Entrevista/ “O têxtil foi um bichinho que entrou e não saiu mais”

Virgínia Abreu é uma das empresárias de referência na indústria têxtil em Portugal. Lidera há mais de 39 anos o grupo Crispim Abreu, que tem nomes como Agatha Ruiz de La Prada, El Corte Inglés ou Inditex entre os seus clientes. Soma ainda a vertente têxtil-lar, com a marca própria Casa Soft. Ao Link To Leaders, fala de como tudo começou e do seu otimismo para o próximo ano.
Em 1981, criou a Crispim Abreu com o marido. Três anos mais tarde, depois de ter adquirido uma outra fábrica que lhe permitia trabalhar grandes quantidades, fez as malas e foi apresentar-se à Inditex, em Espanha. Na mala levava amostras e já nomes conhecidos de clientes no currículo, o que tornou fácil atrair a atenção da empresa-mãe da Zara.
Num negócio construído a dois, que está dividido entre o vestuário e o têxtil-lar, Virgínia Abreu ficou com a responsabilidade pela produção, o design e a parte comercial. Gosta de construir parcerias fortes com os clientes – daí que a sua relação com a Inditex, por exemplo, se mantenha intacta três décadas depois – e não dispensa o acompanhamento muito próximo e diário da produção.
Em tempos de pandemia, mantém o otimismo que lhe é característico: “Vamos ter um longo trabalho a fazer no próximo semestre, nomeadamente o de motivar outra vez as pessoas para a produção. Mas isto vai arrancar agora a partir de janeiro, fevereiro. Estou convencida que sim. Estou positiva”, revelou a cofundadora do grupo, em entrevista ao Link To Leaders.
Quem é a Virgínia Abreu?
Sou uma esposa, sou uma mãe, tenho dois filhos já adultos, um já é casado, já tenho uma neta e sou uma pessoa que fez um percurso na indústria têxtil com algum sucesso. Digo com algum sucesso porque até hoje orgulho-me de nunca ter tido grande problemas, de não ter despedido ninguém, nunca fiquei a dever nada a ninguém, ou seja, nunca tive problemas de maior. Tenho os meus clientes fidelizados e sou uma pessoa comum. Tenho gostos pessoais muito comuns também. Gosto de ler, de ir ao cinema, de ouvir música, gosto de jogos no computador, com a pandemia tornei-me fã da Netflix, gosto imenso de ter amigos, de os receber em casa, de conviver. Sou uma pessoa bem-disposta, alegre e normalmente tento sempre desvalorizar as situações menos boas e de as analisar. Não sou pessoa de ficar deprimida.
Mesmo em relação ao Covid-19 tive uma reação de negação, de sofrimento, mas pensei sempre: amanhã é melhor, isto vai passar. Vamos ter uma vacina.
“Eu fui sempre uma pessoa muito empenhada, responsável e estou sempre atenta aos pormenores, estou sempre na produção, no estilismo, passo por quase todas as áreas da fábrica para conseguir antever situações erráticas que possam surgir”.
Quais os segredos para se construir um império como o grupo Crispim Abreu?
Isto não é um império, ao contrário do que se possa pensar. É uma empresa bem-sucedida, que tem bons resultados todos os anos. Este ano vai ser um bocadinho pior. É uma empresa que trabalha com honestidade quer para com os clientes, quer para com os fornecedores e com os colaboradores. Não é uma construção só minha. É minha e do meu marido. O segredo, segredo… não sei. Talvez seja mesmo esse campo da responsabilidade e do empenho, e também do conhecimento, porque se a pessoa não tiver interesse e não acompanhar as coisas de perto, as coisas escapam-nos das mãos. Por isso, eu fui sempre uma pessoa muito empenhada, responsável e estou sempre atenta aos pormenores, estou sempre na produção, no estilismo, passo por quase todas as áreas da fábrica para conseguir antever situações erráticas que possam surgir.
É importante cumprir os prazos, se o cliente tiver segurança no fornecedor também não vai trocar. Também a forma como investimos, os timings em que fizemos os nossos investimentos sempre com capitais próprios, nunca ficar endividados… estas situações todas ajudam a que as empresas, sejam de que área for, andem para a frente.
Ainda se lembra de como tudo começou?
