Entrevista/ “Queremos ser líderes digitais, isso não há dúvida”

André de Aragão Azevedo, secretário de Estado para a Transição Digital

Começa hoje o Fórum Portugal Digital que assinala o primeiro ano do Plano de Ação para a Transição Digital. Serão três dias dedicados à discussão sobre capacitação e inclusão dos cidadãos, transformação digital do tecido empresarial e digitalização do Estado. O Link To Leaders falou com o Secretário de Estado para a Transição Digital sobre esta iniciativa, a importância do ecossistema empreendedor, a criação de uma plataforma de standards europeus que facilite a internacionalização das start-ups, e os direitos digitais.

Depois de ter sido chefe de gabinete do Ministério da Saúde, e após mais de sete anos na Microsoft Portugal, onde assumiu um lugar no board em setembro de 2017, André de Aragão Azevedo reforçou em outubro de 2019 a pasta da Economia e da Transição Digital.

Em entrevista ao Link To Leaders, o secretário de Estado fala do Fórum Portugal Digital, evento com transmissão online que começa hoje e que colocará em discussão os principais marcos do processo de transição digital em Portugal, as consequências da pandemia e o que ainda está por fazer neste campo.

E da ambição de fazer de Portugal líder digital, uma meta que o secretário de Estado para a Transição Digital considera “perfeitamente alcançável”.

Qual o objetivo do Fórum Portugal Digital?
Será uma semana dedicada à discussão dos principais temas ligados às competências digitais e à transição digital de pessoas, empresas e Estado. O Fórum Portugal Digital tem um objetivo muito claro: fazer um balanço do Plano de Ação para a Transição Digital. Há precisamente um ano, uma semana antes do primeiro confinamento, foi apresentado publicamente o Plano de Ação para a Transição Digital, com o propósito de fazer do digital o motor de aceleração e transformação económica do nosso país, sem deixar ninguém – e nenhuma região – para trás. Estivemos a trabalhar este ano todo – mesmo durante a pandemia – e decorrido este primeiro ano quisemos apresentar as contas. Esse era um dos compromissos que tínhamos, explicar o que andamos a fazer, projetar também aquilo que são as iniciativas futuras e fazer alguns anúncios do que já temos para entregar em termos de resultados.

(…) iremos ainda lançar o Líder Mais Digital (…) para dar respostas de formação àquilo que é o topo da pirâmide em termos de decisores (…)”.

Quais as iniciativas que estão previstas para estes três dias?
O fórum está dividido em três dias, o que na prática replica também a lógica do próprio Plano de Ação para a Transição Digital e que tem a ver com os três pilares. O primeiro dia é dedicado às pessoas, ao desafio das competências, áquilo que é o ciclo de vida do cidadão, começando com o tema da escola digital, com aquilo que foi o avanço que o programa já teve – a entrega de 400 mil computadores, com kits de conetividade, o trabalho que já está a ser feito em termos de capacitação digital de professores, com o trabalho ao nível dos manuais escolares. Depois passamos para aquilo que é o segundo segmento do nosso público-alvo que é a população ativa com diferentes respostas, com o lançamento do Programa Jovem + Digital que pretende ajudar e capacitar os jovens na entrada no mercado de trabalho; com o Programa UPskill – Digital Skills & Jobs,  iniciativa de âmbito nacional destinada ao reforço de competências e ao aumento da oferta de profissionais na área das tecnologias de informação e comunicação, e que já está com a primeira leva de alunos a concluir a primeira fase de formação teórica e a entrar já nas empresas; e depois o programa Emprego + Digital que resulta das parcerias que fizemos com as várias confederações, envolvendo-as naquilo que são as necessidades de requalificação dos próprios trabalhadores e que aproveitaremos para formalizar o acordo. Já temos com a CIP [Confederação Empresarial de Portugal] e agora faremos também com a CCP [Confederação do Comércio e Serviços Portugal] e com a CTP [Confederação do Turismo de Portugal]. Fica-nos depois a faltar a CAP [Confederação de Agricultores de Portugal] que será realizado até ao final do ano. Mas temos as três maiores confederações. O objetivo é a universalização, à medida que os parceiros também tenham capacidade de resposta. Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo.

