Opinião

A pandemia foi uma transformação tecnológica, mas ao contrário

João Vieira da Cunha, escritor

O teletrabalho foi sempre tratado como uma mudança radical na vida do dia a dia das empresas. Até março de 2020 era só para os nómadas digitais e para trabalhar ao fim de semana. Ninguém sabia o que era o Zoom. O Teams era um daqueles aplicativos que já vem instalado e que nem sabemos que temos no computador. O Slack era uma aplicação que era usada em grupos de trabalho que estavam lado a lado, muitas vezes na mesma sala.

Em março de 2020 tudo mudou. Da noite para o dia, as empresas e as pessoas que lá trabalhavam fizeram uma das maiores mudanças tecnológicas de que há memória e fizeram essa mudança literalmente da noite para o dia.

Afinal parece que é fácil fazer transformações destas. Tanta coisa com planos de implementação, com estratégias de mudança, com workshops, com desenvolvimento de pessoas e depois, sem nada disto, todos mudamos e tudo muda da noite para o dia.

Mas não, não é fácil.

Um ano depois a investigação mostra que esta transformação digital teve efeitos desastrosos. As pessoas passam o dia de reunião em reunião, sem intervalo. Quando se fecha a janela do Zoom, está lá o Word ou o PowerPoint. E depois está na hora da outra reunião, num zapping de caras e slides que dilui a noção de tempo. As pessoas trabalham mais horas. E nessas horas o trabalho é mais intenso. Não há pausas para café. Não há conversas no fim das reuniões. Não há o caminho de ida e volta, de casa para o emprego e do emprego para casa. Uma viagem que antes parecia uma chatice, mas que hoje reconhecemos como o que sempre foi: um ritual que foca a nossa energia à ida e que a vai despindo à vinda.

Ainda há alguns momentos informais, mas não passam de comentários privados na janelinha da direita do Zoom. Não há as conversas de corredor, nem a coscuvilhice na cozinha. Isso quer dizer que há menos politiquice, mas também há menos partilha de ideias, menos entreajuda e menos aprendizagens inesperadas. E a politiquice às vezes é precisa. Não é sempre, mas a politiquice pode corrigir injustiças e travar más decisões.

E depois há a desigualdade. E há muita. Há cada vez mais dados que a pandemia destruiu a carreira de milhares de mulheres, que só por serem mulheres já estavam em desvantagem no mercado de trabalho. Na academia os números são assustadores. Imagino que não sejam muito melhores noutros setores. É só que na academia os indicadores de produtividade são públicos e por isso este efeito é mais visível.

Não vai ficar tudo bem. Mas pelo menos podemos aprender com isto. Aprender que a tecnologia e o progresso não são um problema técnico, são um problema de liderança. São um problema de liderança porque podem ter efeitos desastrosos na empresa se acontecerem sem pensar na estratégia, sem pensar cultura, sem pensar nas pessoas. São também um problema de liderança porque são um dos pontos chaves do contacto entre as empresas e a sociedade. Responsabilidade social não é só salvar pinheirinhos e coelhinhos (apesar de isso ser muito importante). Responsabilidade social é também liderar de forma a reduzir desigualdades.

Como líderes e como pessoas ainda temos tempo para fazer muito e para fazer melhor.

João Vieira da Cunha publicou recentemente um livro sobre liderança.

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João Vieira da Cunha

João Vieira da Cunha

João Vieira da Cunha é escritor. Utiliza uma variedade de meios para partilhar as suas ideias, desde as mais prestigiadas revistas científicas na área da gestão até uma conta rebelde no Twitter. É doutorado em Gestão, pela Sloan School of Management do MIT, e Mestre em Comportamento Organizacional, pelo ISPA. A sua escrita tem um tom irónico e provocador. O objetivo é ajudar os gestores a refletir sobre o que é liderar na Era da Informação. A esperança é que... Ler Mais..

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