Lembro-me perfeitamente como se fosse hoje. Eu tive vários começos. Comecei por trabalhar na indústria têxtil como funcionária numa empresa e o meu chefe começou por me ensinar o trabalho de exportação. E eu achava maravilhoso, porque naquela altura era um trabalho a sério e dava imenso trabalho. Não tínhamos a Comunidade Europeia, pelo que tínhamos de preencher uma série de documentação para fazer despachos, para as mercadorias saírem. Depois de eu dominar bem a situação da exportação, da documentação e dos bancos, passei a ser comercial e depois comecei a interessar-me também pela produção. Uma coisa leva à outra. E o têxtil foi um bichinho que entrou e não saiu mais. Há cada vez mais coisas para aprender, mais coisas para saber. Hoje tenho um conhecimento bastante alargado de todos os processos e que tento transmitir aos meus colaboradores diariamente. E às vezes sou chata.
Contam com quantos colaboradores?
Temos duas empresas e neste momento temos cerca de 250 colaboradores.
“Depois de estar na indústria têxtil durante muitos anos, fui tirar um curso de Direito, ou seja, com 48 anos fui para a faculdade. Os meus filhos estavam na faculdade, eu já não tinha de me preocupar com eles”.
A Virgínia criou a empresa em 1981 juntamente com o seu marido, eram bastante jovens e têm sido muito bem-sucedidos. Se fosse hoje, o que faria de diferente?
Depois de estar na indústria têxtil durante muitos anos, fui tirar um curso de Direito, ou seja, com 48 anos fui para a faculdade. Os meus filhos estavam na faculdade, eu já não tinha de me preocupar com eles. Gostei muito da experiência. Mudou muito a minha vida, a minha forma de pensar, de valorizar os outros e de os entender melhor. Eu não sou uma pessoa muito dura, sou uma pessoa muito mole e tomo muitas atitudes com o coração. Não sou nada de razão. Até posso fazer o maior erro, mas se o coração diz que é por ali, é por ali que vou.
De qualquer forma, fiquei com muito mais formação, a ter um raciocínio diferente e a pensar em cenários opostos para tirar conclusões. Se calhar, se eu tivesse pensado antes, teria tirado um curso na área têxtil mais cedo para não ter de demorar tanto tempo a aprender. Fiz alguns cursos de formação em algumas matérias, como marketing, mas teria feito mais qualquer coisa. Também tenho muita pena de não ter melhorado o meu inglês porque quando era jovem era tudo mais fácil. Mas, sabe, não dá para tudo. Não há super mulher.
Como se gere uma empresa de base familiar? É difícil deixar os têxteis à porta de casa?
É muito difícil. Os meus filhos queixam-se ainda hoje – e têm trinta e tal anos – que sabem muito de têxtil porque os nossos almoços e jantares eram sobre este tema. Desde pequenos começaram a apanhar muita informação porque eu e o pai estávamos sempre a falar de trabalho. Só há relativamente poucos anos, há 10 anos, é que começámos a deixar de falar de trabalho em casa. Não quer dizer que não falemos. De vez em quando falamos. Se eu me aborrecer no trabalho com o meu marido, isso pode passar para o ambiente familiar. Claro que já temos muitos anos de casados, já são 38 anos, já nos conhecemos e depois aquilo passa. Mas com os filhos começa a ser complicado, porque, para além da educação que lhes quero dar enquanto cidadãos, chega a um ponto que existem questões de trabalho com eles e, às vezes, as partes magoam-se. É difícil gerir um filho enquanto colaborador. Mas nós tentamos superar isso.
Mas os meus filhos dão-nos um desconto. Além disso, sempre que têm um projeto, eu digo-lhes que não para eles provarem que vale a pena. Há outro aspeto que quero reforçar. Isto também tem a parte boa. O casamento é um todo e para funcionar tem de ter objetivos comuns. Eu estou segura e tenho esta ideia: se eventualmente o meu marido trabalhasse num ramo distinto do meu, eventualmente iriamos ter muito poucos temas de conversa para discutir.
Ele é uma pessoa mais calada, mais tímida. Por isso, digo que ter um projeto comum ajuda. Nós tínhamos o objetivo de ter uma empresa, de fazê-la crescer, modernizá-la e estarmos atentos ao mercado. No início foi complicado em termos de gestão e de divisão de tarefas. Eu digo sempre ao meu marido: “tu nunca te enganas porque demoras mais tempo a decidir. Agora eu posso-me enganar porque decido na hora”. No início havia sempre aquele conflito de gestão: um dizia de uma maneira e o outro de outra. Depois chegámos a uma altura que a fábrica já era demasiado crescida e precisávamos de dividir tarefas. A partir do momento em que dividimos tarefas passamos a ser dois concorrentes dentro de uma mesma empresa. Eu cobro dele porque não tenho a malha ou a tinturaria a funcionar como deve de ser e ele diz-me: “mas tens ali a malha”. E eu respondo: “mas essa é para uma encomenda daqui a dois meses”. São guerrinhas engraçadas. Por isso, agora é mais fácil.
