Opinião
Sem título

Já passaram duas décadas desde que, pouco depois de chegar a Portugal, fui abrir uma conta num banco (que já não existe) e, dias depois, recebi em casa um cartão de crédito onde estava escrito ENG BELÉN DE VICENTE.
No dia a seguir, dirigi-me ao balcão e expliquei a um senhor muito simpático que o meu cartão tinha um erro porque eu era só BELÉN, que sabia que em Portugal era costume ter muitos nomes, mas que eu não tinha e me tinham posto outro que não era meu. Ele não percebeu até que eu apontei o ENG e lhe disse: é este!
Demorei mais de dez minutos a convencê-lo de que não queria mesmo que o meu cartão tivesse o ENG e ameacei-o de mudar de banco, se ele me continuava a tratar por Srª. Engª. O mais curioso foi perceber que ele estava mesmo convencido de que tirá-lo era um erro que me poderia prejudicar social e profissionalmente, ao não aderir aos costumes do país. Ainda discutimos o ditado “em Roma sê romano” e concordamos que os costumes devem adotar-se, desde que façam sentido e não impliquem uma falta de respeito para com os outros.
Hoje a lembrança desta anedota, juntamente com uma sólida experiência de vida em Portugal, traz-me uma mistura de sentimentos. Por um lado, sinto pena de que a utilização do título seja para muitos portugueses um sinal de maior respeito, reconhecimento de autoridade e de poder. Ainda hoje oiço: “se não sabes o que é, trata-o por Dr. que nunca falha”. Nem sequer o uso do título é uma forma de criar ou encurtar a distância entre as pessoas, pois para isso já existe na língua de Camões o “senhor”, o “você/nome” e o “tu”.
Nunca tive de dizer que era Engenheira ou que tinha um mestrado, para que alguém me tratasse melhor o pior. E, se assim fosse, teria ficado com muito má impressão de quem o tivesse feito. Pelo contrário, sempre fui respeitada pelo que sou e não pelo que estudei, até porque todos nós somos muito mais do que o que estudamos! Qualquer outra visão é mesmo muito redutora.
Por outro lado, sinto uma grande esperança e tenho para mim que o uso dos títulos vai ter os dias contados, dado o caminho que Portugal, e bem, está a seguir, nomeadamente nas áreas do empreendedorismo e do ensino. Hoje o ensino superior é uma indústria exportadora relevante em Portugal. Em qualquer universidade de prestígio portuguesa, hoje ensina-se em inglês, nos corredores destas escolas raramente se ouve falar português entre os alunos. No caso da Nova SBE, que acompanho de perto, 50% dos alunos dos cursos de mestrado são estrangeiros. Neste meio, não se ouve este tipo de tratamento.
No mundo do empreendedorismo, também não se utilizam títulos, não só porque o ambiente é mais próximo e “suamos” juntos as vitórias e as derrotas, o que faz com que o título seja irrelevante e até incomode, mas também porque, muitas vezes, tal como no caso do ensino, há elementos estrangeiros nas equipas e só se fala inglês. Há entre os empreendedores um sentido de proximidade, de pertença a um mundo difícil, um sentido de loucura (sim, somos todos aves raras, como diz um amigo meu) que faz com que, se não fores capaz de provar o que és capaz de fazer, se não te auto motivares todos os dias e se não fores capaz de te erguer depois das derrotas, podes ter todos os títulos do mundo, que de nada te vão servir.
Explicaram-me que, antigamente, eram poucas as pessoas que tinham acesso a um curso universitário e que isto fez com que as que o tinham, tivessem de ser “distinguidas” de alguma forma. Felizmente, não tenho dúvida, as novas gerações de portugueses que já estão a crescer num mundo global, aberto e diverso, onde entrar na universidade já está ao acesso de todos, darão aos títulos universitários a importância que realmente têm, que é a da conquista, com esforço, de um determinado nível de conhecimento. Porque há outras conquistas que também se fazem com muito esforço e que não se colocam antes do nome. Como, por exemplo, educar os filhos.
Porém, a mudança, para ser mais rápida, teria que dar-se ao nível das instituições públicas, que é onde hoje esta questão ainda é, de facto, uma prática comum e alimentada.
Há algum valente, neste contexto das instituições públicas, que se atreva a mudar e dar o primeiro passo e que peça para por favor ser tratado pelo nome?