Entrevista/ “O empreendedor português tem que pensar em mercados externos desde o primeiro dia”
“Fundei a empresa com 1000 euros”, revelou Rafael Guerreiro o jovem empreendedor de Loulé que aos 16 anos saiu da escola para dar os primeiros passos no empreendedorismo. Agora, lidera a Sentrion, que fundou há um ano e, aos 24 anos, traça novas metas profissionais e equaciona uma ronda de investimento. Leia a entrevista.
A Sentrion é uma start-up portuguesa que utiliza inteligência artificial (IA) para apoiar equipas de vendas na identificação de empresas com maior probabilidade de compra. Através da análise de dados públicos e sinais de mercado, a plataforma ajuda a identificar oportunidades e a aumentar a eficácia comercial.
Fundada por Rafael Guerreiro, em outubro de 2024, hoje a empresa opera em Lisboa e Nova Iorque e trabalha com clientes em vários setores, incluindo tecnologia, serviços empresariais e recrutamento. Aos 24 anos, este jovem algarvio ambiciona afirmar-se como referência na integração de IA com processos de vendas e marketing à escala global. Para isso, explica, está a “contemplar a nossa primeira ronda de investimento, com o objetivo de continuar a expandir a equipa e acelerar o desenvolvimento do produto”.
Em entrevista ao Link to Leaders conta a sua história, as batalhas que teve de travar para passar da ideia à prática, mas também as vitórias alcançadas, quando todos lhe diziam que não atingiria os seus objetivos sem seguir o percurso de ensino tradicional.
O que o motivou aos 16 anos a enveredar pelo empreendedorismo?
Sempre estive insatisfeito com o sistema de ensino tradicional. Sentia que as disciplinas estavam estruturadas para um mundo onde a criatividade e o pensamento crítico não só não eram valorizados, como eram desencorajados. Comecei a explorar formas de utilizar a internet para gerar rendimento e rapidamente percebi que aprendia muito mais ao explorar os temas que me interessavam do que através do currículo escolar.
Quando chegou o momento de decidir entre ir para a universidade estudar Negócios, Informática ou Marketing, questionei-me: porque não começar o meu próprio negócio? O empreendedorismo oferecia-me um caminho alternativo onde não tinha que pedir permissão a ninguém e tinha liberdade para explorar a minha curiosidade.
Queria construir uma vida com liberdade financeira e geográfica, onde pudesse viajar quando quisesse. O caminho tradicional nunca me pareceu viável para atingir esse objetivo.
Porquê a área de atividade de Sentrion? Como surgiu a ideia de usar a IA para ajudar equipas comerciais a identificar empresas com maior probabilidade de comprar determinados produtos ou serviços?
Quando o ChatGPT foi lançado senti que, pela primeira vez, tinha a possibilidade de utilizar IA de forma realista para criar um negócio. Estratégias de crescimento que alavancam automação e inteligência artificial sempre foram do meu interesse.
Quando a API da OpenAI se tornou pública, comecei a trabalhar com diferentes ferramentas para experienciar de perto as dores e as formas de utilizar IA na otimização de processos de vendas e marketing. Reposicionei a minha empresa na altura, a New Sequence, e trabalhámos com diversos clientes em diferentes áreas na criação de sistemas de vendas em escala. Este processo permitiu-me identificar diferentes problemas e entender o status quo da indústria.
Reparei que as empresas só respondem quando têm necessidade de resolver um problema naquele momento. Então pensei: ao invés de contatarmos todas as empresas que são um fit no nosso mercado e esperar que elas precisem da nossa solução, podemos monitorizar as empresas para prever quais estarão a sofrer de problemas que conseguimos resolver.
Em termos práticos, de que forma a Sentrion pode ajudar a identificar essas oportunidades e a aumentar a eficácia comercial das equipas?
A Sentrion monitoriza mudanças nas empresas e segmenta-as utilizando IA. Um exemplo prático seria pedir uma lista como: “Empresas a investir em IA, entre 50 e 200 funcionários, baseadas na Europa”. Encontramos as empresas, identificamos os executivos que coordenam o projeto, disponibilizamos o email e telefone e geramos sequências de email personalizadas e relevantes para o processo de vendas.
Qual a mais valia que a IA traz ao projeto Sentrion?
