Opinião

Um triângulo problemático

Carlos Rocha, economista e gestor

Segundo a Wikipédia, triângulo é a figura geométrica que ocupa o espaço interno limitado por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três pontos diferentes formando três lados e três ângulos internos que somam 180°. Mas também sabemos que o triângulo é um polígono rígido, e por isso não se deforma facilmente, ou seja, é uma das estruturas mais fortes, e por isso, muito usada na construção. Não, o artigo de hoje não é sobre geometria.

Os preparativos
Depois de dois anos sem fazer qualquer viagem na sequência da pandemia e de tudo o que sucedeu, decidi, finalmente, fazer uma viagem para visitar familiares.

Checkpoint 1 – Todo empolgado, dirigi-me à agência de viagens, pois ainda não é possível adquirir bilhete on line. Depois de explicar ao funcionário o que eu queria, certifiquei-me das exigências sanitárias para poder viajar em contexto de pandemia e mostrar o meu cartão com a vacinação completa como mandam as regras sanitárias. Para o funcionário, não haveria problema porque eu estava em conformidade.

Nas vésperas da viagem
Preparada a mala de viagem, certifiquei-me de que levava o necessário e mais que suficiente, como a criança que vai fazer a viagem e quer levar todos os seus brinquedos, mas os pais acabam por lhe retirar mais de metade, pois as férias são apenas duas semanas e não dois anos.

Checkpoint 2 – No dia da viagem, aumenta a adrenalina. Chegando à porta da entrada do aeroporto, certifico-me, mais uma vez junto do vigilante, de que tenho tudo em ordem e  mostro-lhe o meu cartão com a vacinação completa e deixa-me entrar para fazer o check-in.

Checkpoint 3 – Tenho que passar pelos serviços de saúde antes do check-in, pelo que mostro o meu cartão e passo adiante.

Durante a fila para o check-in, troco algumas palavras com meu amigo Pedro que encontrei e que iria viajar também, ele já com muitas viagens pós pandemia (pós vacinação). Mas ele tem o certificado de vacinação atualizado, além do cartão. Eu também tenho o tal certificado digital, mas está desatualizado, ou seja, os serviços que o podem atualizar, não o fizeram.

Checkpoint 4 – Chego ao balcão e mostro o cartão com vacinação completa mais o certificado digital, on line no smartphone que indica que tenho apenas uma dose. Consequentemente, não me deixa fazer o check-in porque tenho apenas uma dose no certificado, e o cartão de vacinação já não serve porque as regras foram alteradas. A partir dali, foi uma correria dentro do aeroporto entre vários serviços para ver como resolver a questão: empregado da companhia, chefe de escala, serviços do aeroporto, serviços de saúde, serviços de handling. Ninguém foi capaz de identificar uma solução, a não ser apontar o “problema” – falta de uma atualização no certificado – e a consequência; não pode viajar com o certificado desatualizado mesmo com o cartão com vacinação completa. Perante esta incompetência para resolver a questão decidi desistir da viagem.

O que aprendi
Efetivamente encontrei um triangulo muito rígido, forte, indeformável. Quais são os três segmentos de reta que compõem este triângulo?

  • Cultura organizacional – Cultura burocrática típica – a burocracia é uma coisa boa quando bem implementada, porque deve mostrar as regras e procedimentos para se resolver uma situação ou problema ou atingir determinado resultado. Mas deixa de ser útil quando a finalidade já não é estabelecer as regras e procedimentos para se lidar com uma situação, e passa a ser o problema. Dito de outra forma, o objetivo último passa a ser o simples cumprir regras. No meu caso, a burocracia exige um certificado de vacinação, mas na verdade não precisa do certificado, precisa sim de saber se estou em condições sanitárias de poder viajar sem perigar a saúde dos outros. Na realidade, os serviços não precisam do certificado, precisam é de saber se estou vacinado, e isso provei mostrando o cartão de vacinação válido.
  • Recursos humanos – Colaboradores que não possuem toda a informação ou a informação não está atualizada – efetivamente quem está no front office deve saber as regras do seu “negócio”. Mais importante também é conhecer a cadeia de valor do serviço que está a prestar. No caso em apreço, ninguém conseguiu identificar o verdadeiro problema de modo a poder identificar a solução. Neste caso o problema identificado foi que eu não tinha o certificado atualizado, quando na realidade a questão é deixar viajar somente as pessoas que estão imunizadas com as duas doses requeridas.
  • Processos – Sistemas de informação que não comunicam entre si. Já tenho escrito sobre a transição digital e seus benefícios, mas parece que quando se trata de beneficiar o cidadão, as bases de dados não comunicam. No meu caso bastaria qualquer um dos serviços envolvidos nesta cadeia de valor aceder, com a devida autorização, à base de dados de vacinação para se confirmar a vacinação completa e poder certificar que estava em condições de viajar.

Assim que cheguei a casa, frustrado, entrei no site emitente do certificado digital e reclamei da falta de atualização dos dados, um procedimento desnecessário, pois se o Estado me deu a primeira dose e me inscreveu na base de dados, o mesmo Estado me inoculou com a segunda dose e me deu o cartão de vacinação. O Estado tinha todos os dados, mas falhou em não atualizar a informação de modo a ter um certificado digital e poder viajar. Mas isso poderia ter sido identificado no aeroporto, e eu poderia ter telefonado para os serviços identificados e, no momento, poderiam atualizar esta informação.

Esta foi a minha aventura naquilo que iria ser a primeira viagem pós pandemia (pós vacinação).

Desafio do líder
O desafio do líder e gestor é fazer com que a sua organização não faça parte de nenhum triângulo deste tipo. Pelo contrário, deve pertencer ao triângulo virtuoso:

  1. Cultura e mindset focalizadas para a resolução de problemas;
  2. Focalização no cliente/utente;
  3. Segurança e disponibilidade da informação.

Mas isto são “contas para outro rosário”, pois agora tenho de ir desfazer a mala de viagem e arrumar os brinquedos.

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Carlos Rocha

Carlos Rocha

Carlos Rocha é economista e atualmente é vogal do Conselho de Finanças Públicas de Cabo Verde e ex-presidente do Fundo de Garantia de Depósitos de Cabo Verde. Foi administrador do Banco de Cabo Verde, onde desempenhou anteriormente diversos cargos de liderança. Entre outras funções, foi administrador executivo da CI - Agência de Promoção de Investimento. Doutorado em Economia Monetária e Estabilização macroeconómica e política monetária em Cabo Verde, pelo Instituto Superior de Economia e Gestão – Lisboa, é mestre em... Ler Mais..

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