Para além destes programas, iremos ainda lançar o Líder Mais Digital, também em parceria com o Ministério do Trabalho e o IEFP, para dar respostas de formação àquilo que é o topo da pirâmide em termos de decisores que têm de estar sensibilizados para a causa, e depois o programa Eu Sou Digital que é na prática dar competências básicas a um milhão de portugueses e que também tencionamos lançar muito em breve. Este programa já tem uma candidatura feita a fundos europeus e esperamos ter boas notícias esta semana para fazermos um anúncio mais formal.

“(…) precisamos destas nativas digitais, com os seus modelos de negócio já adaptados e com recursos humanos muito mais qualificados”.

O que podemos esperar mais do Fórum?
O segundo dia do Fórum será dedicado às empresas também um pouco na lógica do ciclo de vida neste caso da empresa, começando com um foco grande naquilo que é a agenda do empreendedorismo que são as futuras empresas que temos pela frente que são relevantes neste processo de transição para um novo modelo de economia. Precisamos destas nativas digitais, com os seus modelos de negócio já adaptados e com recursos humanos muito mais qualificados. E, portanto, faremos também aqui um balanço de apresentação do nosso ecossistema, qual é que é o nível de ambição e o que é que estamos a trabalhar ao nível europeu com a Comissão Europeia, aproveitando a presidência para dar aqui um novo impulso – como saberão, conseguimos captar para Portugal a estrutura europeia permanente para o empreendedorismo – e depois medidas mais concretas onde faremos o ponto de situação que tem a ver com este objetivo de criar uma rede de polos de inovação digital, os tais “Digital Inovations Hubs”. A ideia é que por cada setor haja, no fundo, uma agenda digital que integre aquele cluster que, trabalhando com as empresas mais avançadas do ponto de vista de maturidade digital, funcione como arraste de todo aquele setor, trazendo também as PME a bordo para o assumir desta agenda digital de forma mais intencional. É isso que queremos com estes polos e que eles sejam também ferramentas de incorporação de tecnologias emergentes.

O terceiro dia, que será 6 de maio, será dedicado à Administração Pública com iniciativa que têm a ver com a apresentação daquilo que é um caderno de encargos da digitalização dos serviços públicos mais relevantes, um trabalho que envolveu as confederações e do setor privado no sentido de auscultarmos quais são as grandes preocupações que este setores têm em termos de ciclo de vida da empresa e onde é que o Estado pode ajudar com políticas públicas mais amigas das empresas e de desburocratização. É isso que pretendemos apresentar. Depois iremos também apresentar uma estratégia nacional de smart cities que iremos lançar em breve no sentido de criar um contexto de maior interoperabilidade entre projetos que nasçam de forma avulsa entre as várias cidades e criar uma framework comum que ajude na integração de todos estes projetos para que possam ganhar outra escala. E depois também o ponto de situação da cloud na Administração Pública. Explicar onde estamos e como é que ainda vamos criar novos instrumentos adicionais para que este processo de adoção da cloud seja ainda mais fácil.

“É normal que os processos nasçam assim, um bocadinho avulso e desenquadrados, mas depois há um momento em que é preciso fazer estas pontes, trazer todos à mesa e criar os contextos em que estejamos todos a remar na mesma direção”.

Tem sido fácil reunir os vários players do mercado nesta causa, para que tudo funcione?
Abertura e vontade para colaborar, sim. O trabalho é muito porque são muitos players, muita gente e não havia muita tradição de fazer estas pontes e de trazer todos à mesma mesa. É normal que os processos nasçam assim, um bocadinho avulso e desenquadrados, mas depois há um momento em que é preciso fazer estas pontes, trazer todos à mesa e criar os contextos em que estejamos todos a remar na mesma direção. O exemplo do UPskill foi um bocadinho assim, tivemos de trazer primeiro as empresas, fazer um levantamento do que eram as suas necessidades em termos de formação, perceber se as ofertas formativas disponíveis no mercado estavam alinhadas com essa expetativa, codesenhar com as empresas novas ofertas formativas, trabalhar com os politécnicos para que também eles mostrassem essa flexibilidade para tendo capacidade instalada incluírem essas ofertas formativas no seu catálogo de serviços e depois também pedir às empresas que se comprometessem com o compromisso de empregabilidade e com o salário mínimo de 1200 euros. Isto leva o seu tempo, obriga a algum esforço de diplomacia, mas tem corrido bem! As pessoas depois sentem-se envolvidas e percebem a lógica.

“Temos sido dos primeiros países, senão o primeiro, a ter este calendário cumprido do ponto de vista de organização do ecossistema nacional para preparar depois as candidaturas aos Digital Innovation Hubs europeus”.