A IA permite-nos monitorizar em tempo real mudanças tecnológicas, dados de recrutamento e atividade nas redes sociais para criar um perfil holístico e dinâmico das empresas. Isto significa que as equipas comerciais podem construir listas ultra-segmentadas de empresas que não só encaixam no seu perfil ideal de cliente, como estão abertas e prontas a comprar um serviço B2B naquele momento específico. Essencialmente, identificamos o timing certo para abordar o cliente certo.
Quais são atualmente os vossos principais clientes e de que setores de atividade?
Trabalhamos com empresas como HireQuest, Flowd, HighTicket, MRI Network, Dengun, Snelling e GPR Search, entre outras. A maioria dos nossos clientes são agências de recrutamento, equipas de go-to-market e revenue operations, agências de geração de leads e equipas de vendas de empresas B2B SaaS
Quem são os vossos investidores?
A Sentrion nunca levantou investimento externo. Construímos a estratégia de produto e vendas para entregar valor desde o primeiro dia. Utilizando ferramentas de IA e automação, prestávamos um serviço que fomos automatizando e melhorando progressivamente ao longo do tempo.
Fundei a empresa com 1000 euros e criámos sistemas que analisam descrições de vagas de emprego para informar agências de recrutamento e equipas de vendas acerca de novos projetos, tecnologias, expansão de equipas e áreas de investimento.
“(…) a América do Norte (…) tem um mercado mais rápido e sofisticado e oferece acesso mais facilitado a start-ups e negócios enterprise”.
Estão presentes em Lisboa e Nova Iorque. Porquê a aposta nos EUA?
Expandir na Europa significa aprender uma nova cultura de negócios, vendas e legislação para cada país. A Europa tem gerado várias empresas de renome na nossa indústria. No entanto, a América do Norte está mais integrada, tem um mercado mais rápido e sofisticado e oferece acesso mais facilitado a start-ups e negócios enterprise.
Quais os planos de expansão para os próximos tempos?
Estamos a desenvolver a próxima versão do nosso produto, que se integrará diretamente com os CRMs e processos de venda das equipas comerciais. Esta evolução surgiu do feedback de pilotos com start-ups, scale-ups e enterprises em diferentes setores: uma plataforma tecnológica de RH identifica empresas a expandir para novos mercados, um banco dos Estados Unidos utiliza os nossos dados de recrutamento para gestão de risco em avaliações de crédito, e agências de recrutamento e empresas de software B2B otimizam a sua prospeção.
Alguma ronda de investimento em perspetiva?
Podemos continuar a expandir sem necessidade de capital externo – a IA amplifica significativamente a produtividade de equipas pequenas como a nossa. No entanto, queremos afirmar-nos como referência na integração de IA com processos de vendas e marketing à escala global e, por isso, estamos a contemplar a nossa primeira ronda de investimento, com o objetivo de continuar a expandir a equipa e acelerar o desenvolvimento do produto.
“Ouvi professores dizerem que nunca atingiria os meus objetivos sem seguir o percurso tradicional, fazendo piadas à frente da turma”
Sendo um jovem empreendedor, sem formação universitária e inicialmente sem grande experiência e conhecimento do mercado, quais os principais desafios (“dores de cabeça”) com que se deparou ao longo destes anos? Quais os erros que gostaria de não ter cometido ao longo deste percurso?
Não ser levado a sério por conta da minha idade traduzia-se em dificuldades concretas: levantar fundos, atrair equipa, ganhar credibilidade. Nasci numa pequena cidade do Algarve, Loulé, sem uma rede de apoio ou incentivo ao empreendedorismo. Ouvi professores dizerem que nunca atingiria os meus objetivos sem seguir o percurso tradicional, fazendo piadas à frente da turma. Uma senhora parou-me na rua enquanto caminhava com a minha namorada e disse-lhe que eu nem conseguiria um trabalho na caixa do Pingo Doce sem o 12.º ano, visto que deixei de ir à escola a meio do 11.º ano.
Disseram-me que não podia: porque era muito novo, porque não tinha experiência, porque nunca tinha feito algo assim antes, porque não tinha um diploma, porque não era inteligente o suficiente, porque não tinha dinheiro, porque não tinha nascido no país ou na cidade certa, porque os negócios falham na maioria das vezes.
As razões para não fazer sempre foram muitas mais. Mas para mim, a separação entre os nossos maiores sonhos e a realidade está na capacidade de sofrer quedas e levantarmo-nos de seguida com um nível de otimismo quase irracional. Acreditar em nós e nas nossas crenças sem negociação. Todos os dias, durante meses, anos e décadas.
