Entrevista/ “É preciso criar culturas organizacionais em que as mulheres se sintam bem”

Élia Ferreira, Deloitte França*

A gestora portuguesa Élia Ferreira ganhou um prémio internacional por “Excelência em Liderança”, que a considera uma das 50 mulheres líderes em tecnologia no universo da consultoria mundial. Em entrevista ao Link To Leaders, a diretora do Departamento de Fusões e Aquisições e de Tecnologia da Deloitte, em França, explicou a importância desta distinção, falou dos desafios do seu percurso profissional e do papel das mulheres gestoras na setor da tecnologia.

“Até ser partner na Deloitte, sempre senti que ser mulher não era exatamente uma vantagem. O mundo das fusões e aquisições e da tecnologia são predominantemente masculinos e as funções de topo competitivas”. Esta é a perceção de Élia Ferreira que, em França, assume a direção do Departamento de Fusões e Aquisições e de Tecnologia da Deloitte. Na semana passada, a gestora portuguesa, foi distinguida na categoria “Excelência em Liderança”, nos prémios internacionais atribuídos pela Consulting Magazine para assinalar o papel das gestoras e das consultoras mundiais que se destacam no mundo da tecnologia.

A gestora portuguesa manifesta-se orgulhosa por ter sido a primeira partner portuguesa numa grande consultora em França e de ter contribuído para o projeto da Deloitte que criou dois centros mundiais de tecnologia e de 5G em Portugal. Ao Link To Leaders fala do caminho que percorreu até agora, dos desafios que enfrentou e de alguns dos projetos mais ambiciosos em que trabalhou, como a proposta de compra da Pfizer Baby Nutrition (o dossier que tornou célebre Emmanuel Macron como banqueiro).

Quem é a Élia Ferreira?
Uma lisboeta com o lema de que o sonho comanda a vida, que se apaixonou por Paris quando era criança. Uma portuguesa ambiciosa, que procura permanentemente a excelência, que é corajosa, resiliente, e com um percurso original de sucesso. Mas a definição que prefiro é a da minha primeira assistente: “um turbilhão de felicidade que leva tudo na sua passagem”.

Foi considerada esta semana pela Consulting Magazine uma das 50 mulheres líderes em Tecnologia a nível Internacional. Estava a contar com este reconhecimento?
Digamos que sim e não. O fato de ter recebido o Prémio de Excelência atribuído pelo CEO mundial da Deloitte, que reconhece contribuições excecionais à firma, em 2019 e 2021, deu-me a perspetiva de que este tipo de reconhecimento poderia acontecer. E, por outro lado, sou uma pessoa super exigente comigo mesma, nunca acho que já cheguei ao que era preciso. Daí ser sempre uma grande surpresa quando os outros me reenviam essa imagem!

Qual tem sido o papel das gestoras e das consultoras mundiais no mundo da tecnologia?
Muito importante. Em primeiro lugar, na compreensão e comunicação das tendências entre os diferentes atores do mercado, que os levam a analisá-las, e a utilizá-las, também por vezes com a nossa ajuda para a sua adoção. É simultaneamente um papel de deteção, concretização e amplificação.

O que deve ser feito para promover a igualdade e a diversidade nos cargos de liderança, nomeadamente no mundo da tecnologia, para que mais mulheres sejam reconhecidas pelo seu talento, pela sua formação e pelo seu trabalho?
Diria que é preciso fazer nascer sonhos e objetivos, mostrando exemplos de mulheres que são bem sucedidas e felizes, que sentem a sua vida profissional como uma forma de expressão que contribui para a sua realização como pessoas. É preciso favorecer a sua realização, criando programas de mentoring que acompanhem as mulheres no seu caminho, nomeadamente nas passagens mais difíceis. E é preciso criar também culturas organizacionais em que as mulheres se sintam bem. Formar os líderes sobre as distorções cognitivas e reconhecer aqueles que promovem a diversidade.

“Até ser partner na Deloitte, sempre senti que ser mulher não era exatamente uma vantagem”.

Liderou mais de 250 fusões e aquisições internacionais que envolveram montantes entre os 20 milhões os 20 mil milhões euros. Alguma vez sentiu que ser mulher era um obstáculo para realizar as suas funções?
Tenho de admitir que sim. Até ser partner na Deloitte, sempre senti que ser mulher não era exatamente uma vantagem. O mundo das fusões e aquisições e da tecnologia são predominantemente masculinos e as funções de topo competitivas. Pude sentir que não ter a mesma forma de ver ou sentir as coisas que certos patrões não era exatamente uma benesse. Que afirmar o meu ponto de vista era menos bem vindo que da parte dos meus congéneres masculinos.

Também me faltaram exemplos de mulheres que fossem um modelo que gostasse de seguir. E finalmente, quando me tornei mãe há 11 anos, a acumulação de papéis em que os exemplos de sucesso não abundavam, foi um grande desafio! Senti que duvidavam da minha capacidade de suportar o encargo. Curiosamente, os meus clientes sempre me apoiaram e estou-lhes infinitamente grata.

Referiu que “ser mulher e ter um curso de uma universidade desconhecida em França torna uma pessoa numa raridade”. Quais os desafios que encontrou pelo caminho quando chegou a França? A adaptação ao mercado e à cultura francesa foi fácil?
Foi mesmo uma aterragem com “a cara e a coragem”, como diz a minha irmã. Foram desafios enormes para os quais estava tão mal preparada. É preciso lembrar que eram os primeiros Erasmus, os jovens portugueses viajavam pouco, sobretudo fora da alçada dos pais.

Para começar há a questão do domínio da língua, em todas as suas subtilezas necessárias para exprimir pensamentos complexos ou dizer piadas. Em segundo lugar, os códigos sociais tão próprios de uma cultura, que são o verdadeiro “abre-te sésamo” de qualquer sociedade. E, em terceiro lugar, os títulos e reconhecimentos adquiridos que perdem muito do seu valor num mercado maior e mais competitivo. Esses mercados não estão à nossa espera, e é preciso adquirir e demonstrar bastantes competências para se diferenciar.

O que sempre me ajudou foi adorar a cultura francesa e ter uma formidável vontade de ganhar. E todos os bons valores, que considero muito portugueses, que a minha família me transmitiu: a hospitalidade, o valor do trabalho e da seriedade.

Que diferenças encontra na forma como os mercados português e francês olham para o papel da mulher no universo da gestão/empreendedorismo?
Não gostaria de fazer generalizações erradas, até porque o meu contato com o mercado português não é tão profundo desde que vivo em França. Acho que em ambos os mercados falta um certo caminho a fazer para que homens e mulheres possam definir e realizar as suas ambições sem distorções cognitivas do tipo “isto não é coisa para mim/ para mulheres/ homens”.

Parece-me que, em França, o caminho dos direitos à igualdade, nomeadamente com pessoas como Simone Veil ou Gisèle Halimi, permitiram desde os anos 60 a emancipação das mulheres, mas sei que em Portugal nas últimas décadas as mentalidades têm evoluído imenso.

“Há muitas formas de empreender, de gerir e de ser bem-sucedido. Vivemos tempos apaixonantes que permitem novos tipos de liderança”.

Na sua opinião, o que diferencia a visão das mulheres e dos homens no mundo dos negócios?
Também não gostaria de fazer polarizações excessivas porque penso que todas as pessoas têm muitas semelhanças e diferenças que constituem uma formidável riqueza e complementaridade, não só baseadas no seu género, mas também na sua experiência ou no meio em que se desenvolveram. Em todo o caso, as diferenças biológicas evidentes entre homens e mulheres, talvez tenham expressão na forma como consideram o individual e o coletivo, a concorrência e a colaboração.

Há muitas formas de empreender, de gerir e de ser bem-sucedido. Vivemos tempos apaixonantes que permitem novos tipos de liderança. De modificar a hierarquia da era industrial, mecanicista, que prioriza o racional e a competição como superiores à empatia e à colaboração.

De todos os desafios que já passou, qual o que mais a marcou e que teve impacto na sua carreira?
A lista é bem comprida! Um dos projetos mais ambiciosos em que trabalhei foi a proposta de compra da Pfizer Baby Nutrition (o dossier que tornou célebre Emmanuel Macron como banqueiro). Um negócio avaliado em 11 mil milhões de dólares, com três meses de intensas investigações. As apostas eram enormes para todos, com muitos assuntos espinhosos.

A massa de informação a tratar era brutal, as reuniões permanentes, com algumas idas e vindas rápidas a Nova Iorque. Durante esses três meses, os meus filhos, que ainda não tinham um ano, apanharam varicela. Lembro-me de me levantar umas 10 vezes por noite para tratar deles. Acho que este projeto foi um marco, tanto a nível das competências adquiridas, como a nível da resiliência e convicção pessoais.

“Procura pessoas que te deem oportunidades e um contexto favorável”.

Que conselho deixaria a uma jovem executiva com ambição de alcançar um cargo de liderança?
Acredita em ti mesma, acredita nas tuas mais-valias. Observa, exerce-te e encoraja-te diariamente. Procura pessoas que te deem oportunidades e um contexto favorável. Nunca abandones os teus sonhos, mesmo nos momentos mais difíceis, porque a vida é longa e oferece oportunidades incríveis.

Quais as principais competências para se ser uma boa líder nos dias de hoje?
Visão, ousadia e ambição – para todos os assuntos do foro estratégico. Empatia, otimismo e generosidade – para todos os assuntos do foro das relações. Humildade, disciplina e pragmatismo – para toda a parte da execução. E, acima de tudo, querer ter um impacto positivo no mundo.

O que ainda falta fazer à Élia Ferreira gestora? E à Élia Ferreira mulher?
Eu nunca paro de ter ideias e de sonhar, por isso é difícil responder! O meu maior desejo atualmente é utilizar a minha experiência para levar ainda mais longe os que me rodeiam, as minhas equipas, os meus clientes, e os meus filhos. Inspirar vocações e influenciar o sucesso da nossa sociedade, transmitindo os meus valores.

Respostas rápidas:
O maior risco: Ter imigrado sozinha, com poucos meios e preparação.
O maior erro: Não ter tido acesso a bolsas de estudos internacionais no final do liceu, mas “je ne regrette rien”.
A maior lição: Sempre achei que a vontade primava sobre todas as dificuldades, mas quando estudei em Paris, percebi que as condições podem verdadeiramente deitar por terra o que se construiu. Acho que me tornei uma pessoa mais humana e mais sensível ao sofrimento alheio desde aí.
A maior conquista: Ser aquilo que sonhei, apesar de todos os obstáculos que puderam surgir no caminho. Sinto-me orgulhosa de ser a primeira partner portuguesa numa grande consultora em França e ter contribuído para o projeto da Deloitte que cria dois centros mundiais de tecnologia e de 5G em Portugal, que criam empregos de futuro para várias milhares de pessoas.

* Diretora do Departamento de Fusões e Aquisições e de Tecnologia da Deloitte, em França

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