Há precisamente um ano, antes do primeiro confinamento, foi apresentado o Plano de Ação para a Transição Digital nacional. Em que ponto estamos neste momento na transição digital?
Nas 12 medidas emblemáticas que tínhamos identificámos, o calendário a que nos propusemos está muito adiantado. O primeiro pilar – a escola – já arrancou. É um projeto para a legislatura. Não o podemos concluir em 2021, mas está francamente adiantado. Estamos com 400 mil computadores já entregues nas escolas, o que é número que mesmo a nível internacional nos coloca na dianteira. Foi um esforço enorme de investimento e logística, com todas as condicionantes da pandemia, de contratação pública e de escassez de componentes…fizemos esse esforço. O programa Upskill está no terreno e é um programa a três anos que está a correr completamente em linha com o calendário. O Açor Digital lançaremos nas próximas semanas para 1 milhão de portugueses com competências básicas, e a tarifa social de acesso ao serviço de Internet pode ser uma das boas notícias que gostaríamos muito de ter esta semana.

Depois o programa e-Residency queremos colocá-lo na rua até ao final do ano. As Zonas Livres Tecnológicas aprovaremos muito em breve o diploma quadro. Estas zonas vão permitir às empresas, em parceria com os municípios, testarem novas tecnologias em ambiente real sem tantos constrangimentos jurídicos, em particular com o 5G. O programa de valorização do interior Mais Coeso, já está em execução. Os Digital Innovation Hubs teremos o resultado das candidaturas que esperemos divulgar durante esta semana. Depois há a fase europeia e estamos completamente à frente em termos de calendário europeu. Temos sido dos primeiros países, senão o primeiro, a ter este calendário cumprido do ponto de vista de organização do ecossistema nacional para preparar depois as candidaturas aos Digital Innovation Hubs europeus.

E do ponto de vista dos serviços públicos, estas quatro medidas mais relevantes –  a digitalização dos 25 serviços públicos mais utilizados pelos cidadãos e pelas empresas; a tradução dos websites da Administração Pública para língua inglesa; a estratégia cloud para a Administração Pública e a simplificação da contratação de serviços tecnologia de informação e comunicação pela Administração Pública – também estarão concluídos em 2021.

Este último ano a pandemia aproximou-nos muito mais da chamada sociedade verdadeiramente digital?
A pandemia foi, sem dúvida, um acelerador quer ao nível as pessoas, quer das empresas. Ao nível das pessoas vimos vários comportamentos alterados no sentido da digitalização. Este número preocupava-nos: 22% da população infoexcluída declarava nunca ter utilizado a Internet em 2019. Mas baixou para 18% durante 2020. Baixámos 4 pontos percentuais, um decréscimo muito acentuado, sobretudo quando comparado com a Europa, onde baixou apenas um ponto percentual. Estamos a encurtar o fosso e este era um dos pontos de preocupação. Temos também a destacar o comportamento ao nível dos pagamentos, da incorporação dos pagamentos eletrónicos desmaterializados. Por exemplo, a utilização de MB Way cresceu 269% em 2020 e comparando com a Europa acho que estamos acima também nesta matéria.

Do lado das empresas, do ano passado para este houve um salto de 40 para 60% de PME com presença na Internet. Sendo que ainda temos alguns desafios. Apenas 25% destas empresas com presença na internet integraram a loja física com a loja virtual, o que mostra que ainda há aqui um trabalho a fazer. Depois há um número revelante, e que resulta de vários estudos, de que só 27% é tem uma estratégia digital muito claramente definida.

“(…) investir em competências digitais tem retorno no curto prazo”.

O que é que ainda é preciso fazer para que nas empresas se domine mais as competências digitais?
Basicamente, precisamos de criar programas que estejam de facto totalmente atualizados, precisamos de garantir que as chefias e os dirigentes das empresas, e das organizações estão sensibilizados para criarem os instrumentos que ajudem esse processo. Temos que, em termos de políticas públicas, ajudar as empresas e coinvestir com as empresas para que este processo seja menos oneroso. E temos de sensibilizar os próprios para o interesse e a vantagem em termos de empregabilidade, de nível remuneratório e também de realização profissional do que representa investir em competências digitais. Diria que, como tudo, tem de se trabalhar em diferentes dimensões. Mas com aquilo que acho que hoje é notório para todos: investir em competências digitais tem retorno no curto prazo.

