Opinião
Liberdade e Escolha
Uma das principais características da liberdade é a existência efetiva de possibilidades de escolha. Sem escolhas, ou seja, sem existir num determinado sistema, seja social seja pessoal, uma real possibilidade de as pessoas formularem escolhas de acordo com as suas opiniões, crenças e valores próprios, não existe verdadeiramente liberdade, mas apenas tipos de condicionamento, mais ou menos alargados, ou mais ou menos limitados.
Por isso, e num momento em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, é justo e oportuno assinalar, sem recorrer aos credos e aos comprometimentos do pensamento explicitamente político, que, ao compararmos a realidade social em Portugal nos dias de hoje, com a outra realidade que tínhamos na época do Estado Novo, na qual pessoalmente vivi durante 25 anos, não poderemos extrair outra conclusão que não seja a de que o Portugal de 2024 oferece à sua população uma diversidade de possibilidades de escolhas incomparavelmente superior à que existia na época anterior à revolução democrática, pelo que se pode afirmar, com total segurança, que o país é hoje, inquestionavelmente, uma sociedade mais aberta, democrática e, consequentemente, mais livre.
Dir-se-á, e há muitos que o vão fazendo de forma crescente, embora muito pouco fundamentada, que, no que toca às liberdades, estamos longe dos cenários otimistas anunciados enquanto grande horizonte onde se projetavam todos os anseios, mas também todas as fantasias, de um povo que acabava de sair de um ambiente social fechado e concentracionário e não tinha, por isso, grandes bases para suportar vaticínios mais objetivos que dessem lastro mais concreto às ânsias e sonhos alimentados durante largas décadas de obscuridade.
No entanto, e partindo da ideia realista de que na verdade a chamada “liberdade total” é uma falácia e algo de impossível de concretizar, o que é facto é que vivemos hoje uma realidade social e política que oferece aos cidadãos possibilidades quase ilimitadas de opções de vida, aos mais variados níveis, desde as formas mais institucionalizadas de opções políticas, até às mais diversificadas formas de construção de modos de vida pessoais e comunitários.
Mas falar da existência de possibilidades reais de escolher não é exatamente a mesma coisa que falar de “capacidade para escolher”. A primeira, pressupõe factos, sistemas objetivos e a existência de uma oferta alargada e variada de bens disponibilizados pelos “sistemas periciais” do Estado e das diversas instituições sociais. A outra, porém, é de natureza fundamentalmente subjetiva e depende quase exclusivamente da capacidade de decisão de cada indivíduo e da natureza da “aparelhagem cognitiva e emocional” pela qual interage com a realidade que o circunda.
Ora, numa sociedade democrática e aberta (e exposta) ao mundo, ainda para mais num contexto de complexidade crescente como é aquele em que todos vivemos atualmente, a questão crítica que se coloca é até que ponto as nossas “aparelhagens mentais” estão a ser suficientemente eficazes para lidar com tanta incerteza e em situações onde a mudança é de tal modo acelerada que o possível fim de uma se confunde constantemente com o início de outra, e assim por diante num movimento perpétuo de ambiguidade crescente.
Quando a adaptação mental à complexidade é conseguida e quando as pessoas conseguem promover ativamente a sua “autoatualização”, desenvolvendo as competências estruturantes que lhes possibilitam reinventar criativa e saudavelmente os seus modos de vida, o presente torna-se um desafio estimulante baseado na produção de sinergias entre as pessoas e os sistemas em que atuam, numa espiral de progresso, de desenvolvimento e de bem-estar.
No entanto, se essa adaptação não for conseguida, se, por qualquer razão, a pessoa não conseguir encontrar sentido na sua vida, seja a nível profissional seja a nível pessoal, o risco é que essa pessoa, ou pessoas, ou mesmo organizações, comecem a perder o “sentido de si”, ou seja comecem a perder a sua identidade própria, o seu “sentido de propósito” e a fazer esforços de adaptação que, em vez de gerarem sinergias positivas, acabam por descambar numa espiral de frustração e ansiedade que podem conduzir, no mínimo, ao desânimo e, no máximo, a um sentimento de revolta.
Neste contexto, vale a pena distinguir entre o que são legítimos protestos resultantes de falências evidentes dos sistemas periciais relativamente à sua capacidade de criar alternativas e reais possibilidades para fazer escolhas que visem melhorar a qualidade de vida das populações, do que são protestos que não passam de uma espécie de catarse de frustrações provocadas por eventuais défices de capacidade de fazer essas escolhas, em ambientes onde a complexidade reinante não se compadece nem com soluções apriorísticas, nem com fórmulas simplistas de resolução de problemas que, obviamente, só são simples em teoria e falham sempre na sua aplicação prática.
Estes últimos não passam de protestos inconsequentes, feitos por pessoas ou grupos dominados por enviesamentos cognitivos que distorcem grosseiramente a “realidade da realidade”.
Essa fantástica capacidade humana de procuramos resolver as frustrações resultantes das nossas próprias incapacidades através da atribuição das culpas aos outros, que é um mecanismo “mais velho do que a terra”, como se costuma dizer, é totalmente inconsequente numa sociedade aberta e complexa, para além de esbarrar com o facto de, pela proliferação de vários centros e tipos de poder, às tantas nem sequer se ter uma ideia clara sobre quem fazer recair as queixas e os protestos.
Se, como refere Viktor E. Frankl, o “esforço para encontrar um significado na nossa vida é a principal força motivadora do Homem”, um dos principais desafios que poderemos ter, numa sociedade aberta, democrática, complexa e porventura algo confusa, e que tende a ser cada vez menos linear e até, em muitos aspetos, incompreensível, é contribuirmos ativamente para criar “bolsas de significado” nos diferentes contextos em que intervimos, seja nas nossas vidas pessoais, nas famílias, nas comunidades, nas empresas, contribuindo ativamente ou para diminuir o caos, se isso for possível, ou então para aumentar a nossa capacidade para dar sentido e progredir nesse caos.
Este será seguramente o melhor contributo que poderemos dar, enquanto cidadãos, para o fortalecimento das sociedades abertas, democráticas e complexas; esta será também a competência mais decisiva para nos tornarmos “cidadãos à prova de futuro”.