De que forma a pandemia afetou o grupo Crispin Abreu?
Não foram tempos fáceis para ninguém, quer a nível de ânimo, de preocupação com os funcionários, com a pandemia dentro da fábrica, mas também de faturação. Tivemos poucos casos, tivemos muita sorte e os casos que tivemos foram sempre contaminados fora, nunca foi dentro. A nível de sentimentos, de afetos e de disposição afetou, obviamente.
A nível de faturação também nos afetou porque vamos descer bastante, entre 20 a 30%. Porque os clientes ficaram retraídos, pediram-me para logo no início suspender, aguardar, para pagar mais tarde, etc. Depois foram-se regularizando e foram fazendo os seus pedidos, mas com muita moderação. E isto levou a quebras e picos. Quando se desce muito, mesmo que se tenha trabalho, demora muito tempo a arrancar. Eu neste momento já tenho muito trabalho, mas ainda estou naquela fase em que as pessoas dizem “ok, a minha filha tem Covid e eu posso ter de ir para casa”, “agora tenho de ir ao médico porque a minha consulta foi adiada”. Vamos ter um longo trabalho a fazer no próximo semestre, nomeadamente o de motivar outra vez as pessoas para a produção. Mas isto vai arrancar agora a partir de janeiro, fevereiro. Estou convencida que sim. Estou positiva.
“Na altura que foi decretado o confinamento estava de férias, estava no Brasil, e tive de regressar à pressa. E quando cheguei a Portugal fiquei muito contente porque os meus filhos já tinham organizado tudo, já estavam a trabalhar com turnos desencontrados e as pessoas estavam todas animadas”.
Este foi o momento mais difícil que o grupo atravessou?
Eu não posso dizer que foi o momento mais difícil. Quando se fala em momento difícil estamos a falar da pessoa estar muito aflita e eu nunca tive essa sensação. Estive muito assustada. Na altura que foi decretado o confinamento estava de férias, estava no Brasil, e tive de regressar à pressa. E quando cheguei a Portugal fiquei muito contente porque os meus filhos já tinham organizado tudo, já estavam a trabalhar com turnos desencontrados e as pessoas estavam todas animadas. E quando houve aquela quebra de trabalho, começámos a fazer batas para instituições, hospitais, mas não para as comercializar. Cheguei a fazer porque me convinha para ocupar os meus trabalhadores, mas não queria mudar o foco do meu negócio.
Lembro-me perfeitamente que a nossa sensação de solidariedade, tanto a minha, como a do meu marido, a dos meus filhos e a dos meus funcionários, foi uma coisa maravilhosa. Porque dissemos: “não nos interessa nada se vamos estar um mês, se vamos estar dois sem faturar, se podermos ajudar os outros”. Fizemos, inclusive, alguns donativos para instituições, lares que estavam com alguma dificuldade para comprarem os materiais de proteção de que precisavam. A nossa preocupação foram mesmo as pessoas. A firma felizmente é sólida, tem estrutura para aguentar algum percalço deste tipo. Já tenho alguma idade e não é só o dinheiro que me move. Já no ano passado faturei menos do que há dois anos. Não é desgraça nenhuma. Agora estamos a faturar menos, mas vamos faturar mais. Vamos estar cá e com saúde e vamos estar todos tranquilos.
Chegaram a parar a produção?
Não. Tivemos em layoff na tinturaria cerca de um mês. Portanto, tivemos alguns funcionários em layoff, alguns em teletrabalho, mas a parte da confeção trabalhou sempre. Eu recorro muito a fábricas fora.
Foi difícil assegurar a matéria-prima no vosso caso?
Nós temos sempre stocks muito grandes, por isso não foi problemático. O que melhor funcionou nesta altura foram as vendas online e as logísticas de transporte.
Quais são os clientes que continuam a ter um peso significativo na faturação do grupo?
Nós temos dois setores dentro da nossa produção, os têxteis-lar que é setor menos importante, e o vestuário que é o mais importante. Na parte do vestuário, trabalhamos com imensos clientes, mas a Inditex continua a ser um grande cliente dentro da empresa. Depois a parte dos têxteis-lar é uma parte que tem também uma grande faturação, especialmente nesta altura do ano e que funcionou muito bem em 2020. Normalmente, quando as pessoas estão em casa compram mais coisas para a sua casa. Não podemos, portanto, dizer que os clientes têxteis-lar recuaram, temos encomendas mais pequenas, mas os clientes estão sempre a fazer encomendas.