Quais os setores ou áreas de negócios que estão ainda com lacunas evidentes a este nível?
Há uma correlação direta entre a dimensão das empresas. Quanto maiores mais recursos têm e mais sensibilizadas estão para a digitalização. Têm muitas vezes outro músculo financeiro. A única exceção, eu diria, é o ecossistema de start-ups que como nascem como nativas digitais tipicamente têm de facto outra agilidade e estão logo predispostas. Nasceram num contexto já de digitalização. Quando pensamos em PME há um nível de sensibilização para a importância do digital que é inferior às grandes empresas.

Em termos de setores, os que lideram são aqueles que tradicionalmente sempre investiram nesta área. Estamos a falar do setor financeiro e seguros, biotecnologia e saúde e a parte agora do espaço que está a surgir com uma grande vitalidade e constatamos esta dinâmica. A indústria automóvel também registado investimentos interessantes, a área da transformação na fileira da moda também está a seguir um caminho interessante – um setor que era historicamente tradicional e que está a fazer um salto muito grande para uma digitalização de ponta, com exemplos que estão ao nível do melhor que encontramos no mundo do ponto de vista de desmaterialização de todo o processo produtivo.

Apesar de ter havido um salto de 40 para 60% de PME com presença na Internet, apenas 25% estão presentes em plataforma de ecommerce. Quais os desafios que as empresas ainda enfrentam e como pode o Governo apoiá-las neste sentido?
As empresas, de alguma forma, replicam aquilo que é a realidade das pessoas. Um estudo da JFK de 2020 sobre o ecossistema de PME, mais concretamente como se autoposicionam em termos de transição digital, constata-se que 10% estão a equacionar, 6% contam planear e 5% contam começar agora, ou seja, temos um total de 21% que é exatamente o que temos também em termos de infoexclusão de pessoas. Parece uma coincidência, mas na realidade não é. O que é que temos de trabalhar? Trabalhar com aquelas que ainda não começaram, sensibilizando-as, dando-lhes competências e mostrando-lhes o valor do potencial do digital. Temos de criar aceleradores e aí temos os Digital Innovation Hubs, temos as Zonas Livres Tecnológicas que queremos lançar, temos as aceleradoras de empreendedorismo e temos agora com o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] alguns instrumentos de investimentos.

“(…) não há nenhum setor que queiramos deixar para trás ou que se possa dar ao luxo de ficar para trás”.

Há algum setor que mereça um investimento maior?
Há uma conclusão que é óbvia: todos os negócios são digitais e isso é consensual para todos. Portanto, não há nenhum setor que queiramos deixar para trás ou que se possa dar ao luxo de ficar para trás. A ideia dos clusters, dos Digital Innovation Hubs tem exatamente por objetivo garantir que em todos os setores isso é perfeitamente possível e alcançável. Naturalmente que podem ter pontos de partida diferentes em termos de maturidade digital, mas não terem uma agenda digital não é possível. Queremos garantir que trabalhamos com todos eles, no sentido de que com os parceiros certos, com as empresas, as confederações, as associações empresariais e as entidades públicas que tutelam aquelas áreas, e as áreas governativas respetivas, trabalhamos em conjunto para que que cada setor tenha uma agenda digital e tenha a capacidade de acelerar essa digitalização.

Agora é verdade que há setores que têm níveis de maturidade diferente. A área da saúde está à frente, a área das finanças está à frente. Mas mesmo às vezes quando estão à frente, os desafios também estão lá. A área da banca, que sabemos que está particularmente adiantada, está agora confrontada com a dinâmica das fintech que põem em causa muitos dos modelos de negócio que a banca tradicional tinha historicamente por assumida. Portanto, há agora num processo de incorporação e até de absorção destas start-ups, no sentido de trazerem para dentro de casa soluções de negócio e experiências de utilizador que sejam inovadoras e  que permitam corresponder à expetativa também do utilizador. Não queremos deixar ninguém para traz, nenhum setor para traz e nenhuma região do país para trás.

“Temos um ecossistema  de start-ups bastante forte que à nossa escala mostra uma grande vitalidade”.

