Entrevista/ “Um protótipo minimalista a funcionar é melhor que uma máquina perfeita que fica no papel”

“Portugal será o primeiro país em que estas embarcações farão testes. A MobyFly está a negociar com operadores de todo o mundo, incluindo no Pacífico. É provável que as primeiras operações comerciais sejam na Europa e estamos a envidar esforços para que algumas sejam em Portugal”, revela Ricardo Bencatel, cofundador e CTO da start-up que tem ligações à Universidade do Porto e que acaba de levantar 11 milhões de euros.
A MobyFly, start-up que desenvolve barcos elétricos de alta performance e que está incubada na UPTEC, acaba de angariar 11 milhões de euros numa ronda Série A, um impulso decisivo para acelerar a produção e comercialização das suas embarcações com tecnologia de hidrofoils. Fundada por Sue Putallaz, Anders Bringdal e pelo português Ricardo Bencatel, a empresa aposta em soluções sustentáveis para o transporte marítimo, capazes de reduzir até 80% do consumo energético e 60% dos custos operacionais em comparação com embarcações a diesel.
Em entrevista ao Link to Leaders, Ricardo Bencatel explica como este financiamento vai transformar a MobyFly, permitindo expandir a equipa de engenharia, industrializar o primeiro modelo de produção e reforçar parcerias estratégicas.
A MobyFly acaba de angariar 11 milhões de euros numa ronda Série A. Que peso tem este financiamento no futuro da empresa?
Este financiamento foi crucial para alavancar as capacidades da empresa e facilitar o início da produção do primeiro modelo. Permitiu acelerar todos o desenvolvimento, alargando a equipa. A equipa de desenvolvimento e gestão da produção, baseada no Porto, cresceu de dois para cinco colaboradores, e com perspetivas de crescer outro tanto até ao final do ano.
Quais são as prioridades imediatas para a aplicação deste capital?
O capital angariado está a ser aplicado na industrialização do MBFY-S, de 12 metros de comprimento, e na sua produção. Para que esta chegue ao mercado rapidamente, a equipa está a crescer e estão a ser reforçadas ou estabelecidas parcerias com empresas complementares às capacidades MobyFly.
“Houve discussões com vários investidores portugueses interessantes, mas acabaram por não entrar nesta ronda”.
Como correu o processo de angariação — foi difícil convencer os investidores para um projeto tão inovador? Há investidores portugueses nesta ronda ou o capital veio maioritariamente do estrangeiro?
O momento nos mercados de capitais não era propício, mas a proposta de valor da MobyFly convenceu os investidores tanto pela eficiência económica que as embarcações com hidrofoils trazem aos operadores de ferries, através da redução de 60% de custos operacionais, como pelo impacto na sustentabilidade do transporte público ribeirinho, lacustre e marítimo, através da redução de 80% na energia consumida. Houve discussões com vários investidores portugueses interessantes, mas acabaram por não entrar nesta ronda.
A tecnologia de foiling é o “coração” dos vossos barcos. Em termos simples, como funciona e porque é tão disruptiva?
A tecnologia de foiling providencia uma parte substancial dos ganhos de eficiência destas embarcações e torna a propulsão elétrica competitiva com a propulsão convencional, a diesel, tanto do ponto de vista das velocidades, como das distâncias a percorrer em cada viagem. Esta tecnologia não é nova, mas tornou-se agora viável pelas mesmas razões que fizeram aparecer os drones no início do século. Miniaturização da electrónica de controlo de voo e materiais leves na estrutura e cascos das embarcações.
Basicamente os hidrofoils são asas subaquáticas, que levantam o peso de um pequeno autocarro, com uma área equivalente a uma prancha de surf. Estas asas levantam os cascos da embarcação acima da água, produzindo muito menos resistência. Esta resistência é ainda menor com hidrofoils permanentemente submersos, ao invés dos que são parcialmente emersos. Os hidrofoils submersos são instáveis e requerem o controlo por um piloto automático, com semelhanças aos das aeronaves não tripuladas, que ajuste continuamente as forças geradas pelos hidrofoils, providenciando um conforto sem paralelo nas embarcações convencionais.
“Os maiores desafios tanto na industrialização, como na certificação são o ajuste da equipa de uma mentalidade de prototipagem, para uma de industrialização (…)”.
Quais são os maiores desafios técnicos na industrialização e certificação destes barcos?
Os maiores desafios tanto na industrialização, como na certificação são o ajuste da equipa de uma mentalidade de prototipagem, para uma de industrialização, fazendo uma integração dos sistemas com um planeamento mais aprofundado. O nível de detalhe da documentação é muito superior, tanto para os processos de projeto, como de aquisição de sistemas ou componentes, e de interação com os parceiros.
