Opinião

Estado da Nação: gasoso

João César das Neves, economista e professor catedrático

Como está Portugal neste início do verão de 2022? A resposta mais razoável tem de ser: o melhor que consegue, dadas as circunstâncias. É bom tomar consciência que, pela primeira vez há muito tempo, o que domina o panorama são as circunstâncias.

Desde meados do século passado que o rumo do país foi determinado pelas nossas opções. Claro que existiam muitos choques e percalços, mas a linha dominante era a estratégia do regime. Primeiro do regime ditatorial, mantendo o império e a estabilidade, depois do regime democrático, abandonado as colónias e abraçando a Europa. Mesmo a estagnação dos últimos 25 anos foi o resultado da escolha do endividamento galopante, que tinha de acabar na austeridade. Portugal, mal ou bem, traçou o seu caminho nas três últimas gerações.

Isso acabou em duas datas simples: a 11 de março de 2020 a OMS declarou a pandemia e a 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia. De repente a esmagadora maioria da humanidade voltou à situação tradicional, em que todo o mundo vivera até há poucas décadas, subsistindo ao sabor das ondas de peste, fome e guerra.

É claro que a situação de Portugal e do mundo não é nada semelhante à impotência de séculos antigos. Mas temos de compreender que também deixou de ser parecida com a realidade em que nascemos e fomos educados. O mundo mudou para sempre nestes dois últimos anos.

O elemento mais visível é a perda de influência dos elementos e forças económicas, desviada para o setor médico e militar. Dos dois, este último é, de longe o preponderante. Gripes passam, mas guerras e o medo delas são pegajosos. Parece evidente que não voltaremos à globalização aberta das duas décadas à volta da viragem do milénio, que impulsionou o crescimento mais vasto e a maior redução da pobreza da história da humanidade. Os cenários mais catastróficos ainda são remotos, e talvez seja possível recortar zonas geográficas ou cronológicas onde se reproduza a antiga dinâmica produtiva. Mas a realidade dominante é diferente.

Se não se compreender esta alteração de fundo, não se consegue abordar o estado da nação. A inflação que estamos a viver não é daquelas que as políticas monetária ou orçamental possam resolver. Isto, aliás, nem sequer é realmente inflação. Estamos todos simplesmente mais pobres, porque a gripe eliminou capacidade produtiva e a guerra ameaça os abastecimentos de comida e energia. As medidas de apoio à pandemia, que permitiram uma crise social muito menor que a produtiva, estão agora a impedir um regresso à normalidade, por faltarem trabalhadores, dos aeroportos aos restaurantes e fábricas. A preocupação com as mudanças climáticas, que finalmente parecia estar a chegar às decisões económicas, choca de frente com a mudança da geoestratégia do petróleo e gás.

Entretanto a opinião pública e publicada ainda continua a pensar que a questão é a subida das taxas de juro, a carestia do cabaz de compras ou a dificuldade em viajar. Os governos continuam a propor medidas concebidas no mundo anterior, sem reparar que os resultados estão a ser diferentes. No meio destas mudanças tectónicas, Portugal ainda vive num remanso de ilusão. Com uma maioria absoluta moderada numa Europa cravejada de extremismo, com um crescimento medíocre quando se anunciam recessões e com um sonho do regresso de fundos estruturais, que evidentemente não terão o impacto que tantos lhes atribuem.

Há apenas uma questão decisiva, aquela que vai determinar onde se condensará este estado gasoso da nação: se o grande sofrimento que se começa a sentir, e que é inevitável perante esta transformação do mundo, leva os cidadãos a perder a confiança nas instituições. Se isso acontecer, como já é crescentemente evidente nos EUA, no Brasil e alguns parceiros europeus, então ao sofrimento junta-se a raiva, trazida pelos extremistas que não têm soluções, mas culpados. Então o elemento militar tornar-se-á dominante e os cenários catastróficos deixarão de ser remotos.

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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