Portugal está a saber aproveitar a Presidência do Conselho da União Europeia para iniciar um novo ciclo do empreendedorismo europeu, posicionando a Europa como um verdadeiro Startup Continent?
Não só acho que estamos a acompanhar como estamos a liderar e a dar um impulso novo que a Europa não tinha. Elegemos duas áreas prioritárias em termos de agenda digital da presidência portuguesa. Uma delas é exatamente o empreendedorismo, assente naquilo que acreditamos que é um dos aspetos mais fortes da nossa economia, onde temos resultados para apresentar e esses resultados são mais do que a Web Summit. Temos um ecossistemade start-ups bastante forte que à nossa escala mostra uma grande vitalidade. Estamos a falar de 2500 start-ups, 160 incubadoras, 470 milhões de captação de investimento, em 2019, 1,1% do PIB, 25 mil postos de trabalho. Ora são tudo indicadores que mostram que é um setor que tem um peso muito expressivo.

A ambição que temos em termos nacionais é duplicar estes indicadores, todos eles. E a ambição que temos é também ao nível europeu. Pensar porque é que a Europa, em alguns aspetos, é menos competitiva do que os seus principais concorrentes. Esse é um facto, olharmos para duas dimensões: uma, analisar qual foi a evolução em 10 anos do ecossistema de start-ups europeu, e quando digo start-ups é empreendedorismo, tem também a componente investidores e aceleradoras, e vermos que a evolução não foi assim tão forte quanto gostaríamos e, sobretudo, foi menos intensa do que os nossos concorrentes mais diretos – EUA, Israel, Singapura, ou seja, países com diferentes geografias que mostram uma dinâmica mais acelerada do que a Europa.

E as razões que encontrámos como causas para esta menor performance, uma delas está relacionada com excessiva fragmentação do ecossistema europeu. Em termos de ordenamentos jurídicos há regras diferentes – quando uma start-up se quer internacionalizar na Europa tem de lidar com 27 ordenamentos jurídicos diferentes quando nos EUA o escalar para os 50 estados é uma coisa perfeitamente simples.

Por isso, não só têm mais acesso a liquidez e a fundos com outra escala, como têm um sistema todo mais integrado. O contributo que quisemos dar foi assinar uma declaração entre os 27 Estados-membros  – já conseguimos a assinatura de 25 – que se comprometeram no fundo a assinar uma plataforma comum de requisitos, ou standards, europeus para o ecossistema de start-ups que facilite a vida às start-ups e que vão desde políticas fiscais, a apoios naquilo que é formação, naquilo que tem a ver com a própria dinâmica de internacionalização das star-ups naquilo que é depois o confronto com outros ordenamentos jurídicos.  A ideia é, de facto, trabalhar em oito frentes, são oito standards que definimos, no sentido de criar esta plataforma comum que facilita a internacionalização das empresas.

A par disso sentimos que faltava também aqui uma rede mais integrada e alguém que coordenasse esta rede e que funcionasse uma sede europeia de empreendedorismo. Achámos que faltava uma estrutura e esse é também um fator que nos distingue dos nossos concorrentes. A Europa não tem, à data de hoje, uma estrutura europeia que coordene o empreendedorismo. O governo português deu esse primeiro passo de lançar e coinvestir, também com o apoio da Comissão Europeia, na criação de uma estrutura permanente, europeia, que se dedique integralmente ao empreendedorismo, ao ecossistema de start-ups, incubadoras, investidores, e que trabalhe na lógica dos standards, garantindo alguma homogeneidade e alguma aceleração dos países que estão mais atrasados, mas também que nos garanta que Portugal tem uma liderança e um papel relevante nesta matéria, uma vez que pretendemos que olhem para nós como uma referência. Somos à data de hoje, de facto uma referência. Quando olhamos para os standards, cumprimos a sua esmagadora maioria. Já hoje estamos alinhados com eles. Temos um nível de maturidade e de awareness, nacional e internacional, que nos coloca na primeira linha.

“O que deve ser destacado neste ecossistema de investidores é a sua capacidade de fazer pontes com outros fundos de escala mundial e que podem ser parceiros em coinvestimento (…)”.

O universo dos investidores em Portugal está a saber responder às necessidades das start-ups?
Como em tudo, temos níveis diferentes. Temos investidores que estão ao nível dos melhores em termos de práticas de funcionamento, de exposição ao nível de risco e também de capacidade de investimento. O que deve ser destacado neste ecossistema de investidores é a sua capacidade de fazer pontes com outros fundos de escala mundial e que podem ser parceiros em coinvestimento, utilizando os nossos investidores nacionais que conhecem melhor a nossa realidade, quase como scouters, como alguém que pode acompanhar de forma mais direta, pode fazer uma avaliação do nível de risco mais objetiva e apoiá-los na escolha e na alocação.