O maior risco sempre foi não tentar ou aceitar narrativas autoimpostas de limitação. Desenvolver resiliência ao fracasso é essencial para construir o caráter que suporta as responsabilidades do sucesso. O fracasso é a verdadeira educação. Desapontarmo-nos a nós e aos outros cria oportunidades de reflexão e experiência emocional que nos permitem ajustar prioridades, valores e mentalidade para nos aproximarmos da nossa melhor versão. Este é o preço da experiência. O fracasso não é vergonhoso, é uma lição.
E quais as vitórias de que se orgulha?
Aprendi diferentes funções do negócio que me permitiram reduzir o risco. Aprendi a falar técnico e a traduzir a visão do produto para a equipa de engenharia. Aprendi a construir sistemas escaláveis de aquisição de clientes com baixo custo. Aprendi a criar parcerias de benefício mútuo e a construir relações profissionais de entre-ajuda. Cada uma destas aprendizagens foi um ponto em que falhei ou ignorei nalgum momento.
Como é ser empreendedor em Portugal, com todas as burocracias e falta de capital que conhecemos? Qual o “segredo” para vingar nestas condições?
É um mercado pequeno e, por isso, desafiante para o empreendedorismo. O empreendedor português, especialmente na área tecnológica, tem que pensar em mercados externos desde o primeiro dia. O governo obriga o empreendedor a pagar segurança social e diversos custos operacionais mesmo que a empresa não esteja a faturar. Em momentos de exploração, pesquisa e desenvolvimento, estes custos representam uma dificuldade adicional.
Para mim, a estratégia sempre foi pensar além fronteiras e vender para mercados onde a inovação e novas ideias surgem de forma exponencial devido ao tamanho e à maior abertura do mercado. Claro que, se pudermos servir o mercado português, excelente – mas não pode ser a nossa única aposta.
É o exemplo de alguém que construiu o seu percurso de forma autodidata, combinando experiência prática com curiosidade tecnológica, como costuma dizer. O que o motiva atualmente? Onde gostaria de ver a Sentrion daqui cinco anos?
O que me motiva é resolver um problema real: com a democratização da IA, estamos a ver uma explosão de spam automatizado. Mensagens massivas que fingem ser personalizadas, LinkedIn cheio de conteúdo gerado apenas para criar engagement artificial. Queremos usar a IA da forma oposta – para reduzir o ruído, não aumentá-lo. A nossa missão é ajudar equipas de vendas a identificar e contactar as empresas certas, no momento certo, com contexto relevante. Menos volume, mais precisão.
Daqui a cinco anos, quero que a Sentrion seja a referência global em Predictive GTM (go to market preditivo). Que as empresas nos usem para saber não só quem é o cliente ideal, mas quando esse cliente estará pronto para comprar.
Tendo em conta a sua experiência como fundador e empreendedor que conselhos daria a um jovem que esteja a equacionar entrar neste ecossistema?
Faz uma imersão num mercado que te desperta curiosidade. Explora as dificuldades, problemas e pontos de melhoria, e pensa não só como melhorar os processos atuais, mas como criar novas formas de fazer as coisas. Com um entendimento profundo de um mercado, não aceites o estado das coisas como uma regra, mas sim como pontos de partida que te permitem explorar, ser curioso e criar uma visão de como tornar as coisas melhores.
Não deixes que te digam que não podes fazer algo. Lembra-te que a capacidade de nos levantarmos e aceitarmos a derrota como uma lição que nos aproxima do nosso objetivo é uma filosofia infalível. A concretização dos teus sonhos está do outro lado da persistência e perseverança de nunca desistir quando as coisas são difíceis. O sucesso vem depois.
Respostas rápidas:
Maior risco: Desistir da escola aos 16 anos para seguir um caminho sem garantias. Começar do zero, sem capital, sem rede de contatos, em Loulé, no Algarve.
Maior lição: Persistir com otimismo mesmo quando nada fazia sentido. Essa determinação irracional é o que separa quem desiste de quem consegue.
Maior erro: Tentar fazer tudo sozinho, quando deveria ter procurado parceiros e construído equipa mais cedo.
Maior conquista: Provar que era possível. Construir uma empresa que trabalha com clientes à escala global e uma rede de pessoas e parceiros que acreditam e suportam a nossa missão.








