Opinião

Do Zen a Almada Negreiros

Manuel Tânger, Head of Innovation da Beta-i

Pequim em 1983 era muito diferente do que é hoje. As grandes avenidas eram populadas por milhares e milhares de bicicletas e cidadãos, todos eles fardados. Haviam essencialmente duas fardas, as verdes para as forças de segurança e estado e as azuis, usadas por trabalhadores nos diferentes métiers.

Conto isto porque era a minha realidade em mais novo e porque teve uma influência enorme na minha vida (e ainda hoje tem), como alguém que se debruça sobre temas de inovação e empreendedorismo.

Tive a sorte de nascer numa família de diplomatas e por isso viver desde pequeno em diferentes países com diferentes culturas e formas de fazer. Isto levou a que perguntas simples e inocentes a uma criança como “como se come como deve ser à mesa” tivesse três respostas distintas e todas “correctas”. As três são: de faca e garfo (já nosso familiar), de pauzinhos (dos tempos na China) ou à mão (dos tempos na Índia). Ora, a pergunta em si ou as respostas pouca importância têm exceto pelo facto de revelarem os pressupostos de quem (e onde) a pergunta é feita. Quem faz esta pergunta tipicamente espera uma resposta única, quando na realidade existem várias.

Na inovação damo-nos de caras com este fenómeno vezes sem conta. Até tem um nome: “o enviesamento do perito” (Expert bias). Sabemos que quando chegamos a um nível profundo de conhecimento, este tende a bloquear a nossa abertura a outras formas de pensar ou fazer. E isto leva a uma realização contra-intuitiva, que é a de quem melhor está apto a inovar de forma disruptiva numa dada área de negócio é alguém de forma ainda não condicionado àquilo que é tido como possível e impossível nessa área. A não ser que as empresas desenvolvam uma capacidade crítica que monges budistas aperfeiçoam há séculos.

“Na mente de um principiante existem muitas possibilidades, na do perito existem poucas”,
Shunryu Suzuki

Nos anos 70, um Steve Jobs intelectualmente irrequieto, encontrou-se no meio do turbilhão experiencial que era a Califórnia hippie e com fortes influências asiáticas, particularmente as teorias e filosofias espirituais Budistas e Hinduístas. Houve um ciclo de conferências do monge Zen Mestre Shunryu Suzuki que marcaram particularmente Jobs neste período. Suzuki falava das diferentes formas de se manter eternamente de mente fresca e nova e usava a expressão “mente de principiante” para descrever esta abertura mental que nos permite abordar velhos temas de forma nova.

“Há uma frase no Budismo: “Mente de Principiante”. É maravilhoso ter uma mente de principiante”,
Steve Jobs

Esta atividade é especialmente importante na prática meditativa vivida (ao invés da prática meditativa estática) mas particularmente difícil. De facto, todos nós criamos modelos mentais de forma rápida e intuitiva de forma a conseguir entender o mundo sem o ter de re-aprender constantemente. Apesar de ser fundamental para uma eficiência cognitiva, os modelos mentais põe-nos muitas vezes a interpretar o mundo com lentes fixas ou velhas, quando a inovação mais disruptiva exige o oposto.

A inovação incremental consiste em olhar para um atual produto, processo ou serviço e aperfeiçoar partes deste de forma a aumentar o valor, reduzir o custo ou ambos. Assim, uma inovação deste tipo é bastante similar ao seu antecessor e dele decorre. Já a inovação disruptiva consiste em criar novos mercados, usar produtos atuais em contextos totalmente novos, fazer as coisas de forma radicalmente diferente e muitas vezes consideradas impossíveis no passado. Para isto é preciso olhar para as coisas de forma totalmente nova e “desencaixá-la” das definições atuais.

Este olhar tem de ser treinado, pois é-nos contra-intuitivo. Este treino, como qualquer outro que leve a resultados ganhadores, deve ser diário. Mas algumas atividades simples ajudam, nomeadamente:

– O ócio: os gregos sabiam que era em estados de ócio que melhor conseguiam organizar os seus pensamentos e articular as suas aprendizagens. Hoje hipervalorizamos a ação ao invés do ócio, mas no equilíbrio está a verdadeira aprendizagem: atuar e pensar, não fazer só um dos dois.

– Exposição a novas experiências: se pensarmos nos nossos dias, atrevo-me a dizer que são altamente ritualizados e repetidos. Acordamos à mesma hora para uma rotina matinal que se repete, de onde partimos para trabalhar, seguindo o mesmo caminho todos os dias ouvindo a mesma rádio e trabalhamos nos mesmos temas com as mesmas pessoas. Voltamos a casa e temos uma rotina noturna. Não é caso de desespero pois a rotina dá-nos estabilidade. Mas sim a exploração continuada e pontual de coisas novas. Um novo caminho, uma nova refeição, uma nova ordem, e por ai em diante. As nossas rotinas provavelmente serão mais eficientes, mas a novidade poderá trazer novas ideias.

– Ouvir os discordantes: É bem mais agradável estar com quem pensa como nós e considera óbvias as nossas opiniões sobre o mundo. É isto que fazemos nas redes sociais onde, as opiniões que lemos são de grupos que partilham a mesma visão do mundo… Mais difícil, mas bem mais instrutivo, é ouvir e dialogar com quem vê o mundo de forma radicalmente diferente, tentando integrar os seus particulares argumentos.

– Perguntar: uma boa pergunta é mais rica que uma boa resposta. É através do questionamento constante que podemos chegar à compreensão daquilo que é o nosso “viés do perito” para depois o poder desconstruir.

– Não se levar muito a sério: sei que ter respostas é tido como o expoente da competência, mas na era da evolução exponencial, as respostas de hoje serão diferentes das de daqui a um ano e sem questionar não conseguimos evoluir as nossas respostas.

“Chegar a cada instante pela primeira vez”,
Almada Negreiros

Mais perto de nós Almada Negreiros também insistia na mesma linha usando a frase “chegar a cada instante pela primeira vez” como guia criativo para abordar o aparentemente banal ou normal. Aprendamos do Mestre Suzuki, Steve Jobs e Almada Negreiros como de muitos outros que foram capazes de olhar para o mesmo mundo de forma diferente.

Comentários
Manuel Tânger

Manuel Tânger

Manuel Tânger é cofundador e diretor de inovação da Beta-i. É licenciado em Física e desde os anos de escola que se interessa por tudo o que se relaciona com a ciência e a tecnologia. Detém um mestrado em Física pelo Instituto Superior Técnico e pela Universidade de Utrecht, Holanda. Tem andado de país em país desde que nasceu: Brasil, China, Índia, Holanda, Itália, Canadá, Bélgica e, claro, Portugal. Além de lhe ter fortalecido o caráter, esta experiência deu-lhe imenso... Ler Mais..

Artigos Relacionados