Opinião
Um triângulo problemático
Segundo a Wikipédia, triângulo é a figura geométrica que ocupa o espaço interno limitado por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três pontos diferentes formando três lados e três ângulos internos que somam 180°. Mas também sabemos que o triângulo é um polígono rígido, e por isso não se deforma facilmente, ou seja, é uma das estruturas mais fortes, e por isso, muito usada na construção. Não, o artigo de hoje não é sobre geometria.
Os preparativos
Depois de dois anos sem fazer qualquer viagem na sequência da pandemia e de tudo o que sucedeu, decidi, finalmente, fazer uma viagem para visitar familiares.
Checkpoint 1 – Todo empolgado, dirigi-me à agência de viagens, pois ainda não é possível adquirir bilhete on line. Depois de explicar ao funcionário o que eu queria, certifiquei-me das exigências sanitárias para poder viajar em contexto de pandemia e mostrar o meu cartão com a vacinação completa como mandam as regras sanitárias. Para o funcionário, não haveria problema porque eu estava em conformidade.
Nas vésperas da viagem
Preparada a mala de viagem, certifiquei-me de que levava o necessário e mais que suficiente, como a criança que vai fazer a viagem e quer levar todos os seus brinquedos, mas os pais acabam por lhe retirar mais de metade, pois as férias são apenas duas semanas e não dois anos.
Checkpoint 2 – No dia da viagem, aumenta a adrenalina. Chegando à porta da entrada do aeroporto, certifico-me, mais uma vez junto do vigilante, de que tenho tudo em ordem e mostro-lhe o meu cartão com a vacinação completa e deixa-me entrar para fazer o check-in.
Checkpoint 3 – Tenho que passar pelos serviços de saúde antes do check-in, pelo que mostro o meu cartão e passo adiante.
Durante a fila para o check-in, troco algumas palavras com meu amigo Pedro que encontrei e que iria viajar também, ele já com muitas viagens pós pandemia (pós vacinação). Mas ele tem o certificado de vacinação atualizado, além do cartão. Eu também tenho o tal certificado digital, mas está desatualizado, ou seja, os serviços que o podem atualizar, não o fizeram.
Checkpoint 4 – Chego ao balcão e mostro o cartão com vacinação completa mais o certificado digital, on line no smartphone que indica que tenho apenas uma dose. Consequentemente, não me deixa fazer o check-in porque tenho apenas uma dose no certificado, e o cartão de vacinação já não serve porque as regras foram alteradas. A partir dali, foi uma correria dentro do aeroporto entre vários serviços para ver como resolver a questão: empregado da companhia, chefe de escala, serviços do aeroporto, serviços de saúde, serviços de handling. Ninguém foi capaz de identificar uma solução, a não ser apontar o “problema” – falta de uma atualização no certificado – e a consequência; não pode viajar com o certificado desatualizado mesmo com o cartão com vacinação completa. Perante esta incompetência para resolver a questão decidi desistir da viagem.
O que aprendi
Efetivamente encontrei um triangulo muito rígido, forte, indeformável. Quais são os três segmentos de reta que compõem este triângulo?
- Cultura organizacional – Cultura burocrática típica – a burocracia é uma coisa boa quando bem implementada, porque deve mostrar as regras e procedimentos para se resolver uma situação ou problema ou atingir determinado resultado. Mas deixa de ser útil quando a finalidade já não é estabelecer as regras e procedimentos para se lidar com uma situação, e passa a ser o problema. Dito de outra forma, o objetivo último passa a ser o simples cumprir regras. No meu caso, a burocracia exige um certificado de vacinação, mas na verdade não precisa do certificado, precisa sim de saber se estou em condições sanitárias de poder viajar sem perigar a saúde dos outros. Na realidade, os serviços não precisam do certificado, precisam é de saber se estou vacinado, e isso provei mostrando o cartão de vacinação válido.
- Recursos humanos – Colaboradores que não possuem toda a informação ou a informação não está atualizada – efetivamente quem está no front office deve saber as regras do seu “negócio”. Mais importante também é conhecer a cadeia de valor do serviço que está a prestar. No caso em apreço, ninguém conseguiu identificar o verdadeiro problema de modo a poder identificar a solução. Neste caso o problema identificado foi que eu não tinha o certificado atualizado, quando na realidade a questão é deixar viajar somente as pessoas que estão imunizadas com as duas doses requeridas.
- Processos – Sistemas de informação que não comunicam entre si. Já tenho escrito sobre a transição digital e seus benefícios, mas parece que quando se trata de beneficiar o cidadão, as bases de dados não comunicam. No meu caso bastaria qualquer um dos serviços envolvidos nesta cadeia de valor aceder, com a devida autorização, à base de dados de vacinação para se confirmar a vacinação completa e poder certificar que estava em condições de viajar.
Assim que cheguei a casa, frustrado, entrei no site emitente do certificado digital e reclamei da falta de atualização dos dados, um procedimento desnecessário, pois se o Estado me deu a primeira dose e me inscreveu na base de dados, o mesmo Estado me inoculou com a segunda dose e me deu o cartão de vacinação. O Estado tinha todos os dados, mas falhou em não atualizar a informação de modo a ter um certificado digital e poder viajar. Mas isso poderia ter sido identificado no aeroporto, e eu poderia ter telefonado para os serviços identificados e, no momento, poderiam atualizar esta informação.
Esta foi a minha aventura naquilo que iria ser a primeira viagem pós pandemia (pós vacinação).
Desafio do líder
O desafio do líder e gestor é fazer com que a sua organização não faça parte de nenhum triângulo deste tipo. Pelo contrário, deve pertencer ao triângulo virtuoso:
- Cultura e mindset focalizadas para a resolução de problemas;
- Focalização no cliente/utente;
- Segurança e disponibilidade da informação.
Mas isto são “contas para outro rosário”, pois agora tenho de ir desfazer a mala de viagem e arrumar os brinquedos.