Opinião

“The Great Reshuffle”- À procura de novos modos de “ganhar a vida”

Mário Ceitil, formador e professor universitário*

Durante a pandemia da Covid-19 foram surgindo, como é natural em tempos de grande crise, diversas opiniões, vaticínios e prognósticos acerca do que iria acontecer no “depois”, que se prenunciava como algo de inquietante.

Uns, mais otimistas, afirmavam convictamente que, após a pandemia, o mundo voltaria afinal a ser “como dantes”; outros, de pendor mais fatalista, receavam, ao contrário, que o mundo iria ser como “Dante” (1)

Como aquilo a que chamamos realidade é sobretudo um atributo da mente, em que os factos que realmente ocorrem são “lidos” pela subjetividade de quem os interpreta, torna-se difícil avaliar objetivamente se os otimistas têm mais razão do que os fatalistas ou se são estes que têm uma “leitura” mais “fina” e correta sobre a tal realidade.

Uma coisa é certa: qualquer que seja a interpretação que se lhe dê, o mundo atual, pós-pandémico, apresenta, pelo menos em algumas das suas facetas, uma profunda mudança em relação ao mundo que conhecemos antes da pandemia.

E uma das áreas onde essa mudança é mais sensível é justamente o mundo do trabalho, onde as profundas transformações atingem tanto as modalidades de gestão e organização das empresas, como, e talvez sobretudo, as mentalidades das pessoas e a própria conceção que têm sobre o trabalho.

Depois das vagas da “Great Resignation” e da extensão e globalização dos fenómenos de “quiet quiting” que, em si mesmos, já constituem manifestações evidentes do surgimento de uma nova atitude perante o trabalho e, diga-se, também perante a vida, assistimos, e vivemos, hoje, à expansão de um movimento que, nas suas premissas fundamentais, conduzirá inevitavelmente a uma profunda, total e eventualmente radical reconceção dos próprios alicerces em que, durante um século e duas décadas, se têm baseado as ciências organizacionais e a gestão das pessoas que nelas, ou para elas, trabalham: o movimento da “Great Reshuffle” (“grande remodelação”, na tradução literal do dicionário).

No seu fundamental, “The Great Reshuffle” corresponde a um movimento global em que milhões de pessoas por todo o mundo, embora com maior incidência nos países mais desenvolvidos, procuram trabalhos ou empregos em que possam desenvolver as suas “pessoas totais” e em que encontrem verdadeiras possibilidades de melhorar o seu “Work/Life Balance” e viver experiências com um sólido e consequente sentido de propósito.

Os mais circunspectos dirão que não há nada de realmente novo neste movimento, e que já desde há muito tempo se vem desenhando, na gestão das organizações, esta tendência para uma maior valorização e centração nas pessoas, que são estratégias obviamente positivas, embora pensadas sobretudo como formas de aliciamento e de motivação.

A possível novidade poderá estar no facto de que muitas dessas estratégias organizacionais orientadas para a valorização das pessoas, estarem a ser exercidas numa orientação “outside in”, onde a responsabilidade e o poder de decisão continuam a estar centrados nos responsáveis de topo e nas chefias intermédias, enquanto que a principal característica do movimento “The Great Reshuffle” é precisamente a de ter a sua origem na vontade expressa dos empregados, que flui através de uma orientação “inside out”,  em terem um melhor e mais extenso controlo do seu tempo, dos seus objetivos e sobre aquilo que consideram as melhores maneiras de “to get things done”.

Neste sentido, “The Great Reshuffle” não é de facto mais uma “remodelação” da cosmética comportamental que as empresas usam para fazer melhores negócios, em que as pessoas continuam a ser mais expetadores do que protagonistas, mais agentes do que sujeitos dos processos de trabalho que os afetam e mais recetores do que emissores das comunicações que os condicionam.

Por isso, é limitativo associar este movimento apenas a (mais) um processo de adaptação das pessoas às constantes mudanças do ecossistema organizacional; este é de facto um processo em que a constante e imparável mudança das pessoas força as organizações a adaptarem-se a um novo ecossistema social.

Para as empresas, este não é um desafio fácil, já que muitas delas mantêm ainda estruturas pouco ágeis e flexíveis que naturalmente não aliciam os colaboradores que já tenham feito a sua “reshuffle” mental e que perspetivam as suas carreiras profissionais muito mais orientadas para organizações que ofereçam condições que possam ir ao encontro das suas preferências enquanto profissionais, mas também enquanto pessoas.

Como já é habitual dizer-se, antes eram as empresas que escolhiam os melhores profissionais, mas hoje são os melhores profissionais que escolhem as empresas. E são bastante exigentes nessa escolha.

Hoje, já não são as empresas que exigem dos colaboradores alinhamento em relação aos valores que suportam as suas culturas organizacionais, mas são os colaboradores que não estão dispostos a permanecer nas empresas e nos empregos que sintam que não estão alinhados com os seus valores, com as suas necessidades e com os seus estilos de vida.

Hoje, vivemos numa época em que as empresas, para além de se preocuparem com o provimento das necessidades materiais, têm de também dar uma resposta concreta às necessidades mentais e emocionais dos seus colaborados, através de estratégias e práticas consistentes de “Mental Heath Care”.

Hoje, finalmente, vivemos numa época em que os desafios do “Work/Life Balance” jogam de facto muito mais a favor dos empregados do que dos empregadores.

Neste contexto, tanto o presente que temos, como o futuro que almejamos não revelam nem a paisagem estática da realidade “como dantes”, nem prenunciam as desgraças do mundo “como Dante”.

Revelam, sim, que a evolução das organizações e das pessoas prossegue um caminho onde as interseções destes dois universos são cada vez mais virtuosas e estabelecem linhas claras de complementaridade que vão pulverizando as velhas dicotomias dos “ou/ou”, estabelecendo redes de sinergias através da cooperação criativa, moralizada pelos paradigmas florescentes do “ganhar-ganhar”.

Mas sobretudo, revelam essa progressiva libertação das práticas que limitam e corroem o potencial humano e nos conferem a possibilidade, e a responsabilidade, de sermos nós próprios os “fazedores” do nosso sentido de vida e, em última análise, os construtores da nossa felicidade

(1) Referência à primeira parte da “Divina Comédia, o Inferno”, de Dante.

*Docente convidado do ISCTE/Executive Education; Coordenador das Pós-Graduação em “Desenvolvimento Emocional e Coaching” do ISCTE/Executive Education; Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG -Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas.

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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