Opinião

“Só podemos pensar em projetos de sonho e de vida, se tivermos uma tesouraria corrente que seja confortável”

António Braga, enólogo e consultor-produtor

Com um currículo preenchido por um percurso na área vitivinícola, António Braga decidiu lançar-se em nome próprio em 2021, dando vida a dois projetos. A par da consultoria na área da enologia e gestão e desenvolvimento de projeto no setor, iniciou-se como enólogo-produtor, para produzir vinhos com a sua assinatura. Em entrevista ao Link To Leaders, fala da sua experiência em empresas como a Sogrape, dos desafios e do que espera para o futuro.

Foi numa das suas viagens entre o Alentejo e o Douro que falámos com António Braga, que começou o seu percurso na CARM – Casa Agrícola Roboredo Madeira, no Douro, e mais tarde na Sogrape, onde liderou durante mais de 15 anos a enologia de várias marcas do grupo.

Com experiência internacional em geografias como Califórnia, Argentina, Chile e Nova Zelândia, António Braga iniciou há um ano o seu próprio projeto de enólogo-produtor, com o intuito de produzir vinhos com a sua assinatura. Pelo meio presta ainda consultoria na área da enologia, gestão e desenvolvimento no setor. A Casa Relvas e o Grupo Abegoaria são duas das empresas que já lhe confiaram os seus projetos.

Quem é o António Braga?
Sou enólogo, faço vinho já há alguns anos. Já fiz vinho em muitas regiões. Sou casado, pai de dois filhos a caminho do terceiro e tenho 45 anos. Sou natural de Lisboa, mas com raízes em Trás-os-Montes, terra da minha avó paterna, ligada à produção de vinho e azeite. Desde miúdo que tenho uma vontade enorme de explorar a parte mais rural. Portanto, o vinho apareceu naturalmente como uma hipótese boa na minha vida.

Estudei Agronomia no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, e escolhi o vinho como a minha área de especialização. Fiz uma vindima na Califórnia e depois da vindima regressei ao Douro. Já conhecia o Douro  e depois de trabalhar em vinho fiquei com uma ideia muito clara de que gostaria de trabalhar nesta região. Por isso, quando acabei a faculdade voltei. Tive muitos anos ligado à Sogrape, uma empresa grande e portuguesa, onde tive várias funções. Um dia apeteceu-me fazer os meus vinho e saí da Sogrape. Esse dia foi no ano passado.

Como começou o seu interesse pela vitivinicultura? Um sonho de criança ou quando se apercebeu a vida já tinha lhe conduzido à função de enólogo?
Sempre tive um lado menos urbano e mais rural, apesar de ter nascido em Lisboa. E sempre tive uma vontade de explorar esse mundo, mas tenho algum pragmatismo. Escolhi entrar para o Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, e depois dentro da universidade optei pela área de viticultura e enologia. Na altura, surgiu uma hipótese muito boa de fazer uma vindima na Califórnia, em 2002, pelo que fiquei completamente apaixonado. Foi nesta altura que decidi que queria fazer vinho na minha vida!  Fazer vinho tem uma componente de engenharia que gosto muito, tem uma componente de ruralidade e de entendimento da terra que acho muito importante e depois tem uma componente de valor acrescentado de história e de proposta de valor também muito interessante.

O que o levou a lançar o seu próprio negócio?
Acho que sempre tive muito esta vontade. Durante muitos anos a vontade de criar e de fazer coisas diferentes que tem muito a ver comigo foi consubstanciada numa empresa como é normal. Gostei muito de trabalhar nessa empresa e foi muito bom. Tinha obviamente de responder a uma série de necessidades que a empresa tinha ligada aos vinhos, mas também tinha a minha liberdade criativa. A verdade é que um dia apeteceu-me ir um bocadinho mais além nessa liberdade e achei que deveria lançar um projeto que fosse meu. Independência e liberdade são coisas diferentes e eu queria muito mais do que liberdade, queria independência. Liberdade para mim é poder fazer o que eu quero e independência é poder fazer como eu quero. E aqui o como era chave. E a certa altura tornou-se inevitável. Eu ia pensando cada vez mais nesta vontade de fazer uma coisa minha e um dia percebi que estava na altura.

Tenho 45 anos. Nestas idades ainda temos energia, já temos alguma competência, temos as ferramentas e, portanto, é uma boa altura para se lançar projetos novos. Por isso, se eu não tivesse feito isto agora, se calhar iria fazer uma carreira boa, numa empresa muito boa.

“Precisava de ter aqui uma atividade que me desse uma sustentabilidade no dia a dia. Por isso, surgiu a ideia de lançar serviços de consultoria de enologia, uma área onde avancei com alguns clientes no Alentejo e no Douro”.

A par da consultoria na área da enologia e gestão e desenvolvimento de projeto no setor, iniciou o seu próprio projeto de enólogo-produtor, com o intuito de produzir vinhos com a sua assinatura…
Eu estou a fazer duas coisas ao mesmo tempo. Tinha este sonho de fazer o meu vinho, o meu produto, a minha empresa. Mas também ao mesmo tempo sabemos que, nesta área muito em concreto, fazer vinho demora o seu tempo. Fazemos o vinho agora, concretamente em setembro na vindima, mas depois temos o período de envelhecimento, o período de estágio, temos o período de maturação. Estamos a vender vinho tipicamente um a dois anos depois de o fazermos.

