O que pensa e sente quando alguém lhe diz que outra pessoa é “dura”? Julgo existir uma elevada probabilidade de ter respondido algo dentro das seguintes linhas: é uma pessoa que não se verga, que não desiste com facilidade; que tem opiniões fortes e que dificilmente as altera; que pode ser pouco delicada ou mesmo indelicada no trato; que é direta, frontal; que não revela facilmente as suas emoções; que é valente.
Se associarmos a “dureza” ao “ouvido” também pode significar que não ouve bem. Se dura for a sua inteligência pode indicar que esta não abunda. Podendo estar a interpretar de forma tendenciosa, elidindo os aspetos relacionados com audição e com a inteligência, parece-me que os atributos que tipicamente são enunciados em relação a ser-se duro/a facilmente poderiam passar por descrições de pessoas que são bem sucedidas em ambientes profissionais. Em determinados contextos, ser-se uma pessoa dura é uma vantagem e fonte de reconhecimento e valorização.
Façamos o mesmo exercício para uma pessoa “mole”. Moles são as pessoas sem energia nem vigor; que são frouxas e que cedem facilmente à pressão; que são irresolutas ou banais e ingenuamente indiferentes. Ao contrário da dureza, será difícil encontrarmos contextos onde ser mole é vantajoso.
Sabendo que estarei a entrar por terrenos movediços, afastemos o elefante psicanalítico da loja de porcelanas da avenida do politicamente correto. Procurando dar alguma expressão ao nosso inconsciente, a conotação sexual destas palavras pode ajudar a entender a valorização da primeira e a desvalorização da segunda, num mundo onde o pêndulo do valor ainda se inclina mais para o lado dos homens do que das mulheres, sem felicidade nem justiça.
As palavras transportam mais do que descrições. Estão carregadas de significados, de histórias e de História. Quando as transferimos entre domínios têm a extraordinária capacidade de mudar a substância sem que se altere a sua forma. A mesma palavra pode significar coisas diferentes em contextos e com intenções diferentes. Mas o que será que fica para trás? Que rasto fica de outros usos quando a história que queremos contar com essa palavra é diferente? Concretamente, o que será transportado pelas palavras “dura” e “mole” quando deixamos de as usar para qualificar pessoas e passam a categorizar competências?
Se ainda não ficou claro, refiro-me as competências duras – hard skills – e às competências moles – soft skills. Já aludi a este tema quando escrevi sobre o jargão empresarial e sobre a burocracia emocional, mas aqui quero oferecer uma dedicação particular a esta famosa dicotomia que, revelando já o fim, defendo que deverá perecer.
A expressão soft skills terá sido criada da década de sessenta do século passado pelo Exército dos Estados Unidos da América. Usavam-na para se referirem a qualquer competência que não implicasse o uso de maquinaria. Os militares terão percebido que muitas atividades importantes estavam incluídas nesta categoria e que, inclusive, poderiam ser factor determinante do sucesso das iniciativas ou do seu contrário. Eram atributos suficientemente vagos para poderem significar tudo e nada, mas poucas dúvidas havia sobre a sua importância.
Pouco terá mudado. Continuam a ser consideradas fundamentais e evoluíram a ponto de encontramos declinações como “competências comportamentais”, embora muitas ultrapassem a esfera da ação, ou “interpessoais”. Carisma, influência, autenticidade, escuta, sensibilidade, sabedoria, eloquência, clareza, sinceridade, liderança, colaboração, abertura, flexibilidade, visão, presença, humor. A lista continua, com tendência para ser interminável. Um dos grandes problemas deste tipo de competências é que com frequência designam atributos que, na verdade, podem não ser competências. Serão maneiras de ser, qualidades ou virtudes.
Quando penso nisto lembro-me do encenador Luis Gonzaga Moreira que melhor que ninguém explica o fenómeno do it factor, que leva alguns atores e atrizes a serem escolhidos e outros não. Tal como no mundo da representação, também no mundo do empresarial, que pode ter mais semelhanças com o primeiro do que se imagina, há pessoas que têm “aquilo” e outras que não. Ter “aquilo”, no mundo dos líderes e dos liderados, é possuir soft skills. Lá está, podem ser, uma vez mais, tudo e nada, mas alguma coisa serão, porque as conseguimos identificar.
Por oposição, as não menos importantes hard skills são as que implicam a mestria técnica ou administrativa. Parece claro que saber operar uma máquina, um computador, por exemplo, faz parte do leque das competências duras. Atualmente este tipo de competências estende-se para lá do que é puramente físico. Saber manejar um determinado software também parece encaixar nesta categoria, mas a distinção entre ambos os tipos de categorias pode não ser tão linear quanto aparenta.
As fronteiras não são apenas cartesianas (corpo vs. mente), porque saber ler e interpretar um balancete ou saber calcular um orçamento não implica apenas o uso do corpo e ainda assim estas capacidades não pertenceriam às soft skills. A diferença parece estar noutra dicotomia clássica: razão vs. emoção. Tudo que é menos cognitivo e mais emocional tende e ser considerado “mole”, mas, para tornar tudo ainda mais complexo, se entrarmos pelo campo da metacognição – a capacidade de pensar sobre como se pensa – manter-nos-emos na mesma categoria.
No fim, a divisão entre competências “duras” e “moles” parece ser mais um subterfúgio para tornar o mundo mais manejável. Tudo parece ser mais simples quando é dividido em preto-branco, esquerda-direita, bom-mau, etc. Com estes artifícios fomenta-se a divisão entre as pessoas e, pior, a divisão nas e das pessoas, tornando o mundo mais complicado. Que vantagem tiro de saber interpretar dados complexos se não os sei explicar a outros? O que me adianta ser atento aos outros e saber comunicar de forma clara e eloquente quando não entendo o que tenho para comunicar?
É necessário e urgente encontrar mecanismos que permitam encararmo-nos de forma completa e valorizar a unicidade e a coerência. Reduzir as pessoas ao seu desempenho e à sua capacidade produtiva é deixar uma imensidão de fora. Onde cabe a ética, a moral e a estética nas soft e nas hard skills? Em lado algum.
Ao continuarmos a usar estas designações estaremos a afastar a possibilidade de ligar a arte à ciência, o ócio ao negócio, a beleza à produtividade. O mundo do trabalho precisa dessas ligações, mas para isso precisa de se reinventar. Comecemos por deixar de atribuir moleza e dureza às competências.