Entrevista/ “Não se dá oportunidade às empresas nacionais de mostrarem o que valem”

Cristinas Marinhas, CEO da Quidgest

A Quidgest desenvolve sistemas de informação de gestão através da plataforma Genio. Tem projetos pelo mundo fora. Ao Link To Leaders, Cristina Marinhas fala do seu percurso na empresa que fundou há 30 anos e de como perspetiva o futuro da programação.

A tecnológica portuguesa Quidgest está há 30 anos no mercado do desenvolvimento de sistemas de informação de gestão com o Genio – plataforma de desenvolvimento automático..

Distinguindo-se dos gigantes pela forma como trabalha, disponibiliza soluções desenvolvidas à medida, quase como nos jogos de construção que permitem a criação de múltiplos objetos.

Foi em 1988 que Cristina Marinhas decidiu deixar para trás um “emprego estável” na Administração Pública para, juntamente com dois colegas, um economista e um engenheiro químico, criar a Quidgest. Começou com três pessoas e, passados 30 anos, a empresa conta com mais de 100 pessoas e projetos pelo mundo fora. O segredo? Está no facto de qualquer pessoa poder programar sem ter de aprender código.

Quais foram os grandes desafios que encontrou pelo caminho?
Há 30 anos as coisas eram um pouco diferentes. O desafio era sempre tentar fazer com que a empresa singrasse, crescesse, sem pôr em causa a estabilidade financeira. Isto era muito importante para mim e este foi o desafio que abracei: uma empresa sem investimento exterior, 100% portuguesa, sem apoios de grandes grupos ou de acionistas. Foi sempre o nosso desafio – e é ainda hoje – fazer com que a empresa cresça de forma sustentável, gerando recursos que permitam o seu crescimento contínuo.

O que é que mais mudou no mercado?
Quando começámos não havia nada. A informática estava no início. Tinham aparecido os primeiros computadores mais baratos do que os da IBM, que era líder de mercado nos computadores pessoais até então. Uma empresa inglesa veio revolucionar o mercado, lançando computadores muito mais baratos, pelo que houve uma massificação da sua utilização. E depois em termos de sistemas, não havia praticamente nada, quer nas empresas, quer na administração pública. Não tinham sistemas de informática que suportassem a sua atividade. Portanto, tudo era novo, tudo era um desafio. Tinha-se uma ideia e saía um sistema de informação de seguida. Hoje não, o mercado está inundado de sistemas. Há muitas mais opções. Existem mais empresas, mais exigências, mais sistemas, e, cada vez mais, as empresas dependem do software. Hoje em dia o negócio confunde-se com o software. Todas as empresas são empresas de software.

“Acho que não é tanto ao nível das empresas, mas sim da sociedade que ainda há muita coisa a fazer. A mudança tem de ser cultural e tem de começar de pequenino.”

A Cristina esteve sempre muito ligada a este setor que é predominantemente masculino. Alguma vez sentiu alguma descriminação?
Aqui na Quidgest nunca senti qualquer tipo de situação discriminatória. Mas é evidente que é um setor onde as mulheres estão sub-representadas, nomeadamente na parte técnica. Basta vermos os cursos de engenharia informática e comparar a percentagem entre homens e mulheres, apesar de eu achar que esta situação está a mudar. Acho que não é tanto ao nível das empresas, mas sim da sociedade que ainda há muita coisa a fazer. A mudança tem de ser cultural e tem de começar de pequenino. Reconheço que há um longo caminho a percorrer para haver igualdade entre homens e mulheres. Nas gerações novas as raparigas batem mais o pé.

Que balanço faz dos mais 30 anos da Quidgest? O que teria feito de diferente?
Não há arrependimentos! Agora não se pode mudar o passado. O que eu teria feito de diferente? O que podemos tirar de acontecimentos mais negativos é a experiência. No futuro não devemos repetir os mesmos erros.Tiro lições do que passou. Os marcos mais importantes foram vários. Por volta de 92, triplicámos o número de pessoas. Sempre que o número de colaboradores aumenta há dores de crescimento associadas. Isto foi uma grande mudança na Quidgest. O marco tecnológico mais importante foi quando decidimos que a programação não podia ser feita manualmente e tínhamos de passar à programação automática. Mudou a nossa forma de trabalhar. Depois houve outros desafios, projetos grandes, pequenos, uns mais difíceis, outros menos… Às vezes não é a dimensão do projeto que é mais desafiante.

“Nós, portugueses, culturalmente apreciamos aquilo que é internacional, achamos que o estrangeiro é que é bom, o que se reflete na nossa área.”

O facto de a Quidgest ser uma empresa portuguesa, e principalmente nesta área, colocou algum entrave ao negócio?
Desde o início que sentimos um bocadinho isso. Nós, portugueses, culturalmente apreciamos aquilo que é internacional, achamos que o estrangeiro é que é bom, o que se reflete na nossa área. Muitas vezes compra-se pelo nome, pela marca e não se dá oportunidade às empresas nacionais de mostrarem o que valem. E penso que isto não ocorre apenas nas áreas tecnológicas.

O que leva muitas empresas portuguesas a preferirem trabalhar com as internacionais e não com as nacionais na área da programação? Falta de confiança?
É uma questão de preguiça ao decidir. Se o vizinho do lado comprou e funcionou, comigo também vai funcionar. Não existe uma decisão racional que analise as várias opções de forma a ver qual é a melhor. E há, também, o poder das marcas de influenciar os decisores.