Por um lado, havia aqui um tempo que era importante respeitar, mas, por outro lado, tenho uma vida para continuar e faço isto com racionalidade e sustentabilidade. Precisava de ter aqui uma atividade que me desse uma sustentabilidade no dia a dia. Por isso, surgiu a ideia de lançar serviços de consultoria de enologia, uma área onde avancei com alguns clientes no Alentejo e no Douro. Ou seja, faço consultoria para conseguir ter uma tesouraria corrente no dia a dia, que é muito importante. Só podemos pensar em projetos de sonho e de vida, se tivermos uma tesouraria corrente que seja confortável. Não podemos lançar projetos com desconforto ou sob pressão.

Quem mais o procura na área da consultoria?
Estou há quase 20 anos no setor. Passei pela Sogrape que é uma empresa muito relevante a nível nacional, não pelo tamanho e que está presente em muitas regiões. Construí a minha carreira nesta empresa. O meio é relativamente pequeno. É natural que o setor nos conheça.

Licenciei-me em Agronomia pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa e investi na realização de um MBA ainda na Sogrape. Portanto, tenho um conjunto de ferramentas com alguma amplitude. E acho que o setor me conhece por isso, por ter esta caixa de ferramentas mais alargada, por ter esta ligação e história nesta empresa relevante. Por isso, quando o setor sabe que estou disponível para fazer consultoria e quando saiu da Sogrape tenho tipicamente dois tipos de abordagens que se dividem regionalmente. Tenho empresas no Alentejo que são maiores e que têm uma vertente empresarial mais estabelecida – nesta região tenho dois clientes: a Casa Relvas e o Grupo Abegoaria que por motivos diferentes me contactaram.

Depois no Douro tenho também clientes mais pequenos que são projetos que precisam de consultoria, de um apoio mais de âmbito geral. Por exemplo, no Douro tenho um cliente que é de um setor completamente diferente e com sucesso nesse setor, mas que na área dos vinhos está a dar os primeiros passos. Precisa de alguém que o ajude nas vertentes de negócio, mas numa lógica de desenvolvimento de projeto. É uma consultoria mais 360º.

Quais têm sido os maiores desafios nesta nova aventura?
Equilibrar a minha energia. São negócios não escaláveis, dependem muito de mim, do meu nome e da minha marca. Um grande desafio é este mesmo: como é que eu equilibro um sonho que é fazer vinho com outra coisa que é o meu dia a dia e que passa pela consultoria. Deixo a Sogrape, onde tinha uma carreira que considerava boa e com uma boa perspetiva de futuro, mas saí para fazer o meu projeto, mas também para me dedicar à área das consultorias que é muito interessante.

Depois cada atividade tem os seus desafios. Na produção de vinhos – na start-up enológica –, os desafios são muito grandes. É uma empresa nova e que precisa de se posicionar, precisa de criar marca, precisa de ter uma proposta de valor, ou seja, aquilo que a diferencia. Hoje em dia basta olharmos para uma prateleira de supermercado para repararmos que há tantos vinhos, pelo que temos de perceber como é que o nosso vai ser diferente.  Por isso, é importante ter aqui a parte da consultoria para bem da saúde da minha tesouraria.

Recorri também a um grupo de investidores privados que são de áreas complementares e que vão ajudar na sustentabilidade do projeto. Ou seja, eu não precisava só de investimento, mas de investimento com cabeça, de networking e isto para mim é essencial. Fui tentar de alguma forma procurar estes perfis de complementaridade para dar mais sustentabilidade ao projeto. O desafio agora é fazer com que isto tudo funcione. Estou neste momento na parte de criar marca. Sei que são vinhos de autor, com um posicionamento que saí fora da grande distribuição, são vinhos de uma distribuição muito mais capilar, muito mais especializada. Trata-se de um enólogo que vai fazer um vinho não da quinta, mas muito mais da sua interpretação sobre as diferentes origens de Portugal.

E nisto Portugal é um país fantástico, que tem uma diversidade regional incrível. A par com a Itália e França, somos um país muito rico em termos de variedades de uvas, o que nos permite uma descoberta e uma originalidade no mercado internacional muito interessante. Somos muito tradicionais a produzir vinho. Nos últimos 40/50 anos houve um crescimento gigante, mas de alguma forma muita coisa que se pode explorar está perdida nesta tradição. O meu projeto tem muito a ambição de olhar de forma mais atenta para o que foi feito sempre da mesma maneira.

“Estou a fazer um vinho em Melgaço, um alvarinho, e estou a fazer alguns vinhos no Douro. São vinhos de muita interpretação do sítio onde vêm”.

