Muito se tem falado de privacidade, agora que são cada vez mais as organizações que preparam o regresso dos colaboradores às instalações, das quais estes saíram, migrando para teletrabalho, quase de um dia para o outro, e num momento em que muitos negócios estão a (re) abrir as portas que encerraram há mais de dois meses.
A “novela da temperatura”, infelizmente, tomou conta da discussão do tema, e distraiu empresas e outros stakeholders de muitos aspetos que, em termos de cidadania (nomeadamente de “cidadania digital”) parecem ser bem mais relevantes em matéria de privacidade. O extremar de posições na “novela da temperatura” – com a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) para um lado e o Governo para outro – não nos dá razões para estarmos sossegados.
Se a posição da CNPD, que grosso modo entende, ainda que com nuances, que não é legítima a medição da temperatura dos trabalhadores, clientes, fornecedores, alunos, professores (prática que está a ser adotada pela esmagadora maioria das organizações para evitar que a COVID-19 se propague dentro das suas instalações), parece ser excessiva ou fundamentalista, a posição do Governo, que “para resolver o problema” legislou sobre o tema de forma apressada, manifestamente insuficiente, e com alguns atropelos sérios do Regulamento Geral de Proteção de Dados, também se afigura precipitada e demasiado simplista.
No meio da “novela da temperatura”, pouco se discute sobre o sacrifício que, fatalmente, a COVID-19 imporá à privacidade dos cidadãos e das empresas, sobretudo se nos deixarmos distrair e deixarmos de dar ao tema a importância que o mesmo merece. E, é bom que nunca o esqueçamos, a privacidade é um reduto elementar de cidadania tanto pessoal como corporativa.
Acredita-se, por exemplo, que o teletrabalho, além de outros temas de privacidade que pode colocar, fará aumentar os ciberataques exponencialmente (só em março, o aumento foi de 37%, vindo-se a agravar com o passar do tempo), o que coloca enormes desafios tanto aos cidadãos como às empresas. Segundo o World Economic Forum, o custo anual de ciberataques, em 2021, será de $6 “triliões”, sendo expectável que 2020 seja um ano de “turning point” da cibersegurança, muito por força da COVID.
É claro que a proteção da privacidade não deverá ser um obstáculo ao combate à COVID, ou a qualquer pandemia. Mas a inversa também é verdadeira – a COVID não poderá ser um obstáculo intransponível à proteção da privacidade, servindo de fundamento à recolha de qualquer tipo de dados ou levando-nos a tomar decisões que muitas vezes são precipitadas e desnecessárias (apenas a título de exemplo, quantas gravações de reuniões sensíveis, em plataformas como o Zoom, o Teams ou outras, acabarão nas mãos erradas, expondo os seus participantes a riscos que nunca configuraram quando da decisão de gravação?).
E, temos de nos assustar quando vemos referências laudatórias ao “milagre coreano”. É certo que a Coreia do Sul, um país democrático, controlou a pandemia num curto espaço de tempo e com um número baixo de mortes. Mas fê-lo a um preço que na Europa não podemos estar dispostos a pagar (qualquer indivíduo que teste positivo, terá as autoridades a rastrear todos os seus movimentos recentes, com recurso a câmaras de vigilância com reconhecimento facial, aos movimentos do cartão de crédito a até aos dados de GPS armazenados no telemóvel e no carro).
Parafraseando Benjamin Franklin, “those willing to sacrifice essential liberty to purchase a temporary safety, deserve none and will lose both”. É bom que nos lembremos disso também em tempos de COVID, sempre que aceitarmos trocar a nossa privacidade por uma vida mais cómoda e desconfinada. A privacidade é essencial a um exercício pleno de cidadania e, uma vez perdida, dificilmente se recupera, conduzindo-nos assim, muitas vezes por mera displicência, a viver uma cidadania amputada.
*Presidente do GRACE em representação da Vieira de Almeida & Associados – Sociedade de Advogados