Os nossos clientes são, portanto, muito diversificados. Temos clientes em Inglaterra, na Finlândia, na Grécia, muitos em Espanha, além da Inditex. Em Portugal temos poucos clientes. Temos uma linha de venda de malhas prontas, matérias-primas, que vendemos para outras fábricas mais pequenas. Temos a marca que eu distribuo e confeciono, e que desenho em colaboração com a Agatha Ruiz de la Prada. Distribuo a marca aqui em Portugal, mas também por muitos países.
Sentiram as quebras que afetaram a Inditex nos últimos meses?
Eles foram muito afetados pela pandemia e tiveram de parar e de repensar porque tinham muitas lojas fechadas. No início disseram-nos: “tudo o que tiverem em produção ou que não tiverem feito não façam porque podemos querer mudar os modelos. O que está feito, nós asseguramos tudo. Vamos pedir é que entreguem mais tarde. Digam-nos o que têm e, se por acaso tiverem investimentos grandes em encomendas nossas e se quiserem receber algum dinheiro adiantado, nós dispomos do dinheiro para guardarem a mercadoria”. Na altura, não foi preciso adiantarem-nos dinheiro. Não sei como funcionou com os outros fornecedores. Trabalho com a Inditex há mais de 30 anos e por isso acredito neles. E logo que começaram a funcionar, pediram as mercadorias e estão a comprar.
Como se cria uma coleção atualmente?
A nível dos têxteis podem ser digitais, mas não é a mesma coisa. Quem compra tem uma grande responsabilidade no produto que está a comprar e quer tocar, ver, analisar… Fazemos a modelagem ou a proposta a nível digital, enviamos para o cliente, enviamos fotografias de peças e eles vão-nos dando o seu feedback, mas querem sempre ver uma amostra física. Por isso, as coleções continuam a ser físicas. Eu, por exemplo, ia à Inditex quase todas as semanas. Há também uma maior preocupação com o tema da sustentabilidade,da rastreabilidade, com os orgânicos, os reciclados… Há uma grande procura do mercado a este nível. O consumidor tem cada vez mais consciência. A sustentabilidade é uma preocupação que tem de ser acompanhada por quem vende e por quem faz. A Inditex já está neste caminho.
Desde que lhe chega um pedido até entregar ao mercado quanto tempo pode demorar?
Até chegar um pedido há um processo que consiste no desenvolvimento de amostras, aprovação de cor, etiquetas, bordados, estampados… Na maior parte dos casos temos de fazer uma coleção para o cliente, e tudo isto leva às vezes um a dois meses até chegar à compra. A partir da compra e dependendo da urgência do cliente, temos uma capacidade de resposta muito rápida. Podemos fazer em duas semanas ou três semanas, conforme o caso.
Quais os grandes desafios que o setor do vestuário e têxtil-lar enfrenta hoje em dia?
Estão muito relacionados com o tema da sustentabilidade, com desenvolvimento a nível técnico e com as pessoas. Os operadores das máquinas, ou seja, as pessoas que estão na produção precisam de um refresh, precisam que as consciencializemos para serem mais capazes, precisamos de uma grande sensibilidade das costureiras e das pessoas que estão às frente das máquinas e de lhes pagar mais. Temos know-how tradicional de imensos anos que podemos continuar a manter, não podemos é ter clientes sempre a pedir preços baixos. Tem de haver um ajuste.
Como perspetiva 2021?
O próximo ano não vai ser ainda um grande ano. Mas vai começar a tomar caminho para o arranque. O primeiro semestre vai ser um semestre de andarmos às apalpadelas, do compro não compro, porque não sei se vou vender. A partir do segundo semestre penso que vamos ter um ritmo de trabalho normal. Espero de todo aumentar a minha faturação em relação a este ano.
“Eu vejo muita gente jovem que quer ter e vender uma marca, mas isso é uma história que tem uma duração curta”.
Que conselhos daria a um jovem empreendedor que quer apostar neste setor?
Dir-lhe-ia que tem de ter muito foco, muita vontade de trabalhar. Eu vejo muita gente jovem que quer ter e vender uma marca, mas isso é uma história que tem uma duração curta. Começa sempre com muito empenho, mas depois termina, porque as coisas têm de ter uma sequência. Tem de ter bastante conhecimento, ter um espírito de sacrifício muito grande para abdicar de férias, fins de semana, como eu o fiz, e depois tem de ter muito cuidado em empreender. Portanto, foco, conhecimento e ter uma boa cabeça de gestão.