Opinião

Samuel Guedes: o padre que criou um negócio que gera 500 mil euros por ano

Padre Samuel Guedes, mentor do projeto Paladares Paroquiais

Quando há mais de 20 anos o padre Samuel Guedes, com 27 anos, foi colocado nas paróquias de Arreigada, Ferreira e Frazão, nenhuma das três tinha qualquer equipamento social. Hoje o cenário é outro. Criou uma empresa social que gera emprego e riqueza para as instituições de solidariedade social das três paróquias de Paços de Ferreira e que exporta para o Luxemburgo e para a Suíça.

Nos dias que correm, são muitos os desafios com que os portugueses se deparam. Mas se uns se remetem às palavras, outros arregaçam as mangas e criam soluções para os problemas.

Em 2011, perante a crise que se fazia sentia e que afetava as paróquias, o desemprego e os pedidos de ajuda que não cessavam, o padre Samuel Guedes deu largas à sua vertente empreendedora e criou a Engenho dos Paladares, que deu origem ao projeto “Paladares Paroquiais”.

Hoje, a empresa tem um volume de negócios de 500 mil euros por ano, exporta para o Luxemburgo e para a Suíça e dá apoio a 250 seniores, 600 crianças e 100 pessoas carenciadas, no âmbito do programa de emergência alimentar. E promete não ficar por aqui!

Como e quando surgiu a Engenho dos Paladares e o projeto “Paladares Paroquiais”?
Como todos sabemos, a sustentabilidade das entidades do setor social e a manutenção da atividade essencial que desenvolvem, é algo que muito nos preocupa, a nós dirigentes destas instituições. Outro fator de preocupação foi como contribuir, localmente, para a diminuição do desemprego (principalmente o de longa duração). Foram estes os problemas centrais para cuja resolução esta iniciativa de inovação e empreendedorismo social pretendeu contribuir. Foi com o objetivo de conseguir concretizar este contributo que lançámos esta iniciativa que visa garantir a sustentabilidade das atividades sociais no Complexo Social Inter-Paroquial de Arreigada, Ferreira e Frazão, assim como promover o emprego na região na qual se encontra.

Em que é que consiste o projeto “Paladares Paroquiais”?
Trata-se de um projeto de cariz social que foi criado por três IPSS: Centro Social e Paroquial de Arreigada, Centro Social e Paroquial de Ferreira e Centro Social e Paroquial de Frazão, no concelho de Paços de Ferreira. O projeto consta de um catering que, neste momento, serve cerca de 1000 refeições diárias, tendo capacidade instalada para o dobro deste valor: os clientes são, desde logo, os próprios centros sociais criadores do projeto, outras IPSS que pedem os nossos serviços e as escolas do primeiro ciclo que estão inseridas no nosso território. Ao lado desta cozinha industrial, existe uma outra unidade industrial de produção de queijo de leite de vaca, de biscoitos e bolachas tradicionais, doçaria de conservação, licores, doces e compotas. A empresa criada chama-se Engenho dos Paladares, Lda e lançou a marca “Paladares Paroquiais”.

A quem se destinam os produtos fabricados pela “Paladares Paroquiais”?
Estes produtos destinam-se ao mercado nacional e externo, isto no caso dos queijos, compotas e biscoitos ou bolachas e, relativamente ao catering, destinam-se aos nossos utentes das três IPSS, aos centros escolares locais e ao público em geral.

De que forma conseguiram aproveitar os sabores e saberes da região?
Há vários anos, existiu, no concelho de Paços de Ferreira, uma estação de laticínios que ensinava a produzir os derivados do leite (queijo, manteiga, iogurtes, etc…). A dada altura, resolveram fechar essa unidade de formação. Isso fez com que os produtos que ali se fabricavam, embora não fosse uma unidade industrial, e que eram comercializados à porta, deixassem de se produzir, pelo que ficou a saudade. Quando pensámos em avançar com um projeto para responder aos objetivos já apresentados, fomos “ressuscitar” a produção destes produtos, porque sabíamos que seria um sucesso. Fomos buscar o know-how e lançámos mão à obra. Neste momento, estamos a produzir os mesmos queijos. Relativamente aos doces e bolachas, foi a necessidade de combinar produtos de excelência com os nossos queijos. Então, usei a minha condição de sacerdote e, porque se tratava de um projeto social, pedi apoio junto de vários mosteiros que nos ajudaram a criar estas receitas conventuais que hoje produzimos.

Como promovem os vossos produtos?
Através das redes sociais e um call center que criámos. É mais um posto de trabalho. Também, graças ao impacto do projeto nos meios de comunicação social (os vários canais de televisão, jornais e revistas), o nosso projeto é já bem conhecido.

A Engenho dos Paladares foi também responsável pela instalação de uma produção agrícola de legumes e vegetais, utilizada na confeção das refeições diárias. Fale-nos um pouco mais deste projeto…
Associado a este projeto e com a preocupação de alargar a economia de escala e de reciclagem, quer dos restos da cozinha, quer dos subprodutos do tipo3 (soro do leite que pode ser alimento animal), avançámos com a criação de suínos, bovinos e leporídeos (coelhos e lebres) e uma produção agrícola de legumes e vegetais, em estufa e ao ar livre. Esta produção é utilizada na confeção das nossas refeições.

Quantas pessoas empregam e qual o investimento necessário?
Neste momento, temos 10 postos de trabalho criados, para desempregados de longa duração. E o investimento total do projeto ronda os 500 mil euros.

Quantas pessoas são apoiadas pelos projetos lançados pela Engenho dos Paladares?
Neste momento, são beneficiários do projeto: 250 seniores, 600 crianças e 100 pessoas apoiadas no âmbito do programa de emergência alimentar. Podemos ainda acrescentar os quadros de pessoal que são 60 postos de trabalho ao todo – IPSS e Engenho dos Paladares.

Quais as transformações que estes projetos sociais trouxeram para as freguesias de Arreigada, Ferreira e Frazão?
Em primeiro lugar, um largo benefício social para as instituições que nelas estão sediadas; depois, o projeto está a colaborar com o desenvolvimento da economia local, não só porque gera emprego, mas também porque compra matérias-primas para a confeção de alguns produtos, ajudando outros produtores locais; por último, a missão do projeto tem feito com que muitas pessoas o procurem e, ao chegarem a estas terras, tomam contacto com as gentes, cultura e património. E, por isso, estamos já a associar o turismo local com os nossos sabores.

Quanto faturaram no último ano?
Os resultados são já significativos. Neste momento, está em crescimento acentuado, conseguindo recuperar os investimentos realizados; conseguimos já atingir uma economia de escala e esperamos brevemente chegar ao objetivo da sustentabilidade. Tendo em conta as encomendas e as manifestações de interesse existentes, está planeada uma ampliação da capacidade de produção instalada. A empresa foi constituída em 2011 e está a funcionar desde o início de 2013, encontrando-se numa fase de crescimento sustentado e maturação, com um volume de negócios que ronda os 500 mil euros por ano. Neste momento, quer o catering industrial, quer os Paladares Paroquiais funcionam a cerca de 50% da sua capacidade máxima instalada, se bem que a produção de queijos e produtos gourmet atinge picos de produção em épocas específicas do ano, nomeadamente na Páscoa e no Natal. 

Pode dizer-se que os lucros da empresa são única e simplesmente para a área social?
Costumamos dizer que o lema do nosso projeto é: 100% natural, 100% social. Precisamente porque os nossos produtos são naturais, sem corantes nem conservantes e porque os lucros são, na sua totalidade, para a sustentabilidade da missão do projeto. Resta ainda dizer que o gerente do projeto nem sequer é remunerado, assim está nos estatutos da empresa.

Os vossos produtos também já chegam ao estrangeiro. Como conseguiram apostar na internacionalização? Para que países exportam?
Como já referi, com as televisões a divulgar os nossos produtos, também, no estrangeiro. E uma aposta que temos feito é no “mercado da saudade”. Temos participado em algumas feiras, junto dos nossos emigrantes, e desta forma temos dado a conhecer o nosso portefólio. Por exemplo, no verão, temos muitos emigrantes que carregam o seu carro com os nossos produtos, antes do regresso ao país de imigração. Neste momento, estamos a exportar para o Luxemburgo, para a Suíça e estamos a tentar a Espanha.

Como consegue conjugar a vida de padre com o apoio ao empreendedorismo social?
Gostaria de dizer que esta minha atividade socio-caritativa e empreendedora faz parte da minha condição sacerdotal. Porque sou padre e, por isso, animador de comunidades eclesiais, pensei em dar uma resposta às necessidades que as minhas paróquias manifestavam. Depois, falando do dia-a-dia, tudo é possível com uma boa equipa que congrega pessoas das várias áreas: teólogos, economistas, técnicos do serviço social, engenheiros… estes trabalham comigo a tempo inteiro.

Depois há uma quantidade de voluntários e membros dos vários movimentos pastorais que, numa generosidade significativa, colaboram na condução de toda a atividade paroquial e social. Há, ainda, uma preocupação: o amadorismo, muitas vezes, impede-nos de chegar mais longe. Não quero, com isto, dizer que vamos profissionalizar todas as nossas atividades, também a pastoral. Mas, se tenho profissionais a trabalhar e a pensar a pastoral, a economia e o setor social, vou enriquecer a bagagem cultural daqueles que colaboram, dando-lhes formação e bases para o desenvolvimento das suas atividades. Ainda podemos responder mais e melhor. E ainda prolongamos a capacidade do padre.

Portugal está sensibilizado para o empreendedorismo social?
Penso que sim. Começamos a ver já uma série de Scholl Business a promover e a lançar cursos de formação em ordem ao empreendedorismo social. Eu próprio tenho colaborado com uma, onde vemos muitas pessoas das IPSS a fazerem formação nesta área. Também a nossa Diocese do Porto, num desafio lançado por mim, avançou com uma formação na área da gestão e liderança, no sentido de prepararmos outros, para que, ao nosso lado, primeiros responsáveis das nossas estruturas sociais e/ou paroquiais, nos ajudem a construir e a governar estas estruturas, criando meios para a sua sustentabilidade e para a sustentabilidade da missão. Quando me pergunta se Portugal está sensibilizado, penso que sim, nomeadamente os atores sociais.

Resta saber se essa sensibilidade acontece, também, ao nível político e legislativo. Porque, para podermos desenvolver esta área, ao nível de outros países, como por exemplo a Inglaterra, há ainda a fazer um longo caminho, no sentido de se criarem regras próprias e leis para este setor. Se isto for possível, poderemos ainda ir mais longe e responder melhor aos objetivos sociais do nosso país.

Acha que ainda há muito a ideia de que os empreendedores sociais são pessoas com conhecimento das regiões, que podem pertencer a fundações, associações, aos serviços da segurança social ou podem ser a senhora da mercearia que faz voluntariado ou mesmo o padre da aldeia?
Não sei se podemos dizer “há a ideia”. De facto, as pessoas que estão ligadas a estruturas sociais ou associativas já criadas, têm uma vantagem e um caminho feito que ajuda desenvolverem um projeto empreendedor. Foi o nosso caso. Mas penso que começamos a ver já em número significativo, no nosso país, projetos que avançaram com jovens e outras pessoas que se juntaram, com as suas ideias novas, com um casamento entre a imaginação e a criatividade, com determinação, com os carismas e habilidades de cada um, a capacidade de organizar e de liderar, o bom relacionamento interpessoal, o conhecimento e a tecnologia, e começamos a ver projetos com muito sucesso.

É o empreendedorismo social um caminho também para os sacerdotes?
Penso que sim. Nós, os sacerdotes, não podemos ter medo da economia. Mas também temos que olhar para ela numa dimensão mais socio-caritativa, usando-a como ferramenta para obter resultados que nos permitam manter ou alargar a nossa ação nos territórios que nos estão designados. Todos os dias, batem-nos à porta pessoas com muitos problemas, nomeadamente sociais, que nos pedem ajuda para os resolver e é preciso dar resposta. E às vezes, não serve, nem chega, a esmola. É preciso mais, como dar um emprego ou proporcionar um saber. Por outro lado, é urgente ajudar a desenvolver uma economia humana acima da economia do lucro; um desenvolvimento integrado acima do desenvolvimento economicista e a felicidade das pessoas, que não se pode limitar à produtividade. Penso que isto é colocar o evangelho no meio dos homens.

O Papa Francisco tem chamado a atenção do mundo para que a economia esteja sempre ao serviço dos outros: o princípio do “destino universal dos bens” e “opção preferencial pelos pobres” são chaves do seu ensinamento. O economista Roque Amaro disse aos padres dos Açores: “Não podemos ficar cercados pelos sacramentos sem que eles tenham tradução prática na realidade e deem resposta ao sofrimento que as pessoas estão a ter”. Por isso, parece-me que deve ser uma preocupação dos sacerdotes verificarem como podem rentabilizar os meios financeiros das suas estruturas eclesiais, no apoio à “missão social”, que devem desempenhar no meio da sociedade. Este projeto teve essa preocupação na sua génese. As várias dioceses do nosso país, assim como muitas paróquias, com as suas IPSS, têm criado vários modelos de economia que geraram emprego, que promovem a sustentabilidade e que respondem a tantos problemas sociais do meio em que estão inseridas. Estou a falar no âmbito da cultura, do turismo religioso e, até mesmo, da dinamização do seu trabalho apostólico e pastoral.

Considera que em Portugal funciona bem a economia de escala?
Não tenho bases suficientes para responder com precisão a esta pergunta. Mas, naquilo que é possível ver, penso que é uma preocupação constante. As minhas paróquias estão num território industrial: a Capital do Móvel. E vejo muitas empresas destas nossas comunidades com essa preocupação. Até porque, hoje, fala-se muito em “ganhar dinheiro” com redução de despesas.

Projetos para o futuro da Engenho dos Paladares?
A disseminação do projeto é uma das nossas preocupações. Nesta primeira fase, através de outras IPSS que têm aderido à venda dos nossos produtos, criando pequenas lojas nas suas instituições. No âmbito da estratégia de crescimento da iniciativa, como já referi, vamos ainda criar uma rota turística local: “Saberes e Paladares Paroquiais”. Temos no concelho de Paços de Ferreira vários locais de interesse cultural e artístico. Procuraremos criar e colocar ao dispor programas de visitas que permitam dar a conhecer o trabalho da Engenho dos Paladares, proporcionando visitas à fábrica, à loja e ao espaço gourmet/restaurante e, ao mesmo tempo, divulgar o património da região, essencialmente de cariz religioso. Estou perfeitamente convencido de que, com o alargamento desta atividade empreendedora, daremos mais emprego, criaremos mais sustentabilidade para os nossos objetivos sociais e, desta forma, teremos uma significativa participação na economia do país, o que já acontece.

 

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José Manuel Fonseca, investigador