Opinião
Desejar o que não se pode ter

Quando refletimos sobre liderança e os seus desígnios torna-se evidente que só faz sentido falar em líderes no pressuposto da existência de quem o não é.
É claro que toda a gente sabe isso. Um líder distingue-se dos demais, é uma realidade associada a uma lógica de minorias e a sua inclusão nessa categoria é feita por um conjunto mais ou menos alargado de pessoas que aceitam e consentem a perceção de não o serem.
O curioso da coisa, todavia, é que há muitos líderes que só vêm a ser reconhecidos como tal quando…deixam de o ser, havendo mesmo muitos que, enquanto não lhes foi reconhecido esse atributo, tiveram vidas marcadas por estigmas de marginalidade e de insucesso, com práticas aparentemente muito diferentes, e até consideradas aberrantes, em relação àquelas que habitualmente associamos ao exercício das lideranças.
No entanto, a partir do momento em que esse reconhecimento é feito, o seu exemplo é valorizado, é mencionado e expandido nas redes e é estudado para que daí se extraiam lições de bem-fazer para inspirar valores e modelar práticas
É com base nesses exemplos e nos sucessivos estudos que se vão fazendo sobre eles, e na respetiva generalização dos resultados, que se vão delineando os perfis de competências que nos permitem arquitetar modalidades de formação com vista a formar as futuras gerações de potenciais líderes.
E até agora as coisas têm funcionado mais ou menos bem.
Mas o que fazer num tempo em que a liderança começa a perder o seu estatuto de prática associada apenas a elites e passa a ser uma competência “democratizada” ao nível do cidadão comum? Noutros termos, como fazer com que as características habitualmente associadas aos chamados “líderes eficazes” deixem de constituir o elemento diferenciador que sustenta o veredicto avaliativo (mais ou menos) seguro nos processos de seleção e se torne numa condição para que qualquer pessoa se possa sequer incluir na categoria de candidato?
Dirão alguns: OK, isso é mais ou menos o que já acontece hoje. So what?
Para mim, o “what” da coisa, e é um “what” bastante significativo, é que, hoje, ao contrário do que tem sido a norma nas nossas organizações, a existência de competências de liderança deixa de ser uma exceção e passa a ser a regra para qualquer pessoa que aspire a realizar um qualquer percurso profissional consistente e sustentado.
Será obviamente uma liderança diferente, uma liderança baseada mais na “coordenação com outros” do que na “coordenação de outros”, como já tive a oportunidade de salientar num artigo publicado neste mesmo espaço já há bastante tempo; uma liderança em que o referencial da qualidade do líder já não pode ser o reconhecimento dos seus seguidores…porque pura e simplesmente podem nem sequer existir enquanto tal; e em que a competência verdadeiramente diferenciadora é a existência de uma poderosa autoconsciência de um ser humano de que o propósito fundamental da sua vida é dar um verdadeiro contributo de sinergia para a construção de um bem maior coletivo.
Alguma cultura tradicional de liderança organizacional ainda procura levar cada pessoa a “desejar aquilo que pode possuir”; mas a necessária rutura está em inspirar cada pessoa a “ter a força de desejar o que não pode ter”.
É por isso necessária a disrupção, promover a diversidade cognitiva para “ir mais além”, não se limitar a ir “out of the box” e ter a coragem de enfrentar os desafios de um percurso sem “ box”.
A esta luz, repensar os perfis de liderança é, acima de tudo, criar às pessoas um espaço onde elas possam encontrar as modalidades de liderança que sejam mais adequadas para esse propósito maior. E, neste contexto, ninguém está, à partida, excluído, a não ser aqueles que voluntariamente o decidam fazer.
Apostar nas pessoas é, sobretudo, dar aos outros a oportunidade de nos surpreenderem. Como vi citado num filme, “às vezes são aqueles de que ninguém espera nada que fazem aquilo que nunca ninguém esperou”.