Fala-se em consumirem até 80% menos energia do que os barcos a diesel e em custos operacionais 60% mais baixos. O que torna estes ganhos possíveis?
Os ganhos de eficiência energética provêm da propulsão eléctrica, devido à redução de perdas na cadeia de fornecimento de energia, e da redução de arrasto, proporcionado pelos hidrofoils. A redução dos custos operacionais advém da redução do consumo energético e da redução de custos de manutenção com a motorização eléctrica, com muito menos partes móveis, quando comparada com os motores a combustão.
Como estão a trabalhar a questão da segurança, tanto para os passageiros como para os operadores?
No caso de algum hidrofoil ficar danificado, estas embarcações operam exatamente como uma embarcação convencional. Estão projetadas para ter a mesma flutuabilidade e estabilidade que uma embarcação convencional, quando operam sem os hidrofoils. A embarcação também tem redundância em todos os sistemas críticos, incluindo os motores e os lemes.
Os passageiros têm cintos de segurança, para o caso de a embarcação atingir algum objeto enquanto “voa”, e os hidrofoils estão projetados com pontos sacrificiais, que minimizam os danos, impedem que os cascos sejam afetados, e permitem uma aterragem segura.
“É provável que as primeiras operações comerciais sejam na Europa (…)”.
Qual será o vosso primeiro mercado-alvo para os barcos elétricos da MobyFly? Portugal pode ser um dos primeiros países a recebê-los?
Portugal será o primeiro país em que estas embarcações farão testes. A MobyFly está a negociar com operadores de todo o mundo, incluindo no Pacífico. É provável que as primeiras operações comerciais sejam na Europa e estamos a envidar esforços para que algumas sejam em Portugal.
Já existem conversas com operadores de transporte ou cidades interessadas em integrar este tipo de embarcações?
Já existem discussões bastante avançadas tanto com operadores, como com municípios para o uso destas embarcações para transporte público. Tanto os operadores, como os municípios têm grande interesse no aumento da sustentabilidade económica e ambiental providenciada por estas embarcações. São atraídos também pela velocidade, conforto, e inexistência de esteira, eliminando efeitos noutras embarcações e a degradação das margens ribeirinhas.
Em 2025, esperam lançar o primeiro modelo de produção. Que expetativas têm para o número de unidades vendidas?
O objetivo é atingir vendas de dezenas de embarcações por ano já nos próximos anos.
Como veem a MobyFly daqui a cinco anos? Pretendem ser um fornecedor de nicho ou querem transformar o transporte marítimo global?
A MobyFly pretende fornecer soluções para os ferries com viagens de curtas e médias distâncias. O MBFY-S permitirá cobrir distâncias de 100km. O que abrange a grande maioria das rotas de ferries atuais. Os modelos maiores, MBFY-M e MBFY-L, capazes de transportar centenas de passageiros, terão capacidade para cobrir a quase totalidade das rotas de ferries, com conforto inigualável na navegação sobre a as ondas.
“Teria sido impossível atingir o nível técnico a que chegamos com o sistema de controlo dos hidrofoils, se eu não tivesse tido uma óptima formação (…)”.
Sendo uma start-up fundada por um sueco, uma suíça e um português, incubada no UPTEC, como avalia o papel de Portugal no vosso percurso até agora?
Além da integração na UPTEC, que tem fomentado a interação com um ecossistema de empreendedorismo muito rico, incluindo outras start-ups, entidades de financiamento, aconselhamento legal, etc., também tivemos oportunidade de desenvolver um projeto em consócio de 2022 a 2024, o Flypass. O Flypass juntou o INESC-Tec, instituto de transferência de tecnologia, a Composite Solutions, recentemente adquirida pela fabricante francesa de iates Catana, e a Corvus, fabricante de baterias que equipam os novos ferries da TransTejo. Este projeto foi apoiado pelo programa EEA Grants, operado pela Direção-Geral da Política do Mar.
Teria sido impossível atingir o nível técnico a que chegamos com o sistema de controlo dos hidrofoils, se eu não tivesse tido uma óptima formação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, a possibilidade de desenvolver aeronaves não tripuladas em parceria com a Academia da Força Aérea, como investigador do Laboratório de Sistemas Subaquáticos, e uma bolsa de doutoramento da FCT que me permitiu investigar métodos de controlo de voo mais sustentáveis na Universidade do Porto e na Universidade de Michigan.
Respostas rápidas:
Maior risco: Time-to-Market: Prazo de lançamento no mercado.
Maior erro: Confiança pouco corroborada nalguns parceiros iniciais.
Maior lição: Um protótipo minimalista a funcionar é melhor que uma máquina perfeita que fica no papel.
Maior conquista: Criar um protótipo com apenas 10% dos recursos esperados por especialistas.