É indiscutível que hoje, a nível mundial, o problema não é falta de liquidez. Temos de olhar não com uma estratégia nacionalista, mas numa lógica de integração, tanto quanto possível, porque o desafio do digital é global e o que é importante é fazer essas pontes. Temos bons exemplos, o fundo de coinvestimento 200M é um exemplo de capacidade de execução, da tal parceria público-privada, do matching fund e visa promover o coinvestimento em start-ups inovadoras de elevado potencial, em Portugal, através de coinvestidores privados nacionais e internacionais. É importante este entrosamento com os maiores, porque do ponto de vista de know how e de práticas estão perfeitamente alinhados.

De que forma poderá a Aliança Europeia das Nações para o Empreendedorismo, que se irá materializar numa estrutura permanente europeia para a área do empreendedorismo, servir de catalisador e como convocatória mobilizadora de todos os Estados-membros para o desígnio da digitalização?
Eu quero acreditar que vai ser um ótimo instrumento e um impulso muito grande de sensibilização, desde logo porque vai criar uma marca mais forte europeia para este tema, vai ser mais eficaz do ponto de vista de comunicação porque vai permitir trabalhar e sensibilizar em pontos fulcrais em cada um dos países. O conceito que está por detrás é o conceito de rede. Essa é a base que nós queremos e garantir que isto é apenas a cabeça coordenadora de uma rede que está disseminada pelos 27 Estados-membros, e que é suportada em dados objetivos numa plataforma de dados que seja de facto eficaz.

O que sentimos hoje é que há um défice grande de informação entre aquilo que é a informação de cada Estado-membro. A informação não está contabilizada, como não tem qualidade suficiente e nós queremos dar esse salto qualitativo porque não é possível gerir aquilo o que não se conhece. Temos de conhecer exatamente o que é que está a acontecer em cada país, quais são os desafios que estão a correr em cada um destes segmentos – start-ups, incubadoras, investidores – e com base nisso customizar políticas que ajudem cada Estado-membro a dar esse salto e cada um dos operadores a dar esse salto.

As empresas portuguesas estão a conseguir pensar na dimensão digital, mas sem esquecer a vertente da sustentabilidade?
Há uma incontornável interdependência entre a Agenda Verde e a Agenda Digital, elas autoalimentam-se. Não é possível pensar em sustentabilidade sem ter uma dose de incorporação tecnológica muito forte, sem investir em inovação, sem investir em soluções disruptivas. Isto implica, por outro lado, o reverso que é a própria Agenda Verde ser um acelerador de investimento digital e também contribuir para que haja mais esforço por parte das empresas de base mais tecnológica para que percebam o desafio da sustentabilidade e que por essa via desenvolvam produtos e soluções muito alinhadas com a Agenda Verde. O facto de os próprios instrumentos financeiros a nível europeu e nacional estarem a ser codesenhados em conjunto é um apoio que é muito relevante e que vai fazer a diferença.

No caso português com o PRR, temos três áreas de foco: a resiliência, a transição digital e a transição climática. Portanto, estas duas últimas muito integradas e olhadas de forma combinada. Acredito mesmo que esta tónica forte vai acontecer no terreno e os instrumentos que estamos a desenhar são exatamente promotores dessa abordagem conjugada.

Quais os desafios que têm pela frente até ao final do ano?
Acabar o caderno de encargos! Temos o desafio das competências que é um desafio que não se resolve num ano. Os macro-objetivos são o nosso guião e não devemos fugir deles porque é o que faz sentido! As pessoas primeiro, com competências e com diferentes perfis de necessidades, respondendo com diferentes instrumentos em função da necessidade específica de um segmento da população. Temos de ter respostas diferenciadas. É o que está identificado internacionalmente em todos os rankings como a nossa pior dimensão são competências. Temos o melhor, temos pessoas que são altamente qualificadas, que são reconhecidas pelo talento, mas como população no seu conjunto estamos aquém de onde queremos estar. Depois é garantir a aceleração digital seja na transição das empresas, seja na administração pública. Mas ela está a acontecer, isso é indiscutível.

“Queremos ser líderes digitais, isso não há dúvida.  E acho que é possível e perfeitamente alcançável, mas precisamos de um plano estruturado (…)”.

