Opinião
Os Acusadores: um retrato contemporâneo
O contexto bélico das conversações nos dias de hoje.
Milan Kundera (2014), na sua obra Festa da Insignificância, escreve:
(…)
Sentirmo-nos culpados ou não. Penso que tudo se resume a isto. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como se desenrola essa luta numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não podem atirar-se umas contras as outras assim que se vêem. Em vez disso, tentam lançar sobre o outro o opróbrio da culpabilidade. Ganhará aquela que conseguir tornar o outro culpado. Perderá quem confessar o seu erro. Vais pela rua, mergulhado nos teus pensamentos. Caminhando na tua direcção, uma rapariga, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar para esquerda nem para a direita, avança a direito. Vocês acotovelam-se. E eis o momento da verdade. Quem vai insultar o outro, e quem vai desculpar-se? É uma situação modelo: na realidade, cada um dos dois é ao mesmo tempo o importunado e o importunador. No entanto, há os que se consideram imediatamente, espontaneamente, como importunadores, ou seja, como culpados. E há outros que se veem sempre imediatamente, espontaneamente, como importunados, ou seja, no seu direito, prontos a acusar o outro e a fazer com que seja punido. Nesta situação, tu desculpar-te-ias ou acusarias?
Eu, certamente, pediria desculpa.
Ah, coitado de ti, pertences por conseguinte, também tu, ao exército dos desculpadores. Pensas poder lisonjear o outro através das tuas desculpas.
Exatamente.
E enganas-te. Quem se desculpa declara-se culpado. E se tu te declaras culpado, encorajas o outro a continuar a injuriar-te, a denunciar-te publicamente, até à tua morte. São essas as consequências fatais da primeira desculpa.”
(…)
Tendencialmente, os acusadores de que nos fala Kundera são pessoas que têm mais certezas do que dúvidas. Ao não se questionarem sobre as suas responsabilidade e culpa, acusam prontamente. Responsabilizam e culpam algo ou alguém pelos seus infortúnios e desconforto. Interessante é que as mesmas certezas levam os acusadores a assumir os louros, de forma completa e absoluta, pelas suas vitórias e conquistas. São certos das derrotas dos outros e das suas vitórias, portanto. Parece fácil viver assim…
Por outro lado, os desculpadores aparentam ter uma relação simbiótica com a dúvida permanente: “terei sido eu a dar o encontrão?” Para infortúnio destes, a dúvida repetida torna-se progressivamente em certeza: “fui, certamente eu. Foi por minha causa, como habitual.”
Kundera deixa claro que uns criam, alimentam e legitimam os outros. Concordo. Contudo, ao contrário do que no romance parece ficar claro, não creio que a solução passe por nos alistarmos num dos dois exércitos. Dever-se-á encontrar alguma virtude entre estes extremos.
A sociedade e a cultura de hoje são prolíferas em criar acusadores. Parece que, cada vez mais, estamos a deixar de tolerar a dúvida e a incerteza. Precisamos de ter tudo claro, sempre. Só assim seremos reconhecidos e recompensados, pensar-se-á. Quando impera a incapacidade do próprio se colocar em causa, “o outro” aparece, sempre a jeito, para arcar com as culpas e com os erros.
Os mecanismos estão aí, à nossa vista e nas nossas mãos; mais concretamente nos nossos polegares. Por exemplo, as redes sociais e os algoritmos que alimentam os seus feeds, levam-nos a ver mais, ou apenas e só, informação consonante com os nossos interesses e pontos de vista. Assim as redes e os outros veículos de informação reforçam as nossas certezas, com o nosso consentimento. Mais, exigem-nos a escolha de quem e de o que “seguir”. Claro que, tendencialmente, seguiremos o que nos interessa, o que que nos é semelhante, próximo, e que não desafia as nossas opiniões. Estamos a contribuir para a ampliação de uma prisão onde já estamos enclausurados (1). Para mim, a pior das prisões é a que não se parece como tal e que nos faz querer permanecer presos.
