Opinião

Fomente cooperativas. Crie trabalho e riqueza

Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE-Business School*

Ao regressar do Estados Unidos, com licenciatura em engenharia, V. Kurien vai prestar serviço numa cooperativa de comercialização do leite, recém-fundada, em 1948. É a sua contrapartida à bolsa que o levou aos EUA.

Pouco tem o leite a ver com engenharia. No entanto, V. Kurien depressa vê o potencial que tem entre mãos, para elevar o nível económico e cultural da população envolvida. Dedica-se em cheio a dirigir a cooperativa, organizando os seu serviços, replicando o conceito nas aldeias, uma após outra, ao redor de Anand, Estado de Gujarate. A sua dedicação de mais de 55 anos como diretor fez com que a cooperativa, detentora da marca AMUL-Anand Milk Union Limited, conte hoje com 3,6 milhões de cooperantes e vendas de $3,4 bn em 2015. O modelo foi replicado em quase toda a Índia, na agricultura, pecuária, pequena indústria, etc., de tal forma que 70 milhões de famílias têm hoje um segundo rendimento do produto que entregam à cooperativa local.

A solução cooperativa
Surgiu após os protestos e recusa da população de Anand, de vender o leite aos intermediários – que compravam ao desbarato para vender por altos preços a uma empresa de Bombaim. A colonização inglesa tinha reduzido à miséria a população, com impostos que tornavam impraticável a atividade económica. Segundo Jeffrey Sachs[1], a expetativa de vida na Índia, por causa da fome e das epidemias, era de 32,5 anos, sem que os colonizadores tomassem qualquer medida, deixando as populações ao abandono.

Como diretor da cooperativa, a preocupação de Kurien era pagar ao melhor preço o leite, no ato da entrega, com base no volume e nível de gorduras. E apesar da abundância de pastos nas épocas chuvosas levar a produzir cerca de 2,5 vezes mais leite, a cooperativa recebia todo o leite, sempre, e o lavrador tinha a garantia de que compensava produzir mais e mais. Assim, o agricultor comprava mais vacas/búfalas leiteiras, com empréstimos, por vezes da própria cooperativa. Todo o sistema estava pensado para beneficiar o cooperante e, assim, fazer com que trouxesse quantidades crescentes de leite. A sociedade indiana estava carente de produtos lácteos.

A organização cooperativa funciona em três níveis: um local, na aldeia, com a cooperativa onde os lavradores entregam o leite, e onde compram produtos para alimentar a família e para o gado. A cooperativa comprava em grandes quantidades, com preços bem negociados, para os vender aos cooperantes a bons preços. Além disso, a entrega de manhã e tarde, na própria aldeia, não obrigava a grandes deslocações.

O leite recebido é frigorificado e transportado para a centro de tratamento, onde se retiram as gorduras – para se fazer produtos derivados como a manteiga, queijo, chocolataria, gelados, baby foods, mozarella, iogurtes, etc.- e o leite é pasteurizado e empacotado. Todos os artigos, leite e derivados, são depois distribuídos para os locais onde se procede à sua venda, começando pelas próprias sedes físicas das cooperativas, e ir aos postos de venda da AMUL.

Dos modestos começos com poucos cooperantes, depressa o seu número cresce, como um vulcão, pois tudo convidava a que se trabalhasse com a cooperativa. As cooperativas de aldeia formam uma “união de cooperativas”, numa certa zona, dando dimensão à produção para eventualmente se criar centros de tratamento do leite. Por sua vez, as uniões estão associadas na Federação que era como a organização de topo deste movimento cooperativo.

Assim, com um corpo dirigente central, harmonizavam-se os interesses e necessidades do conjunto, dirigiam-se operações de marketing, desenhavam-se e realizavam-se programas de formação para todos os cooperantes; providenciava-se assistência técnica especializada, veterinária, havendo também um órgão de investigação para a melhoria das espécies animais, para o fim em vista: ou produzir crias para dar leite em abundância e/ou para produzir carne para consumo.

Os valores do dirigente
Um factor básico para o bom êxito desta iniciativa é a credibilidade do director, firmada na integridade do seu carácter e na justeza das decisões tomadas. Facilmente os cooperantes se dão conta do desejo de Kurien de se pôr ao serviço, de tornar a vida dos cooperantes mais fácil, fazendo render o seu trabalho.

Quando tinha alguns anos de funcionamento, o primeiro ministro, Lal Bhadur Shastri foi visitá-la e terá dito que “com certeza recebe apoios do Estado… ao que Kurien terá respondido que não, e nem quereriam receber”. É sabido como os subsídios arrastavam formas de corrupção por via da colocação de amigos em postos elevados, sem preparação, nem dedicação. A admiração de Shastri foi enorme a ponto de pedir a Kurien que o modelo fosse replicado em mais três Estados, coisa que Kurien aceitou e fez com todo o sucesso.

Mais tarde foi-lhe pedido que organizasse uma cooperativa de óleos alimentares, dado que havia abusos, e eram umas famílias que dominavam o negócio, sofrendo a qualidade e os preços. Kurien aceitou a incumbência e, de caminho, recebeu ameaças de morte. Como era corajoso não se intimidou e realizou bem esse trabalho, e os óleos alimentares eram certificados e davam garantias e tranquilidade aos consumidores.

A Federação das Uniões de Cooperativas criou uma Escola de Formação de dirigentes, que hoje tem programas equivalentes ao MBA – Master of Business Administration, muito procurados e com uma remuneração à saída invejável. Kurien estava convencido de que uma Escola de Management em Agri-Business era da maior importância para o desenvolvimento do país, sobretudo rural, para a fixação dos dirigentes nessas zonas, para promover atividades e melhorar os rendimentos das pessoas nelas implicadas.

Os dirigentes da Federação das Cooperativas têm hoje voos muito altos. Querem chegar a volumes de negócios de $8 bn, em 2020, com várias instalações de tratamento de leite, noutros Estados da Índia, incluindo já a de Navi Mumbai, onde tem a laborar uma moderna instalação totalmente robotizada, com uma ampla organização cooperativa local que fornece o leite. À semelhança do que foi feito nos Estados Unidos, com tratamento de leite e fabricação de produtos típicos da Índia, pensam ter uma organização cooperativa na Rússia e nos outros Estados da Índia onde possam ser úteis os seus conhecimentos, apoiando as populações locais a organizarem-se em cooperativas para melhorarem o nível das suas vidas. O papel catalizador de pessoas com conhecimentos, autoridade e vontade de trabalhar sobre a realidade local, pode levar a criar abundante ocupação e riqueza, como na AMUL.

[1] Autor do livro The end of Poverty, Penguin Books

* Professor da AESE-Business School e Dirigente da AAPI – Associação de Amizade Portugal-Índia

(Artigo publicado no Diário de Notícias, em 30 de Julho de 2018)

 

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Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro, cofundador e professor da AESE, é Visiting Professor da IESE-Universidad de Navarra, Espanha, do Instituto Internacional San Telmo, Seville, Espanha, e do Instituto Internacional Bravo Murillo, Ilhas Canárias, Espanha. É autor do livro “O Despertar da India”, publicado em português, espanhol e inglês. Foi diretor-geral e vice-presidente da AESE (1980 – 1997), onde teve diversas responsabilidades. Foi presidente da AAPI-Associação de Amizade Portugal-India e faz parte da atual administração. É editor do ‘Newsletter’ sobre temas da Índia,... Ler Mais..

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