Multimilionários de Silicon Valley condenam racismo mas a desigualdade impera nas tecnológicas

Os multimilionários de Silicon Valley condenam em peso o racismo. No entanto, as tecnológicas e as empresas de capital de risco têm um percurso de décadas a ignorar e a perpetuar a desigualdade.

Silicon Valley, nos EUA, está a passar a mensagem de que se preocupa com o racismo – pelo menos quando se trata de matar e brutalizar pessoas negras pelas mãos da polícia. Os CEO de grandes e pequenas empresas de tecnologia, investidores e funcionários têm-se pronunciado nas plataformas sociais contra a morte de George Floyd e a favor da ideia de que “Black Lives Matter”. Muitas companhias e líderes de topo prometeram apoio às organizações de justiça social e fizeram o que podiam para pressionar por novas reformas.

Mas estas declarações parecem não refletir-se na realidade. De acordo com o Business Insider, há décadas que o setor tecnológico pouco faz para combater a injustiça racial sistémica no seu interior. Mais de 20 anos após o reverendo Jesse Jackson ter ido a Silicon Valley pela primeira vez para destacar a falta de diversidade nas salas de reuniões e nas empresas de tecnologia, os negros e latinos ainda são uma raridade por aquelas bandas. E a responsabilidade recai sobre muitas das pessoas que nos últimos dias têm falado sobre a injustiça vigente.

O Business Insider dá o exemplo da Apple: num memorando enviado aos funcionários no último fim de semana de maio, o CEO Tim Cook fala sobre o legado da injustiça racial e a dor e o medo que as pessoas negras e latinas sentem todos os dias. E diz que a Apple vai fazer doações à Equal Justice Initiative e a outros grupos que lutam contra a injustiça racial, prometendo apoio aos funcionários de cor. Contudo há algo que está sob o seu controlo e que faria uma diferença ainda maior – contratar mais negros e latinos.

A Apple era uma das empresas visadas pelo reverendo Jesse Jackson quando foi a Silicon Valley em 1999. Na altura ele apontou que a companhia, enquanto na campanha publicitária “Think Different” mostrava pessoas de diferentes origens étnicas e raciais, não tinha sequer negros ou latinos no conselho de administração, e encontravam-se poucos entre os seus funcionários.

Passados 21 anos, dos atuais sete membros do conselho de administração da Apple apenas um é negro: James Bell. E das 123 pessoas que em 2018 – o último ano em que a companhia divulgou dados demográficos da sua força de trabalho – ocupavam cargos executivos e seniores apenas uma era negra.

Ao todo, só 3% dos líderes de topo da Apple eram afroamericanos: tal como em 2014, o primeiro ano em que a empresa começou a divulgar os seus números de diversidade. Entre os colaboradores de tecnologia – por norma o grupo mais bem pago nos funcionários não administrativos em Silicon Valley –, apenas 6% eram negros, o que, de novo, é a mesma percentagem que em 2014. Já os latinos representavam 7% das posições de liderança e 8% dos funcionários de tecnologia, o que é mais 1 ponto percentual face a 2014.

A desigualdade nas tecnológicas…
Mas não é só na Apple. Há outras grandes empresas de tecnologia que têm um panorama semelhante, se não pior. Tal como Tim Cook, o CEO da Alphabet, Sundar Pichai, enviou um memorando aos funcionários, comprometendo-se a fazer doações a organizações de justiça racial e a apoiar colaboradores negros e outros funcionários afetados pelos eventos recentes. Tal como Tim Cook, Sundar Pichai não mencionou o que a Alphabet pode fazer para resolver as próprias desigualdades raciais.

Em 2019 os negros representavam 3,7% da força de trabalho da Alphabet, e os latinos 5,9%, de acordo com o último relatório de diversidade da empresa. Nos cargos de liderança, os valores eram de 2,6% e 3,7%, respetivamente. Entre os colaboradores tecnológicos, os negros representavam 2,7% e os latinos 4,8%. Mas a Alphabet fez progressos: quase todos estes valores aumentaram pelo menos um ponto percentual desde 2014, o que não invalida que permanecem baixos.

Para onde quer que se olhe nas tecnológicas, a história é a mesma. Na Salesforce, no Facebook, na Netflix e até na Intel (cujo ex-CEO, Brian Krzanich, prometeu a Jesse Jackson que iria diversificar a sua força de trabalho), a percentagem de funcionários que são afro-americanos ou latinos – sobretudo em posições de liderança e cargos de tecnologia – permanece baixa.

Nas empresas de capital de risco o cenário repete-se
Não se pode dizer que o cenário seja melhor entre as empresas de capital de risco e as start-ups que operam no setor de tecnologia. Tal como as tecnológicas e os seus CEO, as empresas de capital de risco (que vão da Spark Capital à Kleiner Perkins) anunciaram o seu apoio a causas de justiça social e juntaram-se ao coro de apoio ao “Black Lives Matter”. Investidores proeminentes twittaram ou retwitaram sentimentos análogos.

Mas, uma vez mais, são declarações que contrastam com as práticas de contratação ou com o financiamento realizado pelo setor de risco, já que é difícil encontrar mais que um punhado de afro-americanos ou latinos em qualquer uma destas posições, denota a Business Insider.

A Spark Capital parece não ter uma única pessoa de cor na sua equipa, pelo menos segundo a lista de membros no site. Na equipa da Kleiner Perkins o único membro negro é o ex-secretário de Estado americano Colin Powell, que atua como consultor e não como investidor.

No início de junho o BLCK VC, um grupo do setor de capital de risco que apoia o avanço dos negros na área, escreveu um post no qual diz que o setor é um grupo “homogéneo e exclusivo”. E declara que “o capital de risco é um dos sistemas injustos. É um sistema de financiamento de empreendedores que tem vindo a negligenciar de modo sistemático os talentosos fundadores e investidores negros, esmagando negócios e sonhos promissores. Está na hora de o setor enfrentar a feia realidade, que é a de um sistema que perpetua o racismo institucional que assola a nossa sociedade”.

Em todo o setor, só 4% dos funcionários de fundos de risco são negros e apenas 5% são latinos, de acordo com um estudo divulgado pela Deloitte e pela National Venture Capital Association dos EUA. Entre aqueles que têm algum tipo de função a fazer investimentos, 3% são negros e 5% latinos. Os afro-americanos e os latinos representam cada 3% de todos os parceiros de investimento.

Estes números são positivos quando comparados com os dos empreendedores que recebem financiamento de risco. Apenas 1% de todos os fundadores de start-ups apoiadas por capital de risco eram negros, e 1,8% eram latinos, segundo um estudo divulgado em 2019 pela RateMyInvestor e Diversity VC.

Se hoje o financiamento de grupos de fundadores diversificados não é uma prioridade, não se pode esperar que os próximos gigantes da tecnologia tenham forças de trabalho particularmente diversificadas. E há o risco de a situação se perpetuar. A escassez de negros e latinos entre os fundadores hoje apoiados significa provavelmente que no futuro as empresas vão permanecer em grande parte zonas livres de diversidade e os seus investimentos também.

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