A esta dinâmica acresce a quantidade e a rapidez do fluxo da informação, a que se aliam as exigências pessoais, profissionais e familiares, nalguns casos. Como se lê na obra “No enxame”, de Byung-Chul Han (2016), reportando-se à Information Fatigue Syndrom, “o excesso de informação conduz à atrofia do pensamento”. Este síndrome é caraterizado pela paralisia da capacidade analítica, ”que nos faz capazes de pensar”, explica o filósofo. Não é difícil de conceber que, por estas razões, estamos menos capazes de pensar sobre as nossas próprias ideias. É mais difícil colocarmo-nos em causa. Em consequência aumentam a facilidade e a probabilidade de atacarmos ideias diferentes das nossas. E “a partir de um certo ponto a informação deixa de informar e passa a deformar, do mesmo modo que a comunicação deixa de comunicar, limitando-se a acumular”.
Outro dos sinais destas incapacidades crescentes nota-se na forma como nos ofendemos. A ofensa passou de aguda a crónica. Já não é uma reação a algo que nos magoa ou afeta a nossa reputação. Estamos reativos a tudo o que nos é dissonante; tudo o que é diferente faz, pura e simplesmente, ricochete. Como todos somos cada vez mais acusadores limita-se o espaço para a desculpa.
Na idade de oiro da conversação (2), conversar era uma arte, e os bons conversadores artesãos. Evitava-se ou tinha-se especial cuidado ao abordar temas como a política e a religião. As conversações, do que se lê nos manuais de etiqueta e boa educação da época, eram tidas como locais de aprendizagem e onde o respeito não apenas era praticado como era cultivado. A paciência, o respeito pelo tempo, pelo protagonismo e pelas ideias de outros eram virtudes tornadas em condutas.
É interessante constatar que hoje muito mudou a esse respeito. Na televisão proliferam programas de debate (conversa?) sobre futebol, que hoje tem tanto ou mais “peso mediático” do que a religião tinha há um ou dois séculos. O mesmo acontece em relação ao debate e ao comentário políticos. Em ambos os tipos de programa a conversação é muito diferente da que obtemos das descrições sobre o que acontecia nos salões parisienses, nas mansões dos nobres britânicos e nos cafés das capitais europeias onde se realizavam conversas e tertúlias. Reinam a sobreposição, o ataque, a distorção ultrapassando-se muitas vezes a fronteira das boas maneiras. O objetivo é vencer. Só conta se se derrotar o adversário, manchando-lhe a imagem, se houver oportunidade para isso, tingindo as suas ideias através de manipulação. Tudo isto é muito diferente daquilo que se pretendia da conversação antigamente. Antes, aprender, construir e evoluir eram os objetivos de conversar. Aliás, uma conversa para ser boa não podia ter objetivo, a não ser tornar rica a própria conversa. E isso significava que todos os que nela participassem pudessem sair mais ricos.
Quando todos procuram enriquecer todos, sem ser à força, deixa de haver adversários. Talvez a solução esteja em algo próximo do exercício a que se dedica um historiador (3). Quem estuda a história procura aproximar-se das ideias, intenções e sentimentos das pessoas do passado. Pela distância que o tempo imprime, o objeto de estudo dos historiadores é necessariamente diferente dos próprios. O esforço necessário para compreender e aceitar que as pessoas que viveram antes de nós pensavam de forma diferente poderá ajudar a treinar e fortalecer os “músculos” da tolerância e da aceitação da diferença. Por outro lado, poderão ajudar a flexibilizar as certezas e convicções rígidas e inamovíveis.
Talvez tenhamos todos de ler um pouco mais de história. Talvez tenhamos de investir mais energia a fazer mais perguntas. Talvez tenhamos de gastar menos tempo a ter sempre respostas prontas, em forma de acusação. Até porque, como nos diz Maurice Blanchot: “a resposta é a desgraça da pergunta”.
(1) John Berger (2018) Entretanto
(2) Stephen Miller (2006) Conversation: A History of a Declining Art
(3) The empathetic humanities have much to teach our adversarial culture