Opinião

Zuckerberg fala, mas os factos desmentem

Sandra Silva, diretora-geral da Mary Kay Portugal

Vivemos no mínimo, tempos bizarros. De um lado temos pessoas tão poderosas e influentes como Mark Zuckerberg a dizer – “Acho que a energia masculina é boa e a cultura corporativa estava a fugir dela”-  provavelmente mais a piscar o olho a Trump e ao que a sua administração pode fazer por ele, do que às suas ideologias.

Ao mesmo tempo, saem notícias e relatórios de instituições tão reputadas e credíveis como o Fórum Económico Mundial (FEM) e as Nações Unidas (NU) que nos dão conta que até alcançarmos igualdade de género serão necessárias cinco gerações, no caso do FEM e, no das NU, 300 anos. Importa ainda dizer que mulheres a ocupar cargos de gestão em middle management representam apenas 30% do total e se formos para o C-level, são pouco mais de 10%.

Sinceramente fico confusa. O mundo é o mesmo, mas a leitura é diametralmente oposta.

Afinal em que é que ficamos? Como pode faltar energia masculina nas empresas e organizações quando as lideranças e posições de middle e top management são marcadamente masculinas?

Parece-me haver aqui alguma necessidade de fact checking.

Contra factos, não há argumentos. E por isso volto a repetir. Há apenas 30% de mulheres em cargos de middle management. No C-level apenas 10%.

Não há dúvidas: os números não sustentam estas narrativas.

Não podemos deixar que os nossos jovens, especialmente aqueles cuja personalidade, ideias e estrutura de pensamento está agora em plena formação, cedam a estas ideias.

Não é bom para os rapazes. Podem ceder à tentação de ir pelo caminho mais fácil que nesta corrente de pensamento lhes outorga poder e supremacia baseada no género e não na competência, limitando assim o seu verdadeiro desenvolvimento e crescimento ancorado em conhecimento, pensamento crítico, criatividade…

E definitivamente não é bom para as mulheres. Centenas e centenas de anos que tivemos de lutar para ser escutadas, para poder estudar além dos bordados, da costura e do lar, para poder trabalhar fora de casa… para poder chegar ao tal middle e top management hoje, ainda que numa clara situação de desequilíbrio.

Enfim, retroceder, ceder a estas falsas narrativas não é bom para a humanidade e não é bom para a economia mundial e nacional. Segundo o FEM, alcançar a igualdade de género pode beneficiar a economia mundial em triliões de euros.

No equilíbrio é que está o ganho. Na diversidade. De género ou qualquer outra.
Isso posiciona-nos numa posição privilegiada para escutar diferentes pontos de vista que enriquecem os diálogos, as soluções construídas e, por isso, claro, a economia e a sociedade. Aí reside o verdadeiro ganho que proporciona e facilita a inovação a todos os níveis.

Mas por que é tão difícil?

Assistimos a tempos de bipolarização e opostos. De falta de diálogo e discussão. Paradoxalmente, num tempo, em que as tecnologias nunca foram tão desenvolvidas e, deveriam fazer exatamente o oposto. Deviam conectar-nos, deviam aproximar-nos. Deviam-nos permitir ver as diferenças e apreciá-las.

Eu cresci na década de 80, fui jovem na década de 90. Assisti em criança à entrada na então Comunidade Económica Europeia (CEE). Assisti à unidade na diversidade na Europa. Ao fim das fronteiras. À emergência e crescimento do programa Erasmus que aproximava jovens por toda a Europa na esperança de haver uma maior inclusão, respeito e cooperação. Entrei num mercado de trabalho sim, marcadamente masculino. Ainda mais masculino do que é hoje.

Quando comecei a trabalhar percebi rapidamente que se queria crescer na minha carreira tinha de renunciar ou disfarçar o meu lado feminino. Vestir-me de forma mais masculina, mostrar pouca emoção no local de trabalho, trabalhar bastante mais do que os meus colegas homens e nunca – nunca – dar por garantido o reconhecimento do meu valor. Prová-lo era uma tarefa diária em todas as circunstâncias.

