Opinião

Criação de um complexo industrial militar nacional

André Marquet, cofundador da Productized

Nas últimas semanas têm-se escrito muitos artigos sobre as palavras do Chefe de Estado-Maior da Armada, conhecido do público pela gestão da task force do Covid, o almirante Gouveia e Melo, defendendo que se deveria estudar a re-introdução de uma espécie de SMO, assunto sobre o qual também me debrucei no artigo “Por um modelo híbrido de recrutamento para as nossas Forças Armadas”, de agosto de 2022.

Acontece que o almirante Gouveia e Melo deu, já nesta semana, uma entrevista à revista Sábado em que me parece ter feito um alerta ainda mais importante: “Caso a Europa não desenvolva rapidamente, num prazo de três anos, um complexo industrial-militar sólido que reponha stocks e crie um forte efeito dissuasor, três situações poderão ocorrer a breve trecho: 1) insuficiência militar; 2) incapacidade de competir tecnologicamente a uma escala global; e 3) uma significativa vulnerabilidade geoestratégica a curto médio prazo.”

Este artigo propõe uma transição estratégica para uma economia com medidas preventivas e de fortalecimento nacional e europeu, mediante a criação de uma task force interministerial, envolvendo a idD-Portugal Defensa que já tem uma tutela conjunta do Ministério da Defesa e do Ministério das Finanças, mas convidando também o Ministério da Economia, precisamente para se reforçar a componente de expansão da indústria de defesa nacional no quadro europeu, com os seguintes objetivos:

a) Munições e sistemas de armas – procurar e encontrar oportunidades de desenvolvimento que não estejam suficientemente bem satisfeitas, como é o caso manifesto das munições, ver artigo “Roteiro para uma reindustrialização de munições de guerra em Portugal”, sempre que possível com parcerias público-privadas ou, se tal se mostrar inviável, através da montagem de empresas públicas para esse efeito – este setor, ao contrário de outros do mercado civil, que pode ser deixado funcionar em mercado livre e concorrencial, é um mercado de monopsónio, em que só existe um comprador, e bem, porque só os Estados têm legitimidade para comprar este tipo de bens e serviços de emprego da força, e tem condicionalismos específicos que podem justificar a presença de capitais públicos, sobretudo num contexto de urgência, como os que vivemos atualmente.

b) Desenvolvimento de start-ups de defesa – Portugal pode liderar pelo exemplo, investindo em tecnologias de ponta e infraestrutura de energia resilientes, criando empregos e promovendo a inovação. Aqui, neste mesmo site propus a criação de um programa nacional de aceleração de start-ups de defenstech, assunto que está em análise pela Defesa Nacional, e que esta taskforce deveria acelerar.

a) Aprender a fazer mais barato – O preço de uma munição de 155mm ronda os 3000 euros, mesmo quando comprada em grande escala, como é o caso do pacote de investimento em munições liderado pela República Checa, em que o Governo de Portugal liderado por António Costa se comprometeu com 100 milhões de euros. Portanto, a indústria precisa de “aprender” a fazer mais barato, re-inventando processos, questionando materiais (existe um projeto português que utilizou, com sucesso, polímeros plásticos em vez de metal no seu fabrico, mas que ficou parado por falta de financiamento), e automatizando linhas de produção. Cabe ao aprovisionamento criar mecanismos de compra que premeiem compras de peças “normalizadas” a preços mais agressivos.

b) Coordenação industrial europeia – Se por um lado é necessário acautelar a eficiência económica, de forma a garantir que existe uma consolidação de sistemas de armas e economias de escala, é importante que tal seja feito acautelando níveis de redundância, e de segurança de abastecimento das cadeias logísticas. Neste ponto, esta taskf orce teria como missão procurar “arrebanhar” para Portugal, em coordenação com a AICEP, projetos de investimento direto estrangeiro neste setor, e ao mesmo tempo ajudar a negociar nas instâncias europeias as compras feitas através da European Defence Industrial Strategy (EDIS) e os fundos do programa Europeu da Indústria de Defesa (EDIP), aquilo que a prazo se irá transformar num verdadeiro novo PRR orientado para re-industrialização do setor da Defesa a nível europeu.

c) Mobilizar as empresas não BTID – Uma das questões que esta task force terá de lidar é com aquilo que denomino o “efeito iceberg” que é o facto da larga maioria das empresas nacionais não estar sensibilizada para desenvolver produtos para o setor da defesa, não porque não tenham capacidades técnicas para o fazer, mas antes porque tal como o iceberg que apenas se mostra um nono acima da linha da água, também estas empresas pura e simplesmente nunca foram requisitadas pelo estabelecimento político-militar para o fazer – porque os concursos de aquisição têm uma lógica de compra “off-the-shelf”, isto é, de comprar aquilo que está pronto a consumir e não de se procurar criar nova indústria.

Consideremos o caso concreto, e quase caricato, das rações de combate que são compradas às centenas de milhares de unidades para os três ramos das Forças Armadas nacionais, e que é fornecida pela empresa espanhola JOMIPSA, num contrato de vários milhões de euros. E à qual a Proteção Civil também acrescentou compras no valor de largas dezenas de milhões de euros.

Reparem que não estamos a falar de munições, ou de um sistema de armas altamente sofisticado, estamos a falar de compras de comida, deixo aqui a listagem de componentes da ração de combate da JOMIPSA e a alternativa de fornecedores nacionais que me parece ter mais cabimento, dado que muitos dos produtos já existem no seu portefólio, a saber:

Por cá, gostamos muito de nestas coisas ser mais papistas que o Papa, sendo que muitos dirão que na UE não podemos favorecer indústrias nacionais, embora existam exceções precisamente para o setor da Defesa, e dos nossos “parceiros” não terem o mesmo tipo de resistências que por aqui imperam. Ainda assim, como poderia ser desenhado um caderno de encargos que fosse gerador de economia interna e, ao mesmo tempo, fosse orientado pelo desiderato de poupança ao contribuinte?

Ora, as Forças Armadas estão particularmente interessadas em inovar nos seguintes vetores de investigação relativamente às suas rações:

– Redução de volumetria da Ração atual;
– Simplificação na confeção (aquecimento);
– Outras soluções “out of the box”.
– Otimização da composição;
– Otimização de sabores;
– Otimização da reciclagem;

Neste caso, deveria ser desenhado um processo de compra que incluísse uma fase a) testes em pequena escala de protótipos; b) compras em pequena escala para testagem e calibração; e c) caderno de encargos desenhado com base nas experiências – isto daria a possibilidade das Forças Armadas terem rações melhores e eventualmente geradoras de nova riqueza nacional.

Obviamente, também cabe às nossas empresas uma quota parte de responsabilidade, nomeadamente criando spin-offs para responder a este tipo de necessidades militares enquanto joint-ventures setoriais, no caso supra para o setor alimentar – situações que também poderiam ser incentivadas pro-ativamente, na expetativa de poderem responder de forma mais eficaz a novos processos de aquisição. Pessoalmente, tenho a certeza que se empresas como a Compal, a Goldnutrition, a Nacional ou start-ups como a Kencko forem desafiadas, dirão “presente”.

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