Entrevista/ Da engenharia para a cozinha: como Raquel Lima encontrou a sua veia criativa no chocolate

Raquel Lima, CEO da Pedaços de Cacau

Depois de mais de uma década como engenheira florestal, Raquel Lima trocou a carreira técnica pela paixão de sempre: o chocolate. O que começou como um hobby transformou-se num projeto premiado que já soma 26 distinções e que leva, a partir de Vila Nova de Gaia, pedaços de chocolate artesanal a todo o país.

A decisão não foi imediata, nem fácil. Conciliar a engenharia com a paixão pelo chocolate transformou as férias em jornadas de trabalho – mas também no ponto de partida para algo maior. O ponto de viragem aconteceu quando percebeu que estava a abdicar do tempo em família para responder a encomendas que não paravam de crescer.

Foi nesse momento que Raquel Lima decidiu arriscar tudo pela paixão pelo chocolate. Inspirada por memórias de infância e pelo gosto pelo detalhe, criou a marca Pedaços de Cacau, hoje distinguida com dezenas de prémios e reconhecida pela produção artesanal, pela sustentabilidade e pelo uso de produtos nacionais.

Em entrevista ao Link to Leaders, Raquel Lima recorda os primeiros passos e fala dos desafios e do futuro da marca – que continua a ser movida, acima de tudo, por paixão. Por agora, já olha para o mercado europeu como uma possibilidade de internacionalização e quem sabe, no futuro, os EUA.

A Pedaços de Cacau nasceu de uma paixão. Quando percebeu que o chocolate poderia ser mais do que uma simples guloseima?

Esta viragem deu-se quando comecei a perceber que tinha que tirar férias para trabalhar nos chocolates e pensei que ia ser insustentável, porque eu tinha um trabalho das 9h30 às 6h30 e depois chegava ao final do dia e tinha que fazer os chocolates. Isto também aos fins de semana e feriados. Então chegou uma altura no Natal que eu tinha que tirar sempre a primeira semana de férias, porque é quando apanhamos os feriados. Eu tirava essa semana de férias para poder responder às encomendas.

Na altura o meu marido questionou-me: “mas tu não podes estar a tirar férias para trabalhar, tira-se férias é para descansar, não é? “. E aquela pergunta ficou na minha cabeça. Foi aí que comecei a pensar que tinha de tomar uma decisão, ou dedicava-me a 100% ao chocolate ou então tinha que deixar a Pedaços de Cacau. Foi aí que eu tomei a decisão de optar pela minha paixão.

Há um episódio curioso na sua infância, relacionado com os tios que vinham de França. Que memórias guarda desses tempos e que influência tiveram na criação da marca?

Eu adoro chocolate! O chocolate já me acompanha desde a minha infância e quando os meus tios vinham de França traziam caixas de chocolates. Eram caixas enormes que em Portugal ainda não existiam, com diversos sabores. E nós comíamos imenso chocolate às escondidas, ou seja, são boas sensações que guardo da minha infância. Por isso, o chocolate entrou na minha vida desde os 6, 7 anos. Só mais tarde é que percebi esta minha paixão, quando queria oferecer algo aos meus amigos e pensava em oferecer chocolates. Na altura, quando eu tomei esta decisão fui muito inconsciente.

“(…) senti que estava a perder a minha parte criativa, que também estava a perder o contato com as pessoas (…)”

Trabalhou durante mais de uma década como engenheira florestal. O que a levou a trocar uma carreira técnica por uma vida mais criativa e empreendedora?

Fui para Engenharia Florestal porque que era algo que eu gostava mesmo de fazer. E na área de engenharia florestal especializei-me, ou seja, tirei uma licenciatura, uma pós-graduação e depois um mestrado … era uma profissão que pensava para a vida toda. E o que é que aconteceu neste percurso? Passava a maior parte do meu tempo em frente ao computador, apesar de ser engenharia florestal e das pessoas pensarem que eu ia para campo, para o terreno. Aqui a vertente criativa não estava muito desenvolvida nem eu a poderia desenvolver muito. Então senti que estava a perder a minha parte criativa, que também estava a perder o contato com as pessoas porque estava sempre ligada ao computador.

Outro fator que também pesou foram divergências com a diretora executiva. Quando estamos a falar de divergências de valor, quando temos que fazer uma coisa em que não acreditamos só porque nos mandam, não estamos a ir por um bom caminho.

Acho que foram estas três coisas que me levaram a tomar a decisão de optar pelos chocolates – até aí a oferta de chocolates aos amigos era um hobby. Nunca pensei que me iria dedicar a 100% aos chocolates. Foi aí que pude desenvolver um bocadinho a minha veia criativa. O clique só aconteceu quando uma amiga me disse: “quero oferecer os teus chocolates a uns amigos que estão em Paris”. E eu questionei-me: como é que tu queres oferecer os meus chocolates? E foi então que pensei que tinha de criar uma marca.

Que aprendizagens da sua formação e experiência anterior ainda hoje aplica no seu dia a dia como empresária?

Aplico muita coisa muita. Os procedimentos são muito importantes e na engenharia florestal trabalhamos muito com procedimentos, com a uniformização dos procedimentos, com a gestão do tempo, ou seja, como é que podemos fazer mais com menos tempo, fazer melhor com menos tempo. Isso é muito importante.
A organização também foi algo que trouxe para este mundo. Como trabalhei em projetos internacionais, isso deu-me conhecimento e outras competências de liderança e de liderar equipas. E de lidar com desafios diariamente e com soluções para esses desafios, que é também o que um empreendedor faz.

Que desafios enfrentou no arranque do negócio e como os superou?

No início deparei-me com pouca informação. Ofereci chocolates no Natal e os chocolates que restaram ficaram esbranquiçados. Havia pouca informação na altura – estou a falar de 2013, 2014. Eu não consegui perceber o porquê de o chocolate estar esbranquiçado.

Depois frequentei uma formação no Porto e foi aí que percebi este fenómeno. Para além da pouca informação, deparei-me com a dificuldade de arranjar fornecedores para quantidades pequenas. A minha primeira encomenda que era da minha amiga eram 90 bombons – o que para mim era muito.  Claro que hoje em dia produzimos 4 mil bombons, mas na altura era difícil encontrar fornecedores para pequenas quantidades e a um preço aceitável.

Depois senti dificuldade em legalizar a minha cozinha. Também havia pouca informação em termos legais. E claro que no meu caso havia ainda o desafio de conciliar as duas profissões.

Começaram por disponibilizar os chocolates só no Porto?

Não necessariamente. Como eu estava a trabalhar não conseguia andar de porta em porta a visitar clientes. Então quando comecei a criar a marca o que que é que pensei: vou associar uma loja online aos chocolates. E foi assim que começou a Pedaços de Cacau. Criámos também uma página de Facebook e associámos uma loja online e começámos a vender. Tivemos pedidos de Norte a Sul e muitos pedidos de Lisboa. Trabalhámos, inclusive, com uma cadeia de hotéis em Lisboa.

Hoje em dia quantas pessoas estão envolvidas na produção do chocolate?

Atualmente, na época baixa somos sete e na época alta podemos chegar às 10 ou 15 pessoas. Tudo depende. Na época alta estamos a falar no Natal e na Páscoa, alturas em que podemos ter de aumentar a mão de obra.

“(…) devemos utilizar produtos portugueses e isso é um ponto assente na Pedaços de Cacau”.

A Pedaços de Cacau orgulha-se de ser uma Unidade de Produção Artesanal com o selo “Portugal Sou Eu”. Que importância tem para si esta certificação?

Tem muita importância, porque se somos portugueses, primeiro devemos utilizar produtos portugueses e isso é um ponto assente na Pedaços de Cacau. Desde a embalagem até aos ingredientes, tirando o chocolate, tudo é português. Não conseguimos comprar chocolate em Portugal, mas todo o resto tentamos comprar de preferência perto da Pedaços de Cacau, em Vila Nova de Gaia, para diminuir a pegada ecológica. Até porque eu venho de Engenharia Florestal onde trabalhávamos muito a sustentabilidade, a economia circular, por isso está no nosso ADN.

A Unidade de Produção Artesanal é um selo muito importante para nós, porque quem não for considerada unidade produtiva artesanal não pode utilizar a palavra artesanal nas suas embalagens. Não pode mesmo.

Como equilibram a tradição artesanal com as exigências do crescimento e da inovação?

Tentamos recriar sabores onde juntamos a inovação, ou seja, juntamos sabores atuais com sabores um bocadinho mais antigos. Por exemplo, temos a nossa tablete de alfazema. É um sabor diferenciador, não é? Mas alfazema também é português. Por isso tentamos criar sempre sabores muito diferentes.

Depois, também tentamos inovar em termos de produção. Nunca vamos ser de grande produção. Não é por aí o caminho, pelo menos agora não é esse o caminho. Vamos ser sempre uma produção pequena, para podermos estar atentos ao detalhe, para podermos fazer as coisas com calma e porque, acima de tudo, também apostamos na qualidade.

Desde 2016 que os vossos chocolates já conquistaram 26 prémios. O que significam estas distinções para si e para a equipa?

Este ano a Pedaços de Cacau participou no 12.º Concurso Nacional de Chocolates Tradicionais Portugueses e o nosso Bombom de Creme de Avelã conquistou a medalha de Prata. No mesmo concurso fomos premiados com uma Medalha de Bronze pelos nossos Crocantes Salgados e a Tablete de Chocolate Negro com Coco e Amêndoa conquistou a medalha de Prata.

“(…) esta decisão de deixar o certo pelo incerto (…) não foi fácil. Eu já tinha um percurso, já tinha um caminho feito de 13 anos”.

Há algum prémio ou momento em particular que tenha marcado a história da marca?

Os primeiros prémios que ganhamos em 2016 foram muito importantes para validar qual era o caminho que eu deveria seguir, porque tomar esta decisão de deixar o certo pelo incerto, deixar um trabalho pelo qual me formei e no qual já tinha uma reputação, não foi fácil. Eu já tinha um percurso, já tinha um caminho feito de 13 anos.

Os prémios ajudam a perceber se estamos a ir no caminho certo. Eu tenho sempre o mesmo chocolate com diferentes percentagens de cacau, mas depois onde  inovamos é nos sabores, para criar uma experiência.

Está à frente da Pedaços de Cacau, é embaixadora master do Clube Mulheres de Negócios em Língua Portuguesa e secretária da BPW Portugal, pertence ao rotary clube de Vila Nova de Gaia, pertence WPO. Como concilia todos estes papéis?

É um desafio, mas a engenharia dá-nos essa capacidade de gerir muito bem a nossa agenda. E priorizar! Às vezes não consigo estar em todas as atividades e é preciso escolher.

“Gostava muito de internacionalizar a marca para mercados como os Estados Unidos”.

Como imagina a Pedaços de Cacau daqui a cinco anos?

Vejo uma empresa consolidada, que as pessoas reconhecem como uma empresa gourmet artesanal, que está localizada em Vila Nova de Gaia. Gostava muito de internacionalizar a marca para mercados como os Estados Unidos. Mas como esta não é uma boa altura, penso primeiro na Europa. Mas vamos com calma.

Se pudesse oferecer um pedaço de cacau a qualquer pessoa no mundo, a quem seria e porquê?

Ao Obama porque gosto da sua pessoa. Admiro-o muito pelo percurso que teve!

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