Opinião
Vou-me reformar!

Andou por aí a história da Rita Piçarra e da reforma aos 44 anos. A Rita não se reformou, nem pode, mas a Rita alcançou a sua independência financeira, e isto sim, pode.
E com isso decidiu ter mais tempo a si mesma e não o dividir com o tempo dedicado a um trabalho formal por conta de outrem ou a uma empresa. Parabéns à Rita. Decisão difícil, mas muitos parabéns. Este não é o meu ponto. O meu ponto reside em algo que a Rita diz no seu podcast, a necessária dissociação – que fez com ajuda psiquiátrica – entre quem é e o seu trabalho. Diz, às tantas, qualquer coisa como isto, e peço perdão se não está fiel, mas não fui ouvir à letra de novo, “eu não sou o trabalho”. Tenho olhos castanhos, cabelos castanhos…esta é quem eu sou.
Compreendo, aceito, mas discordo.
Tu não és tu sem seres um tu completo. Com as tuas características físicas, com os teus gostos, com surf e o mar que te apaixonam, com o tempo que almejas, também com a experiência de teres perdido os teus pais cedo demais ou de teres subido a pulso na vida e dedicado muito tempo a trabalhar e pouco a divertires-te. Poupando muito.
Tu és todas as tuas experiências passadas. Tu és todas as tuas características físicas. Tu és todos os teus gostos. Tu és o produto de tudo somado à data em que te encontras.
Tu és tu com todas as tuas vivências, memórias, experiências, características, até ao dia de hoje.
Vem isto a propósito de quê?
Da questão do worklife balance, da estruturação da tua vida, da forma como te geres e consegues harmonizar trabalho, família, filhos, pais, desporto, tempo com amigos, tudo. A questão não é, portanto, e como reiteradamente sublinho, de worklife balance porque tal não existe. O termo é mau. Tão mau que é como se o trabalho fosse a coisa demoníaca que tens de separar da vida para viveres. Work e life que tens de balancear. O trabalho não é oposto à vida. É e faz parte da tua vida. E sempre fará, a menos que não trabalhes e vivas à conta de rendimentos ou de outrem.
Sob o ponto de vista profissional, e por um lado, não tendo sido deliberado porque se percebe que a Rita é genuína, se quisesse ser CEO (e não CFO) de uma empresa qualquer não teria havido melhor estratégia. “Vou-me reformar aos 44 de CFO da Microsoft”, no auge, e com isto tem os head hunters atrás dela. Não é assim porque claramente se percebe que a Rita é íntegra e não serão precisas muitas palavras. Basta ouvir o testemunho. Achei-o até de uma certa candura e de uma total bondade. Posso dizer que gostei muito do testemunho e até da pessoa Rita, que não tenho o prazer de conhecer.
Sob o ponto de vista pessoal e do mundo exterior, por outro lado, este discurso genuíno, desprovido de maldade, puro até, teve o condão de levantar inúmeras invejas. “Só o conseguiste por estares no lugar certo à hora certa e teres trabalhado na Microsoft”. So what? Isso faz também parte da vida. Ter sorte por um lado. Mas todos esqueceram que essa sorte lhe deu muito trabalho e, já agora, que teve todo o azar do mundo ao perder cedo de mais o pai aos 50 e a mãe aos 59 anos de idade.
Tudo isto para chegar de novo ao âmago da minha questão. A Rita ousou “reformar-se” porque teve uma história, uma empresa, um trabalho e achou que não queria dividir o seu tempo com o da empresa. Foi uma opção. Uma opção que foi estruturando, que foi pensando, que foi desenvolvendo. E que depois tomou.
Porém, jamais a Rita pode dissociar-se do que quer que tenham sido as suas experiências, o seu passado, o seu trabalho, a empresa pela qual passou. Tudo fez e faz parte dela. Nós somos o que somos e somos também a nossa memória.
É claro que a Rita está a ter saudades do seu futuro. E bem. O passado já não se vive de novo. Mas está a ter saudades do seu futuro porque viveu, experienciou, trabalhou e se entregou de uma determinada forma que a moldou. E o trabalho moldou-a. Forjou-a. Fê-la inclusive chegar a uma decisão “radical”.
O ponto é só um: nós somos o que somos e somos completos com tudo o que experienciamos. Não existe essa coisa da Rita é o que é e não é o seu trabalho. Má psicologia. Má psiquiatria. A Rita é o que é também por causa do seu trabalho. É tudo. É inteira. Não é dissociada de nada. E nada exclui ou pode ser excluído.
Isto para dizer que esta mania perniciosa de nos dividirmos em caixas, essa sim, é uma má mania. E uma má aproximação. E não, não me vou “reformar”. Mas quando o fizer vou todo, com todo o trabalho que desenvolvi ao longo da vida. Sem excluir. Apenas integrando. Tal como tu quando o fizeres.