Opinião
“Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”

Planear a sucessão antes de ser urgente: aumenta o valor, baixa o stress e protege a cultura. “Temos tempo.” O fundador tinha sessenta e oito anos, uma empresa saudável, clientes leais e dois filhos a viver no estrangeiro. À sua frente, o advogado de sempre e um calendário em branco.
A empresa era robusta, mas quase todas as decisões relevantes regressavam, no fim, à sua secretária. O dilema, como em tantas empresas familiares portuguesas, não era técnico; era de tempo. Quando é, afinal, o momento certo para passar o testemunho?
A sucessão, por cá, adia-se até se tornar urgente. E a urgência é um péssimo conselheiro: corrói valor, acende fricções e empurra a família para soluções defensivas. A alternativa não é um exercício académico de governação, é um gesto simples de liderança: pôr uma data. Uma janela de vinte e quatro a trinta e seis meses muda tudo. Dá previsibilidade à equipa, foco à família e disciplina ao próprio fundador. Um protocolo sem calendário é papel; com calendário torna-se ferramenta. E é curioso como, quando existe uma data – ainda que apenas “interna” – surgem automaticamente perguntas úteis: quem decide o quê, com que informação e em que prazos?
Profissionalizar é a outra perna deste banco. Não significa encher a empresa de consultores nem vestir o negócio com jargão. Significa sistematizar o que já acontece por inércia e criar hábitos de decisão que sobrevivem à figura do fundador. Um sistema de informação simples mas funcional, sempre igual e sempre à mesma hora, com vendas, margem, caixa e carteira, produz um efeito quase terapêutico: reduz ansiedade, antecipa sobressaltos e retira às discussões o ruído da opinião.
A reunião de gestão regular, com prioridades claras e donos de cada tema, substitui o “apagar fogos” permanente que tanto desgasta. E um conselho leve, com dois ou três independentes que conheçam finanças, operações e o setor, enriquece a decisão sem burocratizar. Não é teórico: em noventa dias, nota-se menos dependência do fundador, decisões mais rápidas e maior previsibilidade.
Quando a casa respira este ar, decidir o “como” deixa de ser um salto no escuro. Há sucessão familiar quando se juntam mérito, vontade e tempo para uma transição lado a lado durante alguns meses, com o fundador a passar de última para primeira voz apenas em matérias críticas. Há promoção interna quando a organização tem, de facto, uma dupla financeira-operacional credível e um plano de incentivos que a prende ao projeto. E há venda de continuidade quando não há sucessor – ou quando a ambição de escalar pede outro fôlego. Aqui, a discussão não é apenas de preço; é de projeto. Quem assegura cultura, clientes e equipa ao mesmo tempo que acelera o crescimento com disciplina?
Em Portugal, esta figura tem ganho tracção porque sintoniza com o desejo silencioso de muitos proprietários: deixar a casa em boas mãos.
Recordo uma metalomecânica de Braga onde, dois anos antes da saída, o fundador estabeleceu um calendário de sucessão. Ao sexto mês, a família clarificara papéis, instalara um reporting simples e acordara uma política de dividendos que pacificou expetativas. Quando surgiu um comprador de continuidade, a empresa já falava a mesma língua.
Noutro caso, uma empresa de serviços técnicos em Aveiro criou um painel de métricas simples e formou um pequeno conselho consultivo. O fundador manteve a última palavra durante um ano, mas deixou de ser a voz mandante. A equipa respirou melhor e a margem subiu um ponto e meio. O mecanismo não é mágico, é metódico.
Há quem tema que pôr uma data fragilize a autoridade do fundador ou alimente rumores no mercado. A minha experiência é a inversa: a data, bem gerida, reforça liderança. Define o campo de jogo, protege a família de improvisos e dá à equipa um horizonte para se preparar. Mesmo fornecedores e clientes agradecem a previsibilidade. E o mercado, contrariamente ao mito, penaliza menos a sucessão planeada do que a sucessão improvisada. Investidores e compradores sérios valorizam empresas que chegam a esta fase com governação funcional e informação fiável. Vendem melhor, integram melhor e, por consequência, crescem melhor.
Também é comum confundir profissionalização com perda de alma. Não tem de ser assim. Cultura não se protege em slogans, protege-se em práticas. Uma política de pessoas clara, um método de decisão repetível e rituais simples – reuniões, atas, prioridades – são precisamente o que permite que a identidade sobreviva à troca de nomes nos cartões. É quando tudo depende de uma pessoa que a cultura se torna frágil. O que se codifica, preserva-se; o que se improvisa, perde-se.
Há sempre um bom motivo para adiar: esperar mais um exercício, mais um ciclo favorável, mais uma contratação-chave. Mas o tempo não é neutro, quando ignorado desgasta o valor silenciosamente. A decisão de marcar uma data não retira autoridade ao fundador – confirma-a. É o gesto de quem escolhe liderar também o momento da transição, com a mesma lucidez com que liderou o crescimento. Porque preparar o futuro é, em última instância, a forma mais nobre de cuidar do passado.
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Nota sobre o autor: Filipe Bergaña investe em continuidade e procura uma única empresa sólida em Portugal ou Espanha que comprar e onde assegurar um relevo ordenado e de longo prazo. Escreve a partir do terreno, onde a cultura sustenta o legado.