Portugal pode ter um papel de líder em termos destes processos de digitalização?
Acredito nisso e por isso é que estamos a trabalhar. É uma ambição assumida publicamente. Estamos em 19.º lugar, em 2020, e queremos progredir até ao fim da legislatura o mais longe que conseguirmos. A minha ambição secreta é chegar aos cinco primeiros. Acho que temos condições para isso. Queremos ser líderes digitais, isso não há dúvida. E acho que é possível e perfeitamente alcançável, mas precisamos de um plano estruturado e é por isso que é tão importante seguir um guião. O guião cria o caderno de encargos, que nos dá a orientação sobre para onde temos de ir e a articulação entre os vários indicadores deste desafio.

Quando olhamos este ano, pela primeira vez, para o European Innovation ScoreBoard, onde estamos como país altamente inovador, é perfeitamente possível. No sul da Europa só está Portugal. Temos de definir qual é a nossa bitola. A nossa ambição é de líderes e temos que lá chegar, trabalhando muito e, sobretudo, mais que os outros.

“Portugal propõe-se contribuir para essa agenda  [de direitos digitais] com uma declaração de Lisboa que queremos assinar no dia 1 de junho de 2021 (…)”.

Falta referir a dimensão dos direitos digitais…
É uma área em que queremos dar um contributo para um salto de visibilidade na agenda dos direitos digitais. A Europa é historicamente olhada como um continente de referência em termos de respeito por direitos individuais e valores democráticos e definiu um standard mundial que temos de garantir que essa dianteira também acontece em termos do mundo digital. Temos a boa experiência do RGPD, Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, que em matéria de privacidade colocou a Europa como continente de referência e definiu um standard mundial que tem por base o referencial europeu e o que queremos fazer é alargar essa lógica a toda a área dos direitos na área digital.

Portanto, Portugal propõe-se contribuir para essa agenda com uma declaração de Lisboa que queremos assinar no dia 1 de junho de 2021, quase a encerrar aquilo que será a nossa agenda digital da presidência, para a qual temos o consenso da Europa em volta desta temática promovendo o que chamamos o “European Way of Doing Business” que é: a Europa é o parceiro confiável e somos aquela entidade ou aquele continente, com quem todos os países e todas as geografias querem fazer negócio porque sabem que há aqui um standard e uma dimensão ética que não existe noutras geografias. Esta componente é essencial. A dimensão ética é provavelmente o fator mais diferenciador da Europa e que eu acredito pessoalmente que não estamos a potenciar tanto quanto devíamos porque sabemos que o mercado vive de confiança e confiar no parceiro é essencial. E a Europa é o parceiro confiável à escala mundial. E, portanto, nós temos de o reafirmar no contexto digital. Criamos uma declaração de Lisboa, associada à qual virá uma primeira declaração sobre direitos digitais que no fundo tente fazer uma listagem dos principais direitos, alguns já estão reconhecidos em outros diplomas, mas de forma avulsa, e nós queremos dar-lhe uma coerência diferente, juntá-los todos e mostrar que a Europa assume este compromisso.

O fator diferenciador que a Europa quer, e que nós queremos enquanto presidência, é que esta declaração, que é europeia, funcione e esteja aberta à subscrição de outros países para mostrar exatamente este novo referencial europeu e que a Europa se posicione como o tal parceiro confiável. E isso implica abrir a outros países, mas também ao setor privado. Porque nós queremos que as grandes empresas tecnológicas, ou não, assumam também este compromisso de termos este referencial ético comum para todos, seja em termos geográficos seja de setor. Mais uma vez a Europa fixará também para o setor privado o que é o standard ético, os princípios. Tem tido imensa aceitação e todos os países estão com grande expetativa.

Portugal será pioneiro nesta agenda dos direitos na era digital não só ao nível nacional como ao nível europeu dando este contributo com a assembleia digital que terá lugar no dia 1 de junho. Também dá corpo à estratégia europeia também relacionada com a rede de conectividade, Portugal como porta de entrada europeia. Vamos também associar a esse evento da assembleia digital a inauguração do cabo submarino que vai ligar a Europa à América Latina e depois os outros cabos que se seguirão e que ligaram a África, criando aqui uma plataforma atlântica sul em que Portugal é porta de entrada de cablagem submarina de redes de dados e associar depois também a data centers que garantam capacidade de processar toda esta informação, tanto quanto possível em Portugal.

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