Opinião
ALICE em dificuldades no país das oportunidades: a economia dos paradoxos
Numa das minhas recentes visitas à barbearia, enquanto aguardava a minha vez, ouvi uma conversa pública entre dois senhores que aguardavam a sua vez para serem atendidos. Por estar próximo, acabei envolvido na conversa quando um deles foi chamado e o outro ficou com a conversa pendurada.
Fui então inserido na discussão, que girava em torno do custo de vida (inflação), e as previsões sobre a evolução socio-económica nos próximos anos, especialmente para os mais vulneráveis.
Em outro cenário distante geograficamente, mas próximo financeira e emocionalmente devido à emigração, muitos norte-americanos estão também passando por dificuldades económicas e se tornando “ALICEs” (Asset Limited, Income Constrained, Employed), ou seja, pessoas com poucos bens, rendimentos limitados, mas empregadas. Quem são ALICE?
O termo ALICE descreve cidadãos que trabalham e ganham acima do nível de pobreza federal (US$ 31.200 para uma família de quatro pessoas, ou US$ 15.060 para um indivíduo), mas lutam para cobrir necessidades básicas (Fonte: United For ALICE da United Way). Ou seja, ALICE é outra face da pobreza.
Perfil das famílias ALICE:
Alguns dados estatísticos mostram que nos Estados Unidos cerca de 29% das famílias são ALICE, de acordo com a Business Insider. Na Europa, os dados da Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) indicam que cerca de 1 em cada 10 trabalhadores enfrenta pobreza laboral.
Relativamente aos Estados Unidos, a maioria está no Sul, com 50% dos residentes sendo ALICE. As gerações mais novas e mais velhas (Geração Z e Boomers) são as mais afetadas. Em termos de ocupação, estão no comércio de retalho, saúde, alimentação e bebidas. Mais de 25% possuem formação superior, enquanto 17% têm menos que o ensino médio. Pouco mais de metade trabalha a tempo inteiro e 13% procuram emprego.
As consequências da situação de ALICE são sentidas a vários níveis, nomeadamente na saúde (dificuldades de acesso à alimentação adequada e serviços de saúde), na educação (rendimento familiar limitado pode prejudicar o acesso à educação de qualidade) e financeira (as famílias frequentemente endividam-se para cobrir necessidades básicas, agravando a situação).
Paradoxos:
Os trabalhadores ALICE enfrentam paradoxos: não podem beneficiar da rede de segurança alimentar dos países. A maioria possui um salário alto demais para se qualificar para assistência governamental, mas insuficiente para cobrir o custo de vida nos EUA. Eles ganham o suficiente para não receber ajuda governamental ou invalidez, mas não para pagar aluguer e cuidados de saúde.
Paradoxo 1) Em um país de oportunidades, muitos trabalhadores estão em dificuldades e não conseguem cobrir suas despesas e vivem de salário em salário (from paychek to paychek). Alguns são forçados a escolher entre a renda da casa, alimentação ou cuidados médicos.
Paradoxo 2) Enquanto houve aumentos de rendimentos, esse aumento não foi suficiente para cobrir a perda do poder de compra devido à inflação que aumentou muito mais, por exemplo na habitação. Apenas 61% dos trabalhadores a tempo inteiro ganham o suficiente para o orçamento de sobrevivência doméstico (Fonte: United For ALICE da United Way). A inflação atinge essas famílias mais duramente, e o Índice ALICE Essentials, que mede apenas despesas básicas, aumentou mais rapidamente que o Índice de preços no consumidor.
Paradoxo 3) Enquanto a percentagem de pobreza nos EUA tem diminuído, a percentagem de ALICE tem aumentado na última década, apesar dos rendimentos terem aumentado. Para se qualificarem para os programas sociais, por exemplo, as famílias devem ter um rendimento inferior a 138% do Nível de Pobreza Federal.
Ao nível macro, creio que o FED ( Banco Central dos Estado Unidos) também enfrenta o seu paradoxo ao tomar a decisão se altera ou não nas taxas de juros. A inflação ainda está acima da meta (o que leva a pensar duas vezes antes de reduzir as taxas de juros), mas a economia está abaixo do seu potencial (num cenário de soft landing, encoraja a reduzir as taxas) e o mercado de trabalho dá sinais de alguma saturação (o que poderá encorajar a reduzir as taxas).
O BCE (banco central da União Europeia) já deu o primeiro sinal, baixando os juros no início deste mês, mas não se comprometeu sobre o caminho a seguir, ou seja, as decisões futuras serão baseadas nos dados estatísticos (data driven em vez de model driven).
Conclusão:
A situação de ALICE é um desafio global que afeta milhões de trabalhadores e suas famílias e é crucial desenvolver metodologias para quantificar o problema e implementar políticas públicas eficazes para apoiar essas famílias.
São necessárias políticas públicas mais assertivas para ajudar essas pessoas a sair da pobreza, considerando as diferenças regionais e as mudanças nas proporções dos orçamentos familiares para alimentação. É preciso revisitar as definições tradicionais de pobreza e reforçar a necessidade de ações urgentes e conjuntas para superar a situação.
As empresas, governos e sociedade civil devem unir-se para buscar soluções eficazes, pois a superação da situação das famílias ALICE (e pobreza no geral) exige soluções abrangentes e multissetoriais.








