Opinião
Repensar o binómio pessoas/negócios
Mihaly Csikszentmihalyi, que, com Martin Seligman, foi um dos fundadores da corrente da “Psicologia Positiva”, tem uma afirmação no seu famoso e excelente livro “Flow (Fluxo, na edição portuguesa de 2023) que seguramente nos causa alguma perplexidade.
Afirma ele que, e cito, “Se Diógenes, com a sua lanterna, há 23 séculos, tinha dificuldade em encontrar um homem honesto, hoje em dia talvez tivesse ainda mais dificuldade em encontrar um homem feliz”.
Esta frase, escrita em 1990, na edição original do livro, tem hoje, numa altura em que a felicidade se popularizou a tal ponto que já faz parte de uma certa ideologia (ou mitologia) do mundo pós-moderno, uma criticidade tanto maior quanto, para além da dificuldade em encontrar um homem feliz, continuamos também a ter uma sensação inquietante de ser cada vez mais difícil encontrar um homem honesto, a ajuizar pelas notícias que os meios de comunicação veiculam cotidianamente para a praça pública.
De acordo com o autor, esta situação que “se manifesta na condição subjetiva a que alguns chamam ansiedade ontológica ou terror existencial” e que consiste basicamente num “medo de ser, uma sensação de que a vida não tem significado e de que a existência não vale a pena”, radica no facto de que “as defesas que funcionavam no passado – a ordem que nos era fornecida pela religião, pelo patriotismo, pelas tradições étnicas e pelos costumes incutidos pelas classes sociais – já não são eficazes para a quantidade crescente de pessoas que se sentem expostas aos ásperos ventos do caos” (op.cit.).
Neste contexto, e perante a sistemática erosão das “grandes narrativas” que suportavam as crenças e os costumes tradicionais, as pessoas sentem-se cada vez mais perdidas, sem saberem muito bem em quê e em quem acreditar, e, à míngua de causas que lhes alimentem as expetativas de um futuro melhor, refugiam-se na única coisa que sentem que vale a pena e que conseguem controlar: elas próprias.
Não é de estranhar, por isso, que se comecem a generalizar na sociedade atual atitudes como individualismo, egocentrismo, narcisismo e, por extensão, egoísmo, em que cada pessoa tende a centrar-se mais (ou exclusivamente) nas suas próprias necessidades e interesses individuais, do que na construção de algo que configure essa entidade, entendida por muitos como abstrata e longínqua, que dá pelo nome de “bem comum”.
Para além dos óbvios efeitos negativos que esta situação pode causar em termos de ordenamento social, este fenómeno está a ser perigosamente utilizado (e manipulado) pelos partidos e movimentos de extrema-direita que se arvoram como arautos de uma nova ordem que tem precisamente como bandeiras o retorno aos valores de “patriotismo”, “tradições étnicas” e “costumes tradicionais” que, alegadamente, são aqueles que podem constituir o mais poderoso antídoto para a “desordem moral “ e de “princípios” que, segundo a sua perspetiva, grassa nas sociedades pós-modernas.
Esta situação de instabilidade social tem evidentes impactos no mundo das organizações, que, justamente para contrariar os efeitos nocivos e contraprodutivos da tendência para algum excesso de individualismo, têm procurado promover culturas e climas organizacionais que valorizam e acentuam a importância da existência de um Propósito comum, que seja suficientemente apelativo para gerar atitudes voluntárias e conscientes por parte dos colaboradores.
Tais organizações, que assumem que a “eficiência nunca se deve tornar mais importante do que a humanidade” (Leonhard, 2016) pretendem, mais do que formas de organização do trabalho que estimulem a produtividade, numa perspetiva individual, criar ambientes organizacionais que favoreçam e estimulem não só experiências profissionais gratificantes, mas verdadeiras experiências de vida, suficientemente ricas para que as pessoas se possam sentir gratificadas e motivadas pela construção de algo que, embora permita satisfazer necessidades e aspirações individuais, una as pessoas na prossecução de uma causa maior.
Ora, este alinhamento com um Propósito maior é um ingrediente fundamental para fruir a sensação de uma “experiência ótima” que proporciona às pessoas uma “extensão dos limites do eu, uma sensação de se estar envolvido em algo grandioso e poderoso” (Csikszentmihalyi, 2023) e que é uma das condições fundamentais para gerar o bem-estar subjetivo que constitui o verdadeiro “core” do sentimento de felicidade.
Por isso, e apesar de o mundo das organizações ser naturalmente influenciado e condicionado pelo contexto social mais amplo, é hoje muito evidente que cada organização tem efetivamente a liberdade e a possibilidade de gerar, por si própria, realidades alternativas que se constituam como poderosos meios de socialização, através das respetivas culturas e valores organizados em torno de um Propósito coletivo.
