Opinião

Ouvir antes de escalar: o erro estratégico das start-ups de saúde digital

Tiago Cunha Reis, docente universitário

Nos últimos anos, a saúde digital passou de promessa longínqua a realidade tangível. Start-ups surgem com soluções para doenças crónicas, saúde mental, ou gestão terapêutica personalizada.

Mas há um dado desconcertante: 90% destas start-ups falham nos primeiros cinco anos, especialmente nos domínios da saúde digital. A razão? Não é apenas a falta de financiamento, mas algo mais profundo: uma desconexão entre inovação e escuta ativa do mercado.

Recentemente foi publicado um estudo que analisou o ecossistema europeu de start-ups em saúde digital, propondo um modelo que vai além da tecnologia ou do modelo de negócio clássico. A conclusão foi clara: a sustentabilidade de uma start-up em saúde digital depende da sua capacidade de alinhar inovação com feedback contínuo do mercado e dos stakeholders. Isto implica escutar (com método, estrutura e abertura) todos os intervenientes: do utente ao regulador, passando por médicos, farmacêuticos e investidores.

Este princípio de “ouvir antes de escalar” é ainda mais relevante em setores regulados. O estudo identificou divergências entre start-ups e pequenas empresas estabelecidas (PMEs) na perceção da regulação: enquanto as start-ups veem-na como obstáculo à velocidade, as PMEs reconhecem-na como alicerce da credibilidade. A solução não é evitar a regulação, mas incorporá-la desde o início do desenho do produto.

Outro ponto crítico abordado foi o papel dos loops de feedback internos, designados tecnicamente como “modelos de laço causal”. Estes descrevem a relação entre inovação, captação de recursos, envolvimento do mercado e alinhamento estratégico. Start-ups bem-sucedidas são aquelas que tratam estas dimensões como um sistema interligado, e não como silos operacionais. Se o financiamento não estiver articulado com a estratégia regulatória e a proposta de valor não for validada clinicamente, o colapso torna-se previsível.

Em Portugal, o ecossistema está a ganhar tração com hubs de inovação, financiamento europeu e parcerias academia-startup cada vez mais ativas. No entanto, falta ainda a integração sistémica e a adoção generalizada de práticas como a validação iterativa com utilizadores finais e o mapeamento estratégico de stakeholders desde o primeiro dia. Não existe melhor altura para justificar a importância das redes de contactos, especialmente aquelas que assentam em redes de mentoria especializadas que se encontram em incubadoras académicas ou não.

É aqui que reside a vantagem competitiva real. Não basta desenvolver uma app de monitorização cardíaca ou um algoritmo para triagem psicológica. A questão-chave é: essa tecnologia responde a uma necessidade real, regulada, escalável e desejada? Eu posso achar que sim, mas a mentoria pode comprovar e detalhar que não. E ainda mais: os parceiros certos foram escutados e integrados no processo de desenvolvimento? Posso não ter contacto direto a esses parceiros, mas os meus mentores sim.

Start-ups que ignoram estas dimensões não falham por falta de talento, mas por excesso de isolamento. E num setor tão sensível como a saúde, a inovação sem escuta é ruído. Num tempo em que a IA, os sensores biomédicos e os modelos preditivos reconfiguram o que entendemos por “cuidados de saúde”, o futuro pertence a quem souber integrar tecnologia, regulação e empatia num só modelo de negócio viável.

O mantra é simples e poderoso: ouvir, ouvir, ouvir – antes de programar, investir ou escalar.


Tiago Cunha Reis, Ph.D., é doutorado em Sistemas de Bioengenharia pelo programa MIT-Portugal, tendo desenvolvido o seu doutoramento no Hammond Lab (MIT, EUA). Com foco nas necessidades de translação médica, o então engenheiro é agora aluno de Medicina. Reconhecido por sua paixão pela humanização da tecnologia em saúde e por melhorar ferramentas de diagnóstico e prognóstico, Tiago Cunha Reis possui um amplo histórico de prémios, publicações e nomeações internacionais em sociedades científicas europeias. Fomentador de conhecimento aplicado, fundou uma start-up focada em sensores e inteligência artificial, a qual expandiu internacionalmente antes de ser adquirida no final de 2022.

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