Opinião
Chamar os “bois pelos nomes”: o caso do jargão empresarial
Depois da Inteligência Artificial, propus-me a escrever sobre outro tema da moda: a nossa crescente permeabilidade às tretas. Pelos vistos vivemos na era das fake news e da “pós-verdade” (será isto tretas sobre tretas?).
As redes sociais, com os seus conhecidos efeito de megafone e funcionamento aditivo, parecem ter influenciado a ativação de novos modelos estratégicos que visam a captura de audiências ou, no fundo, da atenção dos leitores/utilizadores. Não sendo o único, este aparenta ser um dos factores que tem feito regredir a nossa capacidade de apurarmos a verdade, tanto no plano individual como no social. Entre outros aspectos estão, por exemplo, a facilidade de acesso e a quantidade de informação disponível, tanto de fontes credíveis como de outras. A nossa atenção foi mercantilizada e, como todos nós temos uma capacidade limitada para estarmos atentos, ao adoptarmos uma atitude passiva arriscamos atingir a saturação sem nos darmos conta.
Voltando às tretas, há que as saber distinguir da mentira. Como o filósofo Harry G. Frankfurt escreve no seu livro seminal On bullshit (1), produzir tretas não é o mesmo que mentir. Na mentira a verdade é manipulada e subvertida de forma deliberada. As tretas resultam da combinação de dois factores: quem as produz não quer saber da sua sustentação nem tem preocupação com a “verdade”; move-se por outras intenções (impressionar, ter mais audiência, ter protagonismo, etc.). Quem as recebe e as aceita não quer, não sabe ou não pode (?) ter o trabalho de aprofundar os seus fundamentos; deixa-se encantar para longe da verdade, qual rato a dançar em Hamelin.
No mundo empresarial, com especial atenção para a Igreja Universal do Reino do Empreendedorismo – expressão cunhada pelo Ricardo Araújo Pereira (RAP) (2) de forma brilhante, como habitual – o jargão utilizado tende a aproximar-se e a confundir-se perigosamente com as tretas. Parece haver uma apetência particular para usar um tipo de linguagem que resulta dos mecanismos que levam à criação das tretas e que tem o mesmo efeito básico: o distanciamento da verdade (e da realidade). Nestes meios parece haver, inclusive, uma predilecção pelas “tretas pseudo-profundas”. Este subtipo de tretas, ou “profundidadezinhas” como o filósofo contemporâneo Daniel Dennett as chamou (3), para além da sua falta de cuidado com a verdade, comum às tretas genéricas, distingue-se por uma preocupação com a verosimilhança. Parecem verdadeiras e profundas e muitas vezes provêm de fontes reconhecidas (gurus da gestão, da liderança e do empreendedorismo, escolas de negócios, etc.) mas têm todas as características das tretas, sendo a sua principal intenção entusiasmar e impressionar em vez de informar e instruir.
Em Portugal, e noutros países em que o inglês não é o idioma principal, as tretas empresariais aparecem muitas vezes adornadas sob a forma de anglicismos, a língua oficial do business talk. Talvez também por não estar nas redes sociais, a atenção e perspicácia do RAP mantêm-se num nível elevado, permitindo-lhe apontar este assunto numa das suas mixórdias, onde explora os “inputs sobre mindsets” (4).
Idiomas à parte, a falta de cuidado com as palavras, para não falar novamente da verdade e da profundidade, leva à banalização de aspectos que são tudo menos banais. Mesmo que sejamos daqueles que não são tão permeáveis às tretas, através da insistência e, pior, da sua normalização, acabamos por nos cansar e baixamos inevitavelmente a guarda. Por outro lado, as tretas empresariais têm como função revelar as supostas importância, experiência e especialidade do seu produtor. A infelicidade está em muitas conseguirem atingir o seu propósito. Creio que o leitor recordará com facilidade uma reunião em que participou ou um almoço com colegas de trabalho onde são atiradas e recolhidas palavras em inglês que só são entendidas por quem conhece essa melodia (5).
Recordo-me de um amigo psicoterapeuta, para quem encaminhara uma pessoa do mundo empresarial, me contar que o seu cliente lhe tinha dito que queria desenvolver as suas soft skills. O meu amigo, que não tem contacto com este tipo de linguajar, fazendo uso de uma ingenuidade circunstancial e tecnicamente propositada terá perguntado: “o que é isso?”. Esta história serve-nos de pretexto para analisar uma das expressões populares das tretas empresariais e os seus efeitos perigosos: as soft e as hard skills. Para quem não está familiarizado com estas expressões – acredito que se está a ler este texto provavelmente não será o seu caso – as competências soft são também chamadas de “comportamentais”. Delas fazem parte, por exemplo, a capacidade para escutar (ou de efectuar o active listening), de fazer e de procurar recolher críticas (oferecer e receber feedback) ou promover a evolução dos outros (coaching, on the job training…). As competências hard dizem respeito à técnica: as que permitem os trabalhadores operar as ferramentas, as máquinas ou deter o conhecimento (know-how) específico e necessário para o cumprimento das suas funções.