Apesar de tudo, e de não estarmos ainda numa situação de igualdade de género, estamos numa situação melhor do que há 20 anos. Mas não estamos no mundo de fantasia que Mark referiu.

Há mais mulheres em cargos de liderança, mas ainda não as suficientes.

O mundo precisa de mais. O país precisa de mais. Nas empresas, nas organizações, na intervenção social. Para sermos um mundo mais equilibrado, mais rico, com maior inovação, com maior criatividade. Um mundo que verdadeiramente permite que cada pessoa alcance o seu máximo potencial, em função apenas dos seus talentos e do que está disposto a fazer para os desenvolver.

Há ainda muito por fazer.

As leis podem melhorar. Mas mesmo antes disso há um trabalho essencial para que no cenário atual possamos caminhar para uma maior igualdade que permita que muitas mais mulheres cresçam profissionalmente.

Esse trabalho reside na mudança das chamadas normas sociais. São difíceis de mudar, porque fazem parte da cultura, mas são essenciais para fazer com que tudo o resto funcione – legislação e políticas de empresa.

Como?

Não há uma receita rápida e que produza resultados imediatos. Mas temos de continuar o caminho, sem interrupções.

  • Nas escolas: devemos eliminar estereótipos de género nas disciplinas e atividades, permitindo que cada criança explore livremente os seus interesses e talentos.
  • Nas empresas: é essencial reconhecer e corrigir vieses inconscientes nas contratações, promoções e políticas de trabalho, além de formar líderes para promover ambientes mais inclusivos.
  • Enquanto indivíduos: nós, mulheres, precisamos de desafiar as normas sociais e permitir que os homens participem mais ativamente nos cuidados familiares. Isso beneficia todos e acelera a mudança.

Também é crucial libertarmo-nos do síndrome do impostor. Enquanto muitas de nós hesitamos em avançar sem garantias absolutas de sucesso, os homens, frequentemente, abraçam oportunidades sem as mesmas reservas. Precisamos de desafiar esses padrões e quebrar os nossos próprios limites mentais, bem como os que a sociedade nos impõe.

Um futuro equilibrado é possível.

Não sei em que é o Mark estava a pensar quando há umas semanas disse que faltava energia masculina nas organizações…. O que sei é o que sinto e vejo todos os dias, através de muitas histórias, que é depois confirmado pelas estatísticas. Há um longo caminho pela frente…

Não para mudarmos do masculino para o feminino… Mas para alcançarmos um equilíbrio que beneficie a todos.

Não precisamos de substituir uma energia pela outra. Precisamos de criar um ambiente onde ambos os géneros, com as suas singularidades e forças, possam coexistir, colaborar e prosperar. A verdadeira transformação acontece quando deixamos de ver as diferenças como ameaças e passamos a entendê-las como oportunidades de enriquecimento.

As mulheres não querem privilégios. Querem igualdade de condições para mostrar o que podem fazer. Querem que o seu talento, esforço e competências sejam reconhecidos de forma justa, sem necessidade de provar o seu valor a cada passo ou de disfarçar aquilo que nos torna únicas.

O caminho não é fácil nem rápido, mas é indispensável. E começa com a coragem de desafiar normas ultrapassadas, questionar narrativas simplistas e abrir espaço para novas formas de pensar, trabalhar e viver. Porque, no final, o progresso de uns depende e beneficia o progresso de todos.

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Sandra Silva

Sandra Silva

Sandra Silva é a diretora-geral da Mary Kay Portugal desde 2009, ano em que entrou para a companhia. Desempenhou um papel importante e fundamental tendo sido responsável pelo turnaround da empresa em Portugal. Liderou a importante renovação da estratégia de negócio implementada em todos os departamentos. Também é membro da Plataforma Portugal Agora. Antes de chegar à Mary Kay a experiência profissional de Sandra Silva centrou-se nas áreas das Vendas e Marketing em multinacionais de grande consumo. Começou na Johnson&Johnson,... Ler Mais..

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