“O mercado português é pequeno, pelo que para uma empresa crescer, tem de procurar projetos lá fora.”

Considera que os resultados da Quidgest têm passado muito por projetos fora de Portugal?
Muitos dos projetos que temos em mãos ou que estivemos envolvidos são fora do país. O mercado português é pequeno pelo que, para uma empresa crescer, tem de procurar projetos lá fora. Temos tido a audácia e capacidade de angariar projetos de grande dimensão no exterior. Mas também temos projetos nacionais e lutamos para conseguir mais. A internacionalização é necessária para crescer, mas alicerçada nos projetos que desenvolvemos no nosso país.

Quais têm sido os desenvolvimentos da plataforma Genio? Têm acompanhado as mudanças do mercado?
Pela sua génese, o Genio é uma plataforma que está sempre em desenvolvimento. O nosso conceito de programação é baseado na geração automática de código. Trabalhamos por modelos. Imagine o Lego: temos as várias peças e vamos construindo uma casa, um camião ou um barco. Quando surge uma nova necessidade, que pode ser tecnológica, ou não, o que fazemos? Não vamos programar manualmente, vamos sim arranjar um modelo que possa ser incorporado no Genio para que, no futuro, quando tivermos essa necessidade a possamos suprir.  A plataforma Genio não é estática, está em constante atualização.

Quantas aplicações têm neste momento e quais as áreas predominantes no negócio da Quidgest?
Temos à volta de 600 sistemas que podem ser postos no cliente amanhã repartidos em 12 áreas de negócio: financeira, recursos humanos, banca, saúde e desporto, património… O nosso ERP tem uma base de clientes nacional e internacional bastante grande e suporta todas as áreas de negócio de uma organização, ou seja, com a parte financeira, património e recursos humanos. Temos soluções muitas outras áreas como cibersegurança, gestão clínica, logística e qualidade.

Quantos clientes têm atualmente?
Cerca de 200 clientes ativos.

Têm algum case study decorrente do uso da vossa plataforma?
Temos vários casos de sucesso. Os fortes conhecimentos de gestão e de engenharia de software foram determinantes para que a Quidgest tenha sido escolhida para desenvolver o SIGEF – o sistema de gestão da formação do INA – para a execução da política de qualificação dos trabalhadores em funções públicas. A Quidgest foi também, em concorrência com as maiores multinacionais do setor, selecionada para assegurar a gestão integrada da Universidade Nova de Lisboa e do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.

No panorama internacional, destaca-se o fornecimento ao Governo da Jamaica do sistema de gestão de todos os recursos humanos da Administração Pública, através de um programa financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. O fundamental aqui foi perceber o modelo de negócio do cliente, o que ele quer e transformar isso num sistema informático. A nossa grande vantagem, para o sucesso do projeto, reside no facto de o desenvolvimento e implementação dos sistemas poder ser realizado por pessoas com diferentes formações académicas e, não só, engenheiros de software.

Por onde passa o futuro da programação?
Passa pela modelação e pela programação automática.

“Não devemos permitir que as máquinas substituam integralmente os seres humanos. Deixar nas mãos das máquinas a decisão final de algumas coisas, levanta problemas éticos e de segurança”.

Vamos continuar a precisar de pessoas que desenvolvam programação?
Vamos continuar a precisar, mas também o que sabemos hoje não vai ser preciso amanhã. O que é importante a reter é a capacidade de aprender. A evolução é enorme. A função de programador como hoje a conhecemos no futuro poderá não ser precisa. Não devemos permitir que as máquinas substituam integralmente os seres humanos. Deixar nas mãos das máquinas a decisão final de algumas coisas, levanta problemas éticos e de segurança.

Porque decidiram lançar a Quidgest_Academy?
Lançámos a Quidgest_Academy, em setembro de 2018. Trata-se de um projeto que visa o desenvolvimento de competências na área da construção de sistemas de informação e desenvolvimento de software, e que é direcionado a pessoas externas à empresa. A diferença fundamental para outras academias similares está na modelação e geração automática de código, uma tecnologia e metodologia inovadoras que permitem formar talentos em várias áreas de conhecimento, mesmo fora das TI, e acelerar, na ordem das 100 vezes, o processo de desenvolvimento de software.
Estamos sempre com formações e temos parcerias estabelecidas com universidades. A Quidgest_Academy oferece quatro tipos de programas: G-Knowledge – Training; Gen_Generation – Incubadora; GENIO_4ALL – Bootcamp e o G-Driven Corporate. Pela nossa academia já passaram cerca de 100 pessoas.

Surgem cada vez mais empresas de nearshore. Considera que são concorrentes da Quidgest?
Não considero uma ameaça. É a lei de mercado. A Quidgest diferencia-se por trazer pessoas de outras áreas académicas para o setor tecnológico.

Quais são neste momento os mercados estratégicos para a Quidgest, além de Portugal?
Estamos a apostar na Europa, nomeadamente na zona alemã. E vamos continuar nos outros mercados: América Latina e Caraíbas. Apostamos muito em projetos estruturantes que façam algo pela sociedade.

Como correu o ano passado em termos de faturação?
No ano passado tivemos um crescimento superior a 30%.

E quais as previsões para este ano?
Queremos continuar a crescer. Temos muitos projetos em mãos e estamos confiantes que vamos ter bons resultados. Ganhámos recentemente um projeto num banco de desenvolvimento africano que pode ser interessante. Os desafios são enormes. A adaptação tem de ser rápida e, enquanto produtores de software, queremos participar nessa transformação digital.

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