Hoje parece ser ponto assente no mundo empresarial, e todos os “estudos” e previsões (feitos pelos mesmos gurus, escolas de negócios e fóruns económicos) apontam nesse sentido, que os trabalhadores do futuro devem desenvolver as suas competências soft, até porque serão essas que os distinguirão das máquinas inteligentes. Embora esse aparente ser um argumento plausível, surge como demasiado conveniente. Num modelo mecanicista, ainda presente no paradigma vigente das pessoas das empresas, já desde a revolução industrial, faz todo o sentido que as competências técnicas sejam privilegiadas: saber trabalhar com uma máquina não implica falar-lhe bem. Pode-se respeitá-la e manuseá-la com senso, sobretudo, com medo das consequências (pagar o arranjo ou aleijarmo-nos, por exemplo). Quando se trata de liderar uma equipa e trabalhar com outras pessoas, a situação muda de figura. Tem tardado a adoção de uma metáfora menos maquinal e mais orgânica para o mundo do trabalho. É que num organismo vivo, por exemplo num ser humano, os tecidos moles, como os músculos, de nada servem se não tiverem ossos a suportá-los. Por outro lado, de nada servirá ter ossos muito sólidos se os músculos não têm força e elasticidade suficientes para os mover. Portanto, ao evoluir de uma metáfora mecanicista, em que as pessoas são recursos, para uma outra de base orgânica, em que as pessoas e a sua subjectividade fazem parte do sistema, a distinção entre competências moles e competências duras deixa de fazer sentido. Umas não fazem sentido sem as outras.
Na minha atividade é muito comum ouvir relatos ou diagnósticos (briefings) como: “é um excelente profissional mas uma besta a tratar com as pessoas. Tem de melhorar a sua liderança, nomeadamente as suas soft skills e assim criar uma cultura de feedback.” As tretas empresariais, que têm a mesma origem histórica e partilhar o estilo da linguagem new age, parecem esconder ou mesmo substituir palavras portuguesas que além de bonitas estão carregadas de significado e servem perfeitamente para ilustrar as situações, por muito complexas que sejam. O uso do jargão empresarial contém o risco do obscurantismo, da ambiguidade e da vagueza, que muitas vezes dão muito jeito. Serve também para não “chamar os bois pelos nomes” ou para adotar o politicamente correto que, no fundo, são outras formas de não encarar a verdade.
Confesso-me tão saturado das tretas empresariais, sobretudo das ditas em inglês, que cada vez que oiço que alguém precisa de ajuda para desenvolver as suas soft skills, o que eu oiço é que será provavelmente alguém que recorre à falta de educação, à falta de respeito e à falta de bom senso como meios para atingir os seus resultados. O pior é que, olhando tanto para casos mediáticos como para outros que não chegam a público, os resultados e objetivos nas empresas têm sido e continuam a ser demasiadas vezes atingidos dessa forma.
Para combater as tretas no geral e as tretas empresariais em particular há que parar para pensar; há que pôr em causa o que nos é dito e o que dizemos, quando essa linguagem apenas serve para aderir a uma forma e a um estilo vigentes; há que devolver a importância às palavras porque “ainda é necessário que as palavras tenham significado, é necessária uma capacidade de diálogo que não pode existir enquanto estivermos imersos numa era de grande perversão da linguagem” (Anne Dufourmantelle). Aliás, são exatamente essas as recomendações de quem se dedica a investigar seriamente as tretas (6): pare, pense e desenvolva a capacidade para entender e usar a linguagem.
Como seria o mundo do trabalho sem tantas tretas? Ficará para uma próxima reflexão.
(1) – Frankfurt, Harry G. (2005). On Bullshit, Princeton University Press
(2) – Revista Visão: Igreja Universal do Reino do Empreendedorismo
(3) – “YouTube: The Evolution of Confusion’ by Dan Dennett
(4) – Rádio Comercial – Mixórdia de Temáticas: “Inputs sobre mindsets”
(5) – YouTube: O Portuguesing do Zeinal Bava
(6) – Pennycook, G., Cheyne, J.A., Barr, N.,Koehler, D.J. e Fugelsang, J.A. (2015). On the reception and detection of pseudo-profound bullshit. Judgment and Decision Making.
*Escola Europeia de Coaching