Como carateriza os seus vinhos?
Estou a trabalhar neste momento neles. Estão a nascer agora para o mundo. Estou a fazer um vinho em Melgaço, um alvarinho, e estou a fazer alguns vinhos no Douro. São vinhos de muita interpretação do sítio onde vêm. São vinhos muito acústicos, transmitem muito o sítio de onde vêm e é isso que eu quero fazer, quer seja através das castas, quer seja através do estilo de vinho, quer seja através do processo. São vinhos que vão transmitir a origem, mas sobre a minha lente.

É defensor das castas portuguesas? Acredita que devemos explorar novas variedades e apostar mais nas castas autóctones como fator de diferenciação do vinho português no mercado internacional?
Tudo tem o seu lugar. Tipicamente Portugal, com uma grande variedade de uvas, deve apostar nas suas castas e deve fazer um trabalho ativo não só para apostar nelas, mas para as preservar e está a fazê-lo. No entanto, nalguns casos e em algum posicionamento pode fazer sentido ter castas internacionais. Por exemplo, podemos recorrer às castas internacionais, se se adaptarem à região e se ajudarem a que eu tenha um produto competitivo.

No meu projeto em específico de produção de vinhos é muito provável que seja mais orientado para castas portuguesas e de origem portuguesa e de terroir. Mas eu não ponho de parte um posicionamento mais de volume, de entrega de um perfil em que algumas castas internacionais funcionem muito bem. Temos de ter bom senso no que fazemos, um alinhamento coerente entre todos os setores da nossa cadeira de valor, desde a prateleira até à uva.

Que mais-valia a Grape-to-Bottle lhe tem dado? Tem sido importante para o negócio?
É um projeto interessante. Eu uso muito o termo de aceleradora/ incubadora para a definir, mas a Grape-to-Bottle assume-se como um prestador de serviços. Eu já fiz vindimas em muitos países, na Califórnia, na Nova Zelândia, Argentina, no Chile, o que costumamos chamar países do Novo Mundo, onde há muito este tipo de serviços que no fundo são adegas, mas que, ao invés de produzirem o próprio vinho, prestam serviços a enólogos. E a Grappe-To-Bottle faz precisamente isto. É uma adega ao da Régua, onde estão “alojados” nove projetos, de produtores parecidos comigo, que estão a dar os primeiros passos e não investiram de raiz na sua adega.

Qual o contributo que pretende deixar para a cultura do vinho portuguesa, pelo que gostava que seu trabalho fosse lembrado?
Há uma questão que eu gosto especialmente, que é o valor temporal que o vinho tem, como um livro, ou como uma arte. O tempo do vinho não é o tempo dos homens. O vinho tem este horizonte temporal que, para mim, é muito interessante. O que estamos a fazer hoje, que marca é que estamos a deixar aqui. Eu acho que estamos a viver um tempo espetacular. A minha geração de enólogos é muito mimada. Antes de nós houve um momento de muita revitalização da viticultura e enologia. Sempre protegemos muito as nossas castas e eu sinto uma responsabilidade muito grande também daqui para a frente neste legado que quero deixar.

Quando houve uma grande vaga de investimento da União Europeia, focámo-nos muito em adegas e estruturas produtivas em novas tecnologias e usou-se muito isso para dar uma camada de processo aos vinhos. No entanto, a nova geração está muito focada em dar uma camada de origem. Por isso é que há uns anos usava-se mais castas internacionais e agora estamos a voltar-nos para as castas portuguesas e para origem. A nova geração de enólogos na qual me incluo está a pegar em tudo o que é moderno e sabe que deve usar x e não tudo. É a geração da origem e que traz esta visão acústica e não tanto de processo e era isso que eu gostava de deixar: uma interpretação que expressa a origem sob uma lente que consegue ver e observar criticamente o produto.

“O grande conselho que posso dar é não seguirem grandes regras e sentirem-se confortáveis com o que estão a decidir. Tem de se ter muita confiança na decisão que se vai tomar”.

Qual sugestão que daria aos novos profissionais da enologia?
Lanço o meu projeto a meio da minha carreira e fui muito cauteloso a fazê-lo. Estas coisas têm de ser, não há grandes regras, a regra é fazermos o que está certo para nós e não apressarmos. Para lançar um projeto destes com segurança, foi muito importante o percurso que fiz e que aprendi na Sogrape. A Sogrape foi determinante para lançar este projeto. Foi essencial para este percurso. O grande conselho que posso dar é não seguirem grandes regras e sentirem-se confortáveis com o que estão a decidir. Tem de se ter muita confiança na decisão que se vai tomar. Falar com pessoas, estudar casos parecidos e perceber que modelos de negócio existem. É obvio que não se tem que se ser empreendedor, não é essencial. Há muitas carreiras que correm bem por conta de outrem.

Como vê o seu projeto daqui a um ano?
Vou estar com os meus vinhos no mercado, vou estar com as minhas consultorias com o nível com o que estou agora e vou estar provavelmente com desafios de dispersão de energia maiores do que tenho hoje em dia, porque me vou deparar com as questões da comercialização, da progressão e da venda. Sei que daqui a um ano vou ter uma vida desafiante, vou estar a crescer em termos de equipa e a dar respostas aos desafios que vão ser cada vez maiores.

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