Opinião

Ucrânia, o custo económico de um pequeno custo económico

João César das Neves, economista, professor catedrático

Uma das virtudes mais exigentes para todos os líderes é saber fazer cedências táticas para manter a linha estratégica. Se, perante o ataque russo à Ucrânia, o mundo pretender reduzir os custos, não suportando sacrifícios reais na defesa dos seus princípios fundamentais, põe em risco as bases em que se baseia toda a prosperidade global.

Mais importante que as consequências económicas imediatas da invasão ucraniana, naturalmente ainda incertas, é a mudança radical que ele pode implicar na atitude económica mundial. O elemento decisivo da circunstância é que Putin, reencarnando a velha figura do conquistador esquecida há gerações, dá uma machadada na hegemonia das questões económicas sobre os restantes temas na ordem internacionais do nosso tempo. Se esse golpe for bem-sucedido, o mundo entra numa nova fase, abandonando o comércio e regressando a valores de outras épocas, que põe em causa todo o sistema mundial como o conhecemos.

A razão por que a Europa conseguiu 76 anos sem uma guerra no seu solo, algo inaudito na sua história, foi precisamente por estar dedicada à produção, comércio e consumo globais. A lição foi muito cara. Só após a maior catástrofe da humanidade, nos terríveis 30 anos de 1914 a 1945, gerada por décadas de imperialismos, racismos e militarismos, é que a Europa esqueceu ideologias e se dedicou a ficar rica, conseguindo o maior crescimento da História e arrancando biliões à pobreza. Mas os temas comercias são sempre repelentes, e os pensadores costumam preferir as epopeias grandiosas, que habitualmente acabam em escombros.

Nos últimos trinta anos as dores das crises financeiras e da globalização geraram queixas crescentes. Consequentemente têm ressurgido por todo o lado os líderes populistas, que desprezam os interesses comerciais e lutam por grandes ideais, em geral com o sangue dos seus cidadãos. Isso muda o jogo mundial.

A evolução foi lenta; muito mais lenta que nos anos 1930. Saddam Hussein foi o primeiro a ir ao caixote de lixo da História recuperar a máscara de conquistador. Mas na altura o mundo reagiu fortemente, e o ataque ao Kuwait em 1990 acabou mal. Tão mal que tiveram de passar mais de 25 anos até Putin retomar o paradigma, na Crimeia em 2014. Mas dessa vez houve sucesso e, como Mussolini na Etiópia em 1936, um sucesso leva sempre a novas tentativas. A Ucrânia são os Sudetas 84 anos depois.

Agora o mundo está na desconfortável situação de ter de reagir à primeira violação descarada, por uma grande potência, dos princípios básicos da ordem internacional implantada sobre as ruínas fumegantes de 1945. A forma como reagir determinará a prosperidade económica das próximas décadas. E não só.

A resposta imediata foi ainda tentar manter a hegemonia comercial no quadro internacional, respondendo com sanções económicas. Mas estas só farão realmente o seu trabalho se forem a sério. Ou seja, se quem as coloca estiver disposto a também sofrer fortemente com elas, até conseguir um recuo do agressor. Medidas simbólicas, que o deixem impune, manifestam o fim dos princípios fundamentais das Nações Unidas, e não faltam tiranetes com vontade de experimentar conquistas. Assim, uma conciliação com o intolerável, em nome da prosperidade imediata, traduzir-se-á numa sequência de crises, que comprometem a futura prosperidade. Até que se dê o ataque insuportável, como na Polónia de 1939, que comprometa também a paz.

Se o custo económico do ataque à Ucrânia for pequeno, arriscamo-nos a perder tudo o que temos.

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