Opinião
Um Estado estilo Android
Direto ao problema: o Estado e as entidades públicas estão, globalmente, arcaicas na sua estrutura e processos e ineficientes no cumprimento da sua missão. Não por que tenham perdido recursos (humanos, financeiros, tecnológicos) para o fazer – antes pelo contrário, nunca, na maioria das geografias (e Portugal não escapa à regra), tiveram tanto ao seu dispor.
A questão é que o mundo mudou – gerando hoje mais escala, complexidade e maior diversidade de expectativas. Isso é bem patente, por exemplo, em domínios como a saúde, a educação ou a habitação, cada vez mais “ingeríveis”. O “Estado Social”, invenção europeia do século XIX, com progressiva disseminação global no século XX, está hoje em crise porque, provavelmente, como todos os “constructos” humanos, tem a sua ascensão, a sua maturidade e a sua obsolescência.
Quando estamos perante um desafio, gosto da abordagem do “back to the basics”, voltar à essência das coisas. O Estado, para além das questões de soberania, é, acima de tudo, um mecanismo de intervenção colectiva. Como sociedade, agimos em conjunto para elaborar leis, definir a fiscalidade, estabelecer regras de convivência e desenhar instituições (centrais, regionais ou locais) para gerir desafios que são volumosos e complexos para uma gestão familiar ou comunitária. E cuja solução é, claramente, do nosso interesse comum. O debate sobre as fronteiras da intervenção do Estado, excessiva para os liberais e libertários, insuficiente para os centralistas e colectivistas, é algo que enviesa hoje as posições, cava “trincheiras” profundas, mas não gera necessariamente soluções.
Permitam-me, em breves linhas, trazer uma abordagem alternativa, numa óptica de análise de sistemas. Desenhar estruturas rígidas “top-down”, com programas morosos e pouco ágeis não é solução. Redesenhar o Estado como “plataforma”, será, na minha óptica, o caminho: oferta e procura, produtores de serviços e destinatários. Não é, diga-se, algo de completamente novo.
Num artigo visionário, intitulado “Government as a Platform” (2011), Tim O’Reilly (autor norte americano, expert em inovação tecnológica), imaginou o governo como uma plataforma aberta na qual pessoas e entidades, dentro e fora do perímetro do Estado, podem inovar e contribuir para que melhores serviços públicos possam ser co-criados. Tal pressupõe uma plataforma, com regras e guidelines, para alinhar contributos da comunidade para resolver problemas sociais. Algo como o Android, sistema operativo e plataforma aberta da Google (ou, se preferirem, o iOS da Apple) que, definido um governance básico, se aperfeiçoa com milhares de novas apps e funcionalidades, que visam criar valor e conforto para os utilizadores.
Um Estado como plataforma tenderá a fazê-lo de forma mais simples e rápida. Será um “ecossistema” partilhado, com base em componentes padronizados, com dados acessíveis (open data) e interoperabilidade. E sistemas de controlo de qualidade, resultados e impactos (o que, como bem sabemos, continuam longe da realidade do setor público). Assente na premissa que os bens e serviços públicos não precisam ser gerados obrigatoriamente na Administração Pública – antes podem ser criados por entidades externas que se mostrem capazes de fazer mais e melhor. Exemplo prático: todos estamos gratos pela criação do Google Maps e não lamentamos, julgo eu, a ausência de uma Direcção-Geral do Mapeamento e Orientação Geográfica dos Cidadãos.
Bem sei que estamos ainda muito longe deste cenário – num Estado que, em boa parte, ainda trabalha para si próprio. E que o caminho terá de ser incremental e não disruptivo. Mas há que avançar com a visão e ser consistente na execução. Iniciar em áreas em que será mais óbvio o contributo da inovação social e em que já existe um histórico de colaboração Estado – sociedade civil. Por exemplo, na educação e na aprendizagem ao longo da vida, com projetos inovadores e “cirúrgicos”, nacionais ou regionais, que alavanquem desenvolvimento de competências sociais, digitais, criatividade ou literacia financeira. Ou no combate à exclusão social, com projetos de reinserção para uma cidadania plena.
Em suma, um caminho que privilegia os cidadãos/utentes e inovação social e tecnológica para conseguir a sua satisfação. Não esquecer que democracias saudáveis são, em primeiro lugar, democracias que funcionam.