Assim, e atendendo a esse potencial de socialização, cada organização, tal como, aliás, cada família, mesmo que “exposta aos ásperos ventos do caos” (op.cit), tem realmente não só a capacidade, mas uma real e muito concreta possibilidade de criar, no seu seio, uma comunidade de valores e vontades partilhados que una as pessoas num projeto profissional que, justamente pela natureza dos sólidos vínculos motivacionais que estimula, se constitua também como uma parte essencial de um projeto de vida.
Este sentimento de pertença a uma causa maior que, naturalmente, não se esgota na mera satisfação de necessidades individuais, é uma das condições da vivência do “fluxo” que, de acordo com Csikszentmihalyi (op.cit) é o estado psicológico da experiência de felicidade, aquele que verdadeiramente pode levar as pessoas à “transcendência, a uma sensação de que os limites do nosso ser foram ampliados”.
Como o estado de “fluxo” é aquele em que as pessoas dão o melhor de si próprias e em simultâneo sentem o máximo de bem-estar através da vivência da “experiência ótima”, isto pode significar que é realmente possível alcançar, nas organizações, uma relação virtuosa entre a produtividade e a felicidade que, desde há muito, se têm considerado não só como realidades completamente independentes como até antagónicas.
Por isso, viver feliz no trabalho e ter uma vida mais feliz através do trabalho, já não são objetivos utópicos, mas são hoje verdadeiros imperativos de uma nova “protopia” que, de acordo com Gerd Leonhard, citando o futurista Kevin Kelly, numa entrevista publicada na Revista Líder (#24. Inverno.2023), “significa que gradualmente melhoramos as coisas, passo por passo até chegarmos a um bom futuro”.
Para lá chegarmos, é indispensável uma visão de gestão que coloque, de facto, as pessoas no centro das estratégias empresariais e que não se limite a repisar fórmulas que já parecem estar um pouco gastas pela erosão do uso excessivo e que, muitas vezes, não têm efetiva expressão prática, como, por exemplo, continuar a afirmar que as pessoas são “os principais ativos das organizações”, quando estes, afinal, acabam por ser facilmente descartáveis quando se considera que já não são precisos.
Nesta linha, Leonhard lança um repto que realmente põe em causa muitos dos nossos modelos e práticas de gestão atuais, afirmando, na entrevista já citada, que “quando temos as pessoas dos negócios a mandar só vamos alcançar tópicos comerciais, mas precisamos de pessoas além dos negócios”.
Para além de outras possíveis considerações, esta afirmação levanta de facto sérias interrogações, nomeadamente no que respeita à forma como as áreas de Gestão das Pessoas estabelecem a sua ligação e alinhamento com os responsáveis pela gestão das empresas. Será que, a esta luz, vamos continuar a sustentar simplesmente a ideia de que “os RH são, ou devem ser, “business partners” da gestão? Ou não será pertinente questionar também para que tipo de “business” e que tipo de “partners” queremos ser?
Será que as áreas de Gestão das Pessoas deverão acriticamente limitar-se a ser meros “partners” de empresas cujo modelo de negócio é, conforme refere Leonhard, “quererem simplesmente mais dinheiro”? Ou deverão ter um papel mais interventivo para influenciar as empresas no sentido de dinamizarem modelos de negócio alternativos como “focar-se no Planeta, na felicidade das Pessoas, num Propósito e também na Prosperidade”, de acordo com a proposta do mesmo autor?
Esta é de facto uma questão vital para os tempos que vivemos. E é uma questão para a qual cada empresa, cada organização e também cada responsável de RH, dará a “sua” resposta, aquela que melhor estiver em coerência com a sua visão estratégica e os valores que pretender instituir.
Na certeza, porém, de que aquelas organizações que optarem por uma estratégia consequente do tipo “PPPP,” (“Planeta, Pessoas, Propósito e Prosperidade”), proposta por Gerd Leonhard, poderão sem receio convocar uma nova visita de Diógenes à Terra, porque, mesmo sem lanterna, ele deparar-se-á hoje facilmente com muitas instituições com práticas de grande integridade e encontrará, sobretudo, muitas pessoas realmente felizes.
Referências:
CSIKSZENTMIHALYI, M. (2023). Fluxo, Flow. Lisboa: PRH Grupo Editorial Portugal, Lda.
LEONHARD, G. (2016). Technology vs. Humanity – The coming clash between man and machine. United Kingdom and USA: Fast Future Publishing Ltd.
LEONHARD, G. (2023). Entrevista à Revista “Lider” #24.INVERNO.2023 (Dezembro)