Opinião
A hiper personalização do trabalho
A questão da personalização do trabalho, baseada na ideia de que “o trabalho não é mais um lugar aonde se vai, e sim algo que se faz” (1), tem historicamente raízes que remontam às primeiras décadas do século XX e, atualmente, tem um grande reforço e generalização com os modelos de competências, como ilustra uma famosa expressão de Philippe Zarifian, quando propõe que “as competências fazem retornar o sentido do trabalho ao trabalhador” (2).
Isto significa que, ao contrário dos modelos tradicionais de organização do trabalho, em que eram vedadas ao então designado “trabalhador” quaisquer possibilidades para adicionar algo de “seu”, que não respeitasse os normativos impostos pela empresa, os modelos de competências atuais, ao substituírem o conceito de “função” pelo de “atividade”, valorizam o contributo diferenciador, original e criativo de cada colaborador, desde que este consiga demonstrar que esse contributo consegue adicionar valor aos resultados entregues.
O que passa a ser importante já não é, então, a função de cada um, mas a proposta de valor que cada pessoa adiciona no seu exercício.
Por isso, longe vão os tempos em que cada trabalhador pedia ao seu “chefe” para lhe “dar trabalho”, como se a propriedade do trabalho pertencesse exclusivamente a quem tem o poder de o distribuir e não a quem realmente o executa.
Hoje, podemos dizer felizmente, ou, de forma mais enfática, finalmente, as circunstâncias mudaram, e mudaram de forma radical, em que deixa de fazer sentido separar o “trabalho” do “trabalhador”, que passou a ser designado sucessivamente por “colaborador”, “stakeholder” ou, simplesmente, “pessoa” e que, em vez de “desempenhar uma função” é convocado para dar um “contributo”.
Este processo de verdadeira transformação das relações de trabalho é, em si mesmo, e pela filosofia que encerra, algo de extremamente positivo e mostra bem como tem evoluído a importância atribuída às pessoas e ao seu contributo para o sucesso e desenvolvimento das organizações.
Por isso, e, mais recentemente, com as contribuições da tecnologia digital, que permitem que cada pessoa seja cada vez mais o “dono e senhor” de si próprio, é expectável que venham a ser drasticamente reduzidas algumas formas de desmotivação e alheamento dos colaboradores, que têm realmente a possibilidade de exercer uma atividade, de modo flexível, com a qual se identificam e que faz sentido para as suas vidas.
No entanto, tal não é o caso de muitas organizações, que parecem estar ainda um pouco longe desse “El Dorado” motivacional.
Enquanto, há anos atrás, muitos “trabalhadores” se queixavam, e com razão, do mau tratamento que lhes era dado nas empresas, hoje, quando os modelos organizacionais modernos instituem como bandeiras, a “felicidade”, o “well-being”, a “saúde”, física e mental dos colaboradores, entre outras, continuamos a ter pessoas cansadas, desgastadas, desmotivadas e com vestígios preocupantes de alguma desesperança em relação ao futuro.
As razões podem ser várias e todas elas, sem dúvida, complexas.
Sabemos que uma das características habitualmente atribuídas ao chamado “mundo FANI (Frágil, Ansioso, Não Linear e Incompreensível) (BANI, no original), que é um acrónimo que tem sido geralmente aceite como definidor das características dominantes da realidade atual, é justamente a ansiedade. Neste contexto, a hiperpersonalização do trabalho, que atualmente vivemos, e que deixa a parte fundamental do trabalho sob a responsabilidade do próprio colaborador, para além de ser inequivocamente um grande fator de motivação, pode também ser suscetível de gerar uma maior ansiedade, fruto de uma consciência mais aguda da responsabilidade própria nos respetivos “delieverables”.
Essa “ansiedade de responsabilidade”, que habitualmente tem sido mais um atributo dos líderes, por vezes nem sequer é uma responsabilidade partilhada com a chefia, sobretudo quando temos situações em que os líderes confundem o “sentido do trabalho”, com o “seu” próprio sentido do trabalho oficialmente imposto e apresentam uma tendência inquietante para atribuir aos colaboradores erros que, afinal, são seus.
Quando situações deste tipo ocorrem, os processos de hiperpersonalização do trabalho tornam-se companheiros frequentes de um outro processo, potenciador de uma muito maior e mais perigosa ansiedade: a da hipersolidão no trabalho.
Estes fenómenos, tais como muitos outros que têm surgido no contexto dos impactos das tecnologias modernas nos espaços de trabalho, aconselham aquilo que tem insistentemente sido afirmado em inúmeros livros, artigos e conferências sobre este tema: que, em nenhuma circunstância, a dimensão humana nas aplicações tecnológicas pode ser esquecida, ou considerada secundária, até porque, como avisava Enriquez, já há alguns anos, muitos “tecnocratas são perversos, pois transformam as relações humanas em relações operacionais” (3).
Hoje, com os avanços da IA, enfrentamos novos desafios que vão novamente pôr à prova a nossa capacidade para criarmos um futuro de maior e mais profunda humanidade. Os riscos, no entanto, são consideráveis, como alerta Harari, nos seguintes termos:
“Agora, convocámos uma inteligência inorgânica que nos é alheia. Pode escapar-se das nossas mãos e pôr em risco a nossa espécie, além de incontáveis formas de vida. Em função das decisões que tomarmos nos anos que se avizinham, fazer surgir esta inteligência estranha ao Homem pode revelar-se um erro fatal, ou o início de um novo e prometedor capítulo da evolução” (4)
Resta-nos agir para dar um contributo concreto, individual e coletivo, para que seja a segunda hipótese, a florescer. À prova de futuro.
Referências:
- HANDY, C.B, citado por RONCHI, C.C. (2010) Sentido do Trabalho – Saúde e Qualidade de Vida. Curitiba: Juruá.
- ZARIFIAN, P. (2001). Objetivo Competência: Por Uma Nova Lógica. São Paulo: Atlas
- RONCHI, C.C. (2010) Sentido do Trabalho – Saúde e Qualidade de Vida. Curitiba: Juruá.
- HARARI: Y. N. (2024). Nexus: História Breve das Redes de Informação – da Idade da Pedra à Inteligência Artificial. Lisboa: Elsinore.








