por fazer coisas “pequenas e ditas menores”, que me completam e das quais retiro enorme prazer. São essas pequenas coisas a que darei prioridades nos tempos mais próximos.
Respostas rápidas:
O maior risco: aceitar trabalhar com pessoas que não tenha confiança plena.
O maior erro: não corrigir de imediato uma má decisão.
A maior lição: guardo para mim as lições da minha mãe.
A maior conquista: o respeito e o reconhecimento.