Entrevista/ “Ser mulher e fazer ciência é um ato de rebelião”

Amena Karimyan, fundadora do Kayhana Astronomical Group

Nascida num país onde ser mulher e sonhar com a ciência é um ato de coragem, Amena Karimyan transformou a curiosidade infantil pelo céu numa missão de vida. Engenheira civil e astrónoma, e fundadora do grupo Kayhana, tem inspirado uma nova geração de raparigas a desafiar o silêncio, a ignorância e o medo através da ciência. A sua história é um testemunho de resistência, paixão e esperança.

Desde pequena, Amena Karimyan encontrava no céu um refúgio e um mistério. Cresceu numa sociedade profundamente patriarcal e religiosa, onde a educação das raparigas era limitada e a ciência um privilégio inalcançável. Mas foi precisamente essa limitação que a empurrou para a astronomia.

“O céu fazia-me sentir livre”, recorda. Depois de ter enfrentado ameaças de morte, a engenheira civil e astrónoma fundou, em 2018, o Kayhana Astronomical Group, organização que promove a astronomia junto de jovens – especialmente de raparigas – no Afeganistão. Três anos depois, em 2021, Amena Karimyan liderou uma equipa feminina premiada na Olimpíada Internacional de Astronomia e Astrofísica e, no mesmo ano, foi distinguida pela BBC como uma das 100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo, pelo seu papel na promoção do conhecimento e da igualdade de oportunidades. Hoje continua a lutar pelo acesso de todos ao conhecimento como forma de resistência e transformação social.

Em entrevista ao Link to Leaders, a afegã, que esteve em Portugal para participar numa conferência, fala da sua história de vida e do trabalho que tem realizado junto de jovens em contextos marcados pela repressão e pelo conflito.

Para começar, pode contar-nos um pouco sobre o seu percurso? O que a inspirou a tornar-se engenheira civil e astrónoma?

Desde criança que sentia uma ligação inexplicável com o céu; o meu lugar preferido era sempre o telhado, onde olhava para o céu. O céu parecia distante e ao mesmo tempo próximo. Era a única coisa que achava que podia compreender e dava-me paz. Às vezes tentava contar as estrelas, como se pudesse falar com o céu e obter respostas. Sentia uma ligação muito forte com ele. Gostava de me sentar no telhado e olhar o céu. Mais tarde, nos livros de inglês da minha mãe e das minhas irmãs, vi uma imagem do astronauta Neil Armstrong. Mesmo sem saber o que era astronomia ou astronáutica, eu queria viajar até ao céu. O céu despertava a minha curiosidade. Queria saber quem acendia aquelas luzes (as estrelas) e os planetas no céu, o que eram aqueles pontos brilhantes e quantos existiam. O céu sempre foi um mistério para mim e, ao mesmo tempo, um amigo.

O meu percurso começou num país onde a ciência e a liberdade estavam severamente limitadas. Desde criança que me fascinava perceber como o mundo funcionava; chorava nos dias dedicados à astronomia porque eles não existiam no Afeganistão, e esse vazio levou-me a continuar o meu caminho, mesmo perante a ameaça de morte. Voltei-me para a astronomia porque me dava esperança – olhar o céu fazia-me lembrar que havia algo maior do que o medo e a violência à minha volta.

Na verdade, o único campo relacionado com a astronomia que existia no Afeganistão era a engenharia civil. Além disso, a minha irmã mais velha, a minha primeira professora de matemática, orientou-me para a matemática. Estudar engenharia no Afeganistão era um tabu para as mulheres; ela percebeu que eu era autodidata em matemática e que tinha talento. Por isso, apoiou-me a seguir engenharia e, de certa forma, realizei tanto o sonho dela como o meu. Adoro construção. A engenharia também é uma grande paixão para mim; a maioria dos funcionários da NASA e da ESA são engenheiros. Mas a astronomia representa algo muito mais profundo. Foi por isso que comecei a trabalhar desde cedo, a dar aulas de matemática e a financiar os meus estudos. Este percurso foi também muito desafiante para a nossa família, porque nasci numa família esclarecida mas vivi numa sociedade altamente tradicional e religiosa.

“Não vejo a astronomia como um trabalho ou uma responsabilidade; a astronomia não é só o amor da minha vida, é também uma paixão e uma sede que me consome”.

Houve algum momento ou pessoa em particular que despertou o seu interesse pela ciência?

Sinceramente, não sei. Não vejo a astronomia como um trabalho ou uma responsabilidade; a astronomia não é só o amor da minha vida, é também uma paixão e uma sede que me consome. Um interesse intenso que me domina. Todos os momentos em que pensei nas estrelas e na lua, e em que elas estiveram comigo e foram a minha motivação, são especiais para mim. O céu fez-me continuar em qualquer situação. Os meus sentimentos são mais intensos do que as palavras.

Seguiu a ciência num contexto de grandes desafios políticos e sociais. Como tem sido promover a educação, especialmente para raparigas, nesse ambiente?

Tem sido muito difícil e perigoso. No dia em que começámos, o meu colega Sohail Karimi disse: “Podemos ficar cansados, deprimidos e sem esperança. Estás preparada para continuar?” Eu respondi: “Ao partilhar os meus pensamentos contigo, já estou a correr um risco. Mesmo que tu não continues, eu vou continuar. Mesmo que seja assassinada, continuarei.”

Foi por isso que, em 2018, fui atacada na rua com intenção de me matarem. No Afeganistão, o progresso de uma mulher significa a sua morte. Insisti tanto que disse a mim mesma que ou morria ou alcançava o que queria. Inovar num Afeganistão patriarcal e misógino é difícil, e se a inovação vem de uma mulher, a única coisa que ela encontrará é a morte.

Atualmente, as raparigas são deliberadamente privadas de educação, mas continuámos mesmo após a queda do governo e avançámos ainda mais, promovendo a ciência, que é considerada uma forma de resistência. Mas acredito que, sempre que uma rapariga aprende algo novo, enfraquece o sistema que quer silenciá-la.

“A ciência é o futuro, é poder e progresso. A ciência é um caminho de salvação e dá-me sentido”.

Como se mantém motivada perante tanta adversidade?

Vejo o meu passado nas raparigas do Afeganistão. Se não as salvar, significa que as oprimi, e que não me salvei a mim mesm. Lembro-me das raparigas mais novas que olham para mim. Os sonhos e perguntas delas dão-me força. A ciência também é uma fonte de paz e clareza quando tudo à minha volta está em caos. A ciência é a única área no mundo que até se autocritica e não faz promessas. A ciência é o futuro, é poder e progresso. A ciência é um caminho de salvação e dá-me sentido.

Fundou o grupo astronómico Kayhana. O que a levou a criá-lo e qual tem sido o seu impacto até agora?

Fundei o Kayhana porque não queria que ninguém tivesse os mesmos arrependimentos que eu; queria que o nosso país também progredisse. Queria que os que eram como eu deixassem de ter arrependimentos e deixassem de estar sós. Queria mostrar aos jovens -especialmente às raparigas – que também têm um lugar no mundo. Apesar de muitos obstáculos, conseguimos continuar. Agora, algumas sonham em tornar-se cientistas, e outras estão a estudar nas melhores universidades do mundo.

Que tipo de atividades organiza com os jovens através do Kayhana?

O Kayhana tem duas áreas principais: ciência e tecnologia, que desenvolvemos em diferentes comités e faixas etárias, na área da astronomia. Organizamos workshops de astronomia e debates científicos. Criamos também espaços seguros para questionar – algo que é muitas vezes reprimido na sua educação formal.

“A ciência ensina pensamento crítico e curiosidade – duas coisas que os regimes autoritários temem”.

Veio a Portugal para participar numa conferência na Universidade Católica para refletir sobre ciência, liberdade e futuro. Na sua perspetiva, como pode a ciência empoderar as pessoas, especialmente em contextos repressivos?

A ciência ensina pensamento crítico e curiosidade, duas coisas que os regimes autoritários temem. Quando as pessoas começam a perguntar “porquê?” e “como?”, começam a imaginar mudanças. A ciência pode ser uma forma silenciosa mas poderosa de resistência. Com conhecimento, as pessoas ganham coragem para reivindicar os seus direitos; com a ciência, criam-se estruturas e progresso, e as pessoas percebem que não devem aceitar a barbárie e a escravidão. Com ciência, podem construir uma vida muito melhor.

Perante as ameaças globais à educação e à liberdade, que mensagem deixa aos jovens de outras partes do mundo, incluindo Portugal?

Nunca tomem a vossa liberdade como garantida. Usem-na para ajudar os outros. Mesmo ações pequenas – ler um livro, fazer uma pergunta, ensinar alguém – podem ter um impacto muito maior do que imaginam. Sigam os vossos sonhos, não vivam em vão e deem um propósito à vida. O vosso passado foi bom e contribuiu para o progresso do vosso país; continuem esse caminho.

Porque no futuro podem ser vocês a liderar este país. Tentem ser muito melhores do que os vossos antecessores. Porque o mundo está a evoluir.

Como podem as comunidades internacionais apoiar mulheres e estudantes em países como o Afeganistão?

Ouçam as suas vozes. Ofereçam oportunidades e espaços às mulheres e estudante. Atribuam bolsas, apoio psicológico e orientação. E, quando as notícias desaparecerem, não se esqueçam delas. A solidariedade tem de ser a longo prazo, não apenas durante as crises. Embora eu não tenha expectativas em relação à comunidade internacional, esforço-me para que as vozes das raparigas afegãs não sejam silenciadas.

“Quero viver num mundo onde nenhuma rapariga tenha de escolher entre a vida e o conhecimento”.

Quais são as suas esperanças para o futuro para si e para as raparigas que inspira com o seu trabalho?

Espero que todas possam viver com dignidade, que tenham acesso à educação e à liberdade. Para mim, o objetivo é continuar a construir caminhos para elas. Quero viver num mundo onde nenhuma rapariga tenha de escolher entre a vida e o conhecimento. O meu maior desejo é que elas tenham a oportunidade de serem quem quiserem ser.

Se pudesse deixar um conselho a jovens mulheres que querem seguir a ciência mas enfrentam obstáculos, qual seria?

As vossas perguntas têm poder. Mesmo que o mundo queira silenciar a vossa voz, não abandonem as vossas perguntas. Há um lugar para vocês na ciência e a vossa voz importa. Essas vozes não serão silenciadas, independentemente de acreditarem em vocês ou vos tentarem suprimir.

Saibam apenas que são mais capazes do que as opiniões e opressões dos outros. As mulheres trouxeram o mundo até aqui com a sua resistência, por isso não se esqueçam de que os vossos esforços são mais importantes do que